Foto: House of Indians |
As águas voltaram a fluir como lágrimas nos céus do Juruá
trazendo o refrigério desejado e a proteção das águas contra o fogo, tal qual
uma quimera insaciável que vinha destruindo nossas florestas.
No Aquiry, precisamente no meu querido Seringal Empresa (Rio
Branco), a malevolência descabida da bandidagem, que cresceu à sombra da
displicência estatal, queimou o acervo histórico de nossa capital. Acervo este
abandonado à sorte, sem cópias de segurança guardadas em outro local, como se a
memória dos dias que se passaram não merecessem atenção dos que comandam as
penas do poder.
No “mundo indígena” tivemos uma semana de desencontros e
muita arenga ocasionada por um evento que irá ocorrer na capital. É a tal da
“Conferência Mundial da Ayahuaska”, onde os “doutores que entendem de tudo” resolveram
trazer para a terra de Juramidam e dos Povos Indígenas um evento excludente e
caríssimo, que deixa de fora aqueles que não têm “contatos” e recursos
financeiros para participar.
Para mim, isso é o cúmulo da arrogância casada com
cinismo.
Esses doutores, que vem de terras longínquas, chegam neste reino, onde nasceu e cresceu a chamada “cultura da ayahuasca”, e têm a ousadia de
ditar como deve ser o evento, quem pode participar, quantos podem participar,
etc. Chegando ao ridículo de definirem cotas para a participação indígena e exigir
que os pajés e demais indígenas apresentem um resumo escrito do que irão falar
no evento, isso dentro dos quinze minutos que os mesmos terão à disposição. É
mole?
Pois é... parece brincadeira, mas não é, os “dôtôres” vão
discutir a ayahuaska, e querem deixar de fora os verdadeiros donos e herdeiros
desse conhecimento que teriam muito a falar sobre o "vinho das almas".
E assim, mais uma peça do conhecimento indígena torna-se um
produto, no caso deste evento, um produto de estudo, onde somente uns poucos
têm a suposta iluminação, garantida por um pedaço de papel (chamado diploma) que
os transforma em donos do conhecimento. Este produto de estudo tornar-se-á um
meio de ascensão profissional e financeira para uns poucos nas academias espalhadas pelo mundo.
Extrapolando um pouco mais o linde dessa reflexão, abordo
nesta semana mais um tema
ligado ao chamado circuito xamãnico, que iniciei no
texto anterior.
Huni Kuin durante a festa tradicional - Foto: CPI/AC |
No que diz respeito aos rituais e medicinas de origem
indígena há um grande "circuito" em desenvolvimento, com vários produtos e
serviços à disposição dos interessados.
Nada contra isso, confesso que acredito ser preferível utilizar
medicinas e rituais indígenas, usufruindo de suas benesses e ensinamentos, do
que sujeitar-se a tratamentos alopáticos e procedimentos invasivos de nossa
medicina tradicional, nos casos em que for possível assim proceder.
Também acredito que a espiritualidade e a medicina natural, não só indígena como de todos os povos (quilombolas, asiáticos, etc), deve sim tomar espalhar-se por todos os rincões de nosso Brasil. Mas, este "espalho" não deve se dar de qualquer maneira.
Também acredito que a espiritualidade e a medicina natural, não só indígena como de todos os povos (quilombolas, asiáticos, etc), deve sim tomar espalhar-se por todos os rincões de nosso Brasil. Mas, este "espalho" não deve se dar de qualquer maneira.
Aqui do Acre vejo ser “exportado” para o resto do Brasil
e do mundo produtos como o rapé, a sananga, a ayahuaska, entre outros. Além, é
claro, dos serviços de curadores e cantores da tradição que participam de
rituais e eventos dos mais variados tipos, divulgando sua cultura tradicional.
O destino destes produtos e serviços são os grupos
alternativos, esotéricos e irmandades dos mais variados tipos que, de maneira
gratuita ou paga, propiciam a seus membros e convidados a oportunidade de
conhecer e vivenciar um pouco da cultura indígena.
Infelizmente, há circunstâncias e casos que precisam ser citados
e discutidos, de maneira a se evitar a banalização, a exploração e os
estereótipos que tais práticas podem causar.
