Mesmo vendo a
cena passando-se rapidamente, enquanto a bajola* vence a contracorrente em
direção à paradisíaca fronteira entre Brasil e Peru, não tem como deixar de
encantar-se com a visão.
Continuamos
subindo o Moa e mergulho em pensamentos diversos, tentando imaginar como era
este ambiente na época da visita do padre Tastevin, em 1913. O sol ainda não
atingiu seu ápice, o que torna agradável a vista do horizonte, enquanto o vento
fresco e revigorante nos refrigera e preenche nossos pulmões com ar limpo e
puro.
Um lagarto enorme e colorido esquenta-se numa praia e, mentalmente, gravo a cena para perguntar aos meus anfitriões que bicho era aquele.
A pequena
flotilha que me acompanha cria banzeiros nas praias enquanto ziguezagueia,
parecendo uma grande cobra em movimento.
Apesar das belas praias, algo chama a atenção do piloto da minha bajola que,
Sentado preguiçosamente
na popa, aproveito para “reabastecer” meu cachimbo, grande companheiro de
muitas léguas, e indago para os companheiros de viagem quanto às percepções que
tiveram durante a subida até aquele momento. Todos parecem maravilhados com a
beleza do lugar, com exceção do nosso barqueiro que estava
Futebol na praia, TI Nukini - Foto: Jairo Lima |
Nosso destino
era a Terra Indígena Nukini, localizada “ao pé” da Serra do Divisor. Um lugar
lindo e misterioso, de clima agradável e que propicia uma feliz estadia junto à
natureza, para os poucos visitantes que se aventuram em conhecer o local.
Passado
várias horas, vejo ao longe, despontando no horizonte, uma grande antena de
comunicação e, assim como um desbravador, sinto uma indizível alegria de estar
chegando ao meu destino.
Passado o
tempo, e já de volta à rotina frenética que nos acorrenta às engrenagens desta máquina
chamada cidade, sentado em minha poltrona, repassando minhas anotações e
relembrando tão aprazível aventura que vivi no alto rio Moa, observo a sequidão que assola as plantinhas
do meu jardim, e me ocorre que esqueci de aguá-las no dia anterior. Vou à varanda de casa e vejo, ao longe, uma
irritante fumaça. A brisa suave traz o já conhecido – e
para mim detestável - odor da queimada de vegetação.
Em busca de notícias agradáveis leio nos
jornais acreanos que o governo do Estado decretou situação de alerta em Rio
Branco, devido à seca histórica que aflige o combalido Rio Acre, tão maltratado e com as
margens presas numa cinta de concreto.
Para mim,
estes sinais mostram que o mês de quintil
(julho) começou zangado, mostrando a que veio e prenunciando um segundo
semestre bem difícil, onde o clima se mostrará, mais uma vez, hostil.
Isso me fez lembrar
de um excelente estudo sobre as mudanças climáticas sob o olhar das populações
da floresta. Rapidamente, busquei-o em meus arquivos e o reli. Impossível não
fazer automaticamente um link entre este maravilhoso estudo e o que venho observando,
principalmente nos últimos anos.
A leitura desta pesquisa me deixou pensativo e um tanto apreensivo. Não tanto pelo conteúdo em si, mas, pelo contexto que este aborda.
Enquanto os
chamados cientistas se acotovelam e divergem sobre números e dados sobre o tal efeito estufa, os indígenas nos mostram uma leitura bem mais simples e
mais profunda da situação. Os pajés constantemente nos alertam que os
espíritos, os encantos da natureza, estão nos abandonando, pois a cada dia está
menor a nossa ligação com eles.
Hoje em dia,
em nosso mundo citadino moderno, cercado de artificialidades, concreto e
especialistas em todos os assuntos, esse papo pode até parecer sandice, mas não
é. Basta lembrar que a base de nossa civilização e de nossas crenças foi
erguida sobre alicerces espirituais e naturais que sempre interagiram em
perfeita sintonia.
Subindo o Ig. do Crôa - Foto: Cristiane De Bortoli |
Assim, para
mim, não é estranho, nem devaneio quando ouço ou leio os alertas que os velhos
pajés e os grandes líderes indígenas nos fazem.