Entre os vários comentários que vi no texto que publiquei
anteriormente, alguns me chamaram atenção por se referirem ao grande número de
indígenas do Acre que vem realizando rituais ou aplicando medicinas Brasil
afora. Teve comentários descontraídos como este: pois é, é um tal de txai pra cá,
txai pra acolá...
No entanto, vi outros que, fora não terem graça alguma, pois
atentam para questões sérias que devem ser observadas por aqueles que fomentam
estes intercâmbios de indígenas e a compra de seus produtos.
Como citei no texto anterior, é grande a mística que os
indígenas exercem sobre estes grupos ou pessoas mais “antenadas” com o mundo
espiritual e a natureza. Para muitos, os indígenas representam a áurea do
sábio, guerreiro, guardião, puro e iluminado. O índio assume, então, a figura
daquele que desperta a lembrança de um ethos
há muito adormecido, no âmago do ser espiritual do indivíduo.
No caso dos indígenas acreanos, soma-se a esta visão que
se tem do índio à força estimulante e sensorial de suas medicinas, em especial
a ayahuasca e o rapé.
Assim, nos últimos anos cresceu e muito o movimento de
indígenas que vão aos grandes centros urbanos brasileiros e a outros países realizar
rituais dos mais diversos tipos, ou participar de eventos de intercâmbio
sagrado. Paralelamente a este aumento, também cresceu a demanda pelos produtos
diretamente associados a estes.
Este aumento fez com que se estabelecesse um mercado informal
que, como qualquer outro, traz em seu bojo um lado bem negativo, não só para os
povos indígenas como também para o meio ambiente e, em certo grau, para aqueles
que fomentam e utilizam este mercado.
É preciso, primeiramente, desconstruir a visão de que
todos estes indígenas que participam de rituais ou aplicam as medicinas
tradicionais são "pajés". Muitos são, na verdade, divulgadores ou mensageiros da cultura:
estudantes do caminho sagrado ou aprendizes dos mistérios de sua cultura. São
curadores, cantores, ambientalistas, artistas, etc. Ou seja, nem todo índio é
pajé, muito menos, e principalmente, se for jovem.
Mulheres Yawanawá- Foto: Tashka Yawanawá |
Também é preciso desconstruir a visão planificadora de que
todos os Povos Indígenas do Acre são iguais. A riqueza cultural e seus traços
são tão distintos que nos faz entender ser o Acre um pequeno continente onde
temos diferentes nações indígenas.
Infelizmente, existem pessoas e grupos que vem explorando
esta imagem do índio acreano, seus rituais e medicinas. Realizam verdadeiras
turnês, onde são cobrados valores exorbitantes pela participação de
interessados. E, em muitos casos, estes valores não são repassados para os
indígenas ou suas comunidades.
É preciso valorizar e fomentar a divulgação das práticas
indígenas, no entanto, há de se ter atenção em como isso se dá, e a quem
beneficia. Sempre falo que é melhor recorrer à fonte que a atravessadores.
Também é preciso refletir sobre a prática de se comprar penachos (cocares) enormes feitos de
penas de pássaros, muitos destes em extinção. Me pergunto: Como é possível uma pessoa que
comunga ou se diz identificada com a natureza e a prática natural dos povos
indígenas, incentivar estes a venderem seus cocares ou a facilitar sua venda em
quantidade neste mercado informal de produtos indígenas?
Por acaso a pessoa que compra um cocar feito de penas de
gavião real (harpia) tem noção de que o animal foi morto para que esse
paramento fosse feito?
É preciso entender que este cocar é parte da identidade
(contemporânea ou não) do indígena, mas, quando este sai de sua posse e é
vendido a outros, sua força espiritual e identitária tornam-se inexistentes, e
se transformam em nada mais que um adorno. Esta prática vem aumentando
e está contribuindo com a degradação da fauna, já bastante diminuída, das
comunidades indígenas.
Moral da história: cocar é coisa de índio e só se justifica ou faz sentido no "mundo" deste, ou seja, na cultura indígena esse adereço faz todo sentido e completa todo o ethos de seu povo, mas isso não se estende a nós, yura (não-índio).