Em 2014 uma
forte tromba d´água, que parecia ter saído dos confins da floresta inexplorada do rio Gregório, atingiu em cheio a Terra Indígena lá localizada, deixando um rastro de
destruição e desolação nas aldeias do povo Yawanawá. Foi uma enchente totalmente fora de época, antecipando
em quase quatro meses o ciclo normal das águas deste rio. Estivemos presentes
lá quando isso aconteceu e, realmente, apesar de achar que já vi de quase tudo
um pouco, fiquei perplexo com tamanha destruição.
O líder
Biraci Brasil Yawanawá resumiu bem a situação em uma entrevista para o
jornalista Leandro Altherman:
“Nem mesmo o pajé Yawarani, de 102 anos havia visto algo assim. Foi como se tivesse passado um ser humano cheio de ódio, revolta e vingança...Este é um novo tempo. Estamos reunidos para repensar e readequar nossa relação entre homem e natureza. É um novo tempo e precisamos nos enquadrar. O homem está vivendo seu mundo e não está olhando a mudança, a exigência e a cobrança que a natureza nos pede. Não estamos respeitando.
Para a nossa família Yawanawá, essa avalanche de água é uma lição para readequar nossos tempos, uma reconstrução de nossa relação com a natureza, para nos curvar diante deste grande saber, desta grande força que é a natureza. O mundo sente isso, mas nunca se curva. Nós recebemos esse recado da natureza, com dignidade e gratidão”.
Infelizmente, o “mundo” ainda continua a permanecer arrogantemente ereto, ou se
comportando como a “cobra grande que quer
engolir todo mundo” como bem alerta o grande líder Davi Kopenawa Yanomami.
O processo de observação da natureza e suas transformações é algo pouco comum hoje
TI Rio Jordão - Foto: Ion David |
E assim, somos
orientados que a solução é diminuir a emissão
destes gases. Realmente, concordo com esta orientação mas, vou mais além. Acredito que não se
trata somente de diminuir essa emissão, precisamos sim, como bem disse o líder
Biraci Yawanawá, nos curvar diante desta grande força, unindo-nos novamente com a essência desta, que é a natureza.
Sempre me lembro de um texto lindo e perfeito, escrito já há alguns anos atrás pelo professor Itsairu Huni Kuin, que, de maneira singela, nos faz vivenciar a transformação e mudanças na natureza e no ritmo dos moradores da floresta, durante cada estação do ano amazônico. Fico pensando: quem de nós poderia resumir tão bem como vemos, onde moramos, estas mesmas transformações? - Quem quiser apreciar e se encantar com o texto do professor Itsairu clique aqui.
Penso nas previsões de seca para os próximos meses. Pesarosamente “visualizo” os incêndios florestais, as
águas dos rios muito baixas, animais morrendo, a poeira cobrindo nossas mal saneadas e pavimentadas cidades, o sofrimento dos bairros afetados com falta d´'agua, crianças e idosos com problemas respiratórios etc.
Acreditem, já posso até imaginar o tórrido calor que fará nos meses de setembro e outubro, onde as cigarras espocam-se de tanto cantar e o céu torna-se cinza durante o dia, e nos mostra uma luz vermelha durante a noite, resultado do acúmulo de fumaça das queimadas que nossos governantes juram que estão sendo combatidas e que, a cada ano, diminuem paralelamente à redução dos desmatamentos.
Já visualizo, inclusive, as postagens nas redes sociais, de termômetros mostrando picos altíssimos de calor nas cidades, ou até mesmo, memes com piadas - para mim de péssimo gosto - sobre como no Acre faz calor. Confesso que não consigo entender, e até mesmo acho pueril, este costume de troçar de situações como esta, sob a falsa sensatez de que "é melhor rir do que chorar desta situação". Discordo totalmente.
Acreditem, já posso até imaginar o tórrido calor que fará nos meses de setembro e outubro, onde as cigarras espocam-se de tanto cantar e o céu torna-se cinza durante o dia, e nos mostra uma luz vermelha durante a noite, resultado do acúmulo de fumaça das queimadas que nossos governantes juram que estão sendo combatidas e que, a cada ano, diminuem paralelamente à redução dos desmatamentos.
Já visualizo, inclusive, as postagens nas redes sociais, de termômetros mostrando picos altíssimos de calor nas cidades, ou até mesmo, memes com piadas - para mim de péssimo gosto - sobre como no Acre faz calor. Confesso que não consigo entender, e até mesmo acho pueril, este costume de troçar de situações como esta, sob a falsa sensatez de que "é melhor rir do que chorar desta situação". Discordo totalmente.
Por enquanto, ainda é possível para as populações das cidades ludibriarem estas más sensações e as tribulações que se apresentam. Basta ligar o ar condicionado, ir ao mercado comprar produtos carregados de químicas e refrescar-se em águas artificiais e altamente clorificadas das piscinas de suas casas ou de clubes.
Quanto à
natureza, muitos se contentam somente em olhá-la, com desdém, pelas janelas gradeadas
de suas moradias. Nem tomam conhecimento ou nem lembram em que estação do ano
se encontram no momento. Isso mostra o tão artificial em que se tornou este
mundo citadino, essa selva de pedras. Mas fica a questão: e quando não for mais
possível isolar-se neste mundo artificial?
Nos jornais, e nas mais diversas mídias de comunicação, vemos proliferar as vozes dos que buscam alertar para a necessidade de se ter mais consciência ambiental; mais prudência, menos consumo e por uma vida mais natural. Infelizmente, ao contrário daqueles que insistem em nos evangelizar aos gritos nas praças e pontos de ônibus, a adesão e o apoio a estas causas ambientais, ainda são pífios por parte das autoridades e da população geral.
A impressão
que temos é que o cuidado com o meio ambiente não é regra, é excentricidade de
uns poucos, entre estes os indígenas.
Por isso,
esse tema tão bem abordado pela antropóloga Érika é importante e cativante,
trazendo para a “roda” de estudiosos e militantes mais um reforço, com
informações que pouco se conhece fora das comunidades florestais que vivem em
contato constante com a natureza, e que percebem suas transformações dia-a-dia,
ano a ano, a partir das observações ao longo de gerações.
TI Igarapé do Caucho -Foto: Jairo Lima |
Para essas populações, que dependem da natureza em seu estado natural e equilibrado, as mudanças bruscas que vem ocorrendo tem um significado muito mais amplo, pois liga-se intrinsicamente à sua própria existência. Por isso, como aponta o estudo, é preciso ter “um comportamento respeitoso, uma etiqueta” neste relacionamento, como bem colocado por um dos depoentes: “não há mais respeito como antes, parece que as pessoas esqueceram que cada coisa tem seu dono, seu responsável por ela no céu, e aqui na terra também tem seus representantes. Não sei explicar, mas a floresta que possui seus encantes, seres do bem e do mal, que vivem nela para guardar (...). Perfeito.
Sei que é
bastante difícil para a maioria entender sobre o que estou escrevendo, parece
coisa de atoleimado, mas, para aqueles que mantem um contato com a natureza ou
com seus povos, principalmente os indígenas, o que escrevo está em perfeita
sintonia com a “verdadeira realidade”.
Não estou defendendo a negação ou o desprezo pelo que a ciência e seus representantes vêm nos mostrando. Vejo, sim, que precisamos olhar mais ao nosso redor, buscarmos mais harmonia com este mundo, aprendermos mais com estes povos indígenas e outros que muito tem a nos ensinar. É preciso olhar sempre a realidade através de diferentes perspectivas, e como nos ensina Jiddu Krishnamurti, devemos estudar profundamente as leis ocultas da natureza e quando a conhecermos bem, devemos moldar nossas vidas a elas, usando sempre a razão e o bom senso.
Afinal, quanta quentura será que poderemos aguentar, antes que o solo ressecado e os leitos secos dos rios finalmente acordem nossos líderes políticos para a triste realidade que se apresenta? Para que entendam que flexibilizar leis ambientais ou destruir os habitats dos povos tradicionais nada mais é que atentar contra sua própria existência?