Moral da história: cocar é coisa de índio e só se justifica ou faz sentido no "mundo" deste, ou seja, na cultura indígena esse adereço faz todo sentido e completa todo o ethos de seu povo, mas isso não se estende a nós, yura (não-índio).
Essa questão não seria um problema se este adereço continuasse sendo usado somente pelos indígenas que viajam pelo Brasil e pelo mundo. O problema é que estes divulgadores são impelidos a venderem seus cocares e, como este faz parte de sua identidade social e cultural, é necessário repô-lo quando retornam às suas comunidades, criando-se, assim, um ciclo vicioso.
Pergunto-me: como uma pessoa (não-india) tem coragem de usar um cocar de penas em um ritual, Principalmente em um ritual com uso de ayahuasca, sem se sentir mal pelo pássaro que sofreu ou morreu para que o mesmo fosse feito?
Até entendo aqueles (não-índios, que isso fique claro) que se sentem mais protegidos ou mais "completos" quando utilizam uniformes ou outros adereços durante seus rituais, mas, acho meio contraditório que a pessoa pregue a harmonia com a natureza, mas não se incomoda de comprar e utilizar um adereço feito de animais mortos.
É simples, galera: no mundo espiritual não importa a embalagem, o que importa é o conteúdo.
Concordo com o que me disse a amiga Andrea Prestes: na hora que o "dono" destas aves vier cobrar, quero só ver.
Dito isso, acredito realmente que é preciso refletir sobre essa situação. Com certeza os yuxin destes pássaros ficariam muito agradecidos e dariam muito mais proteção a quem assim procedesse.
Dito isso, acredito realmente que é preciso refletir sobre essa situação. Com certeza os yuxin destes pássaros ficariam muito agradecidos e dariam muito mais proteção a quem assim procedesse.
Os mecenas e demais interessados que
tem acesso ou financiam estes
divulgadores e pajés, e que compram produtos
indígenas procurem, também, contribuir com a transformação destas práticas
informais em algo formal, sério, ambientalmente sustentável e que venha a beneficiar a comunidade de origem
do produto ou dos indígenas que recebem. É preciso estabelecer uma conexão
direta com a comunidade ou com o indígena que a representa, seguindo os tramites e normas existentes.
Ashaninka - Foto: House of Indians |
Quanto à ayahuaska, preciso informar um dado preocupante: em
muitas Terras Indígenas, o cipó nativo está escasseando, tornando necessário
realizar manejo desta planta e, em algumas comunidades não tão organizadas,
praticamente não se encontra mais em suas imediações.
Também, com a demanda crescente, alguns povos que possuem
diferentes tipos de preparo da bebida sagrada optam por um preparo mais
“genérico”, que utilizam em todos os tipos de rituais quando viajam para
divulgar a cultura. A longo prazo, isso pode ser prejudicial, caso este
conhecimento de preparo se perca, devido à sua pouca utilização.
Quando chego em uma comunidade sempre procuro incentivar e perguntar
sobre os diferentes tipos de preparo do chá sagrado, perguntando sobre a
utilização dos mesmos e os tipos de rituais que podem ser feitos.
A riqueza dos preparos e profundidade dos rituais utilizando estes
diferentes preparos é algo indescritível, uma verdadeira enciclopédia
espiritual.
Como já citei antes, é salutar propiciar o intercâmbio e
a difusão dos conhecimentos indígenas, bem como acessar e comungar de suas práticas
culturais sejam elas de que tipo for. No entanto, é necessário prudência e bom
senso para que essa experiência se dê em conformidade com o equilíbrio
espiritual de onde se originou estes conhecimentos, ou seja, a natureza.
É preciso valorizar a comunidade e sua cultura como um
todo, e não somente aquele que viaja para apresentá-la. É preciso garantir que
os benefícios recebidos sejam distribuídos ou venham a beneficiar a comunidade,
pois a cultura que estes apresentam não são exclusividades suas, pertencem a
uma coletividade.
Chegou o momento de se formalizar e qualificar o acesso a
estas medicinas e rituais. Como isso se dará eu não sei, mas ficarei muito
feliz em poder ajudar.
O que sei é que tem comunidades sendo prejudicadas pelas
consequências negativas deste circuito xamânico.