Aqui no Acre somos
banhados pela maior bacia hidrográfica do mundo, no entanto, até aqui, a
sequidão vem assolando cada vez mais. E, para surpresa geral, não vemos
políticas ou ações efetivas de proteção às nascentes ou aos mananciais dos
nossos rios e igarapés.
Num Estado
rico em cultura florestal, representado pelos povos indígenas, extrativistas e
ribeirinhos não vemos uma política educacional, de cunho florestal e ambiental,
voltada às nossas crianças, preparando-as desde tenra idade para viver em
harmonia com a natureza e seus povos, transformando seu próprio espaço escolar
e familiar para equilibrá-lo com o meio em que vivem.
É preciso mudar. É preciso transformar. É preciso acordar.
Finalizei minha releitura do estudo, editando as palavras do meu querido amigo Benki Ashaninka em depoimento para a Érika: “(...) você viu a chuva que está caindo ontem e hoje. Não é normal. É muita chuva, agora já era época de fazer verão e ainda é inverno, o nosso calendário está mudado, os animais estão sentindo essa mudança, as árvores não estão florando quando tem que florar e os bichos perderam o sentido do tempo. Hoje não dá pra olhar o calendário como antes, está tudo mudado. Eu tenho a impressão que os animais também sentem essas mudanças, como os Ashaninka. Percebem igual a nós. A gente fica espantado, eles também, mas que percebem que o clima está mudado. Eles também sentem porque agora era tempo de tracajá botar ovo nas praias e ainda não o fez. E os feijões de praia que muitos estão perdendo por causa da chuva. Antes, essa época era de piracema de peixe, e hoje você vê como está, tá alto, tá quase cheio. Os tempos andam mudados para todo mundo (...)”.
Respiro fundo e um mal-estar me informa que é hora de minha medicação para a falta de
Eu e a Érika, subindo o Moa |
Fecho os
olhos e rememoro os dias aprazíveis e cheios de encantos de minha visita à
terra do bravo povo Nukini, ao pé da Serra do Divisor. Sinto o frescor da
noite, a brisa impregnada da fragrância misteriosa exalada pela floresta. O som
dos animais noturnos é uma sinfonia agradável e prazerosa que embala nosso
sono, onde os “encantes” da floresta se apresentam e nos conduzem em sonhos
cheios de símbolos e significados ocultos.
Desisto do
remédio, vou molhar o jardim e contar uma linda história para os meus filhos,
sobre os antepassados encantados do povo Ashaninka. Vou fazer minha parte,
garantindo que eles mantenham em seu ser estes ensinamentos e vivam em
harmonia com seus espíritos e com nossa mãe natureza.
Pikethashirieri kekitharetsi! (esse é um assunto para se pensar)
Boa semana a
tod@s!
Jairo Lima
* Bajola - típica embarcação pequena utilizada nos rios do Juruá
* Encantes - é como as populações extrativistas designam os "encantos", ou "gênios da natureza"
Jairo parabéns seu texto está perfeito,além de ter abordado um tema super importante, um tema para se pensar e colocar em prática. Infelizmente não acho que os nossos líderes políticos estejam preocupados com o estragos feitos na natureza muito se fala mas pouco se faz.Nao é de hoje que os povos indígenas alertam sobre essa mudança climática ,que afeta a todos,mas infelizmente quem mais sofre é quem vive em sintonia com a natureza.
ResponderExcluirGuarde cada texto destes escrito e no futuro faça uma coletânea e transforme em.livro .....meus netos precisarão saber que estes tempos existiram!!! Grata Jairo!
ResponderExcluirPois é. O assunto destas mudanças climáticas sempre tem que ser abordado, mostrando as diferentes opiniões e olhares sobre o assunto.
ResponderExcluirFico feliz de ter leitores destas minhas "matutices". Muito grato.
Jairo,sua crônica tocou-me no fundo da alma.Que os encantados nunca nos abandone.Vida longa aos que lutam pelo bem viver dos povos originários e pela generosa mãe Terra.
ResponderExcluirObrigado, Francisca. Fico feliz que a mensagem toque realmente onde importa.
ResponderExcluirGrato pela leitura.