Ritual Kuntanawa - Foto: Haru Kuntanawa |
Já atendi indígenas que, ao retornarem destas turnês,
falam haver voltado “mais pobre" do que quando saíram de suas aldeias. Contam
com surpresa os valores cobrados por uma aplicação de kambo ou por um frasco de
sananga ou rapé. Muitos destes foram vítimas de atravessadores, ou seja,
pessoas que se aproveitaram desta demanda e deste mercado xamânico para
ganharem muito dinheiro, utilizando estes indígenas como objetos de venda de
produtos e serviços.
Também já recebi inúmeras denúncias de atravessadores yura que, abusando da boa vontade e confiança das lideranças das aldeias, compram muitos
produtos, se comprometendo e mandar a parte do pagamento, mas, não cumprem sua
parte do acordo.
Os jovens que viajam também estão sendo chamados para explicarem aos mais velhos o que andam
fazendo, durante suas viagens. Pois estes anciões reclamam que alguns, ao retornarem,
deixam-se levar pelo caminho errado, gastando os recursos
recebidos em futilidades na cidade, utilizando a cultura para
ganhos que não são repassados às suas comunidades. A liderança Tuwe Huni Kuin já alertou para isso (clique aqui).
Claro que muita coisa positiva também advém destes intercâmbios. Projetos que beneficiam comunidades estão sendo realizados em
muitas terras indígenas no Acre, por pessoas e grupos organizados que realmente
buscam um relacionamento sério de cooperação com as aldeias. Não poderia deixar
de citar aqui os projetos exitosos desenvolvidos pelos povos Yawanawá, Puyanawa,
Ashaninka, Kuntanawa e por algumas comunidades Huni Kuin, que tiveram sua origem justamente pelos contatos
realizados durante estes intercâmbios, com pessoas e organizações sérias, que
passaram a serem parceiras destas comunidades.
Mas, de modo geral, como já citei ao longo do texto, chegou o momento de
se discutir
Tuwe Huni Kuin - Foto: acervo pessoal |
melhor
esse "circuito". E esse movimento deve partir não só dos órgãos governamentais de controle
e apoio, mas, também, e principalmente, das comunidades indígenas e seus
parceiros.
Já temos iniciativas sendo feitas, neste sentido, as comunidades estão
se organizando e suas lideranças estão colocando esse assunto na roda.
Discussões sobre patentes ou selos indígenas estão avançando nestas
comunidades.
Mas o caminho ainda é longo, enquanto isso, prudência e bom senso são de
boa medida.
É isso.
Este assunto ainda não fechou. Sei que teremos que
abordá-lo, a partir de outro foco, para darmos continuidade a esta reflexão
que, dada sua complexidade, não deve ser tratada de uma só vez.
Antes de finalizar preciso citar a forte impressão que o
documentário Reel Injun deixo em mim.
Este filme mostra os efeitos da indústria do cinema sobre os povos indígenas
dos EUA e a maneira desigual e injusta que são retratados. Está disponível no
Netflix e sugiro (meio que insisto) que assistam, vale à pena.
Após assisti-lo fui dormir com as palavras de John Trudell
(ativista do povo Lakota) martelando em meus pensamentos: eles (os brancos) tentavam
nos imitar, lembrando quem eles eram. Todo humano é descendente de uma tribo.
Brancos são descendentes de tribos, houve uma época em que usavam penas e
contas, além de conchas. Houve um tempo no passado, antes da mentalidade
colonialista, que os transformou no que são hoje(...). O mesmo que aconteceu
conosco, também aconteceu com eles.
Termino o texto observando o crepúsculo anunciar a
chegada da noite no Juruá. Uma brisa suave dá a entender que teremos chuva. Que
bom!
Boa semana a tod@s.
Jairo Lima
Muito bom texto e a reflexão. Iniciei um texto exatamente sobre este assunto para um evento na UFAC, no ano passado, mas não consegui concluir bem participar do evento devido às viagens de campo. Se possível, vou tentar dar uma finalização e passar adiante. Abraço!
ResponderExcluirOi Moacir. Vejo que estamos na mesma "vibe", de temas a serem abordados. O Txai Macêdo acredita ser necessário realizarmos um evento para discutir questões como esta.
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