Fonte: site Agenda Digital |
Por: Raial Orotu Puri
Samman
potéh,
Esta
é talvez a primeira resposta pública que faço a você, sobre assuntos que já
debatemos antes em particular. Faço-o por ter sido instigada a isso, através de
uma crônica-carta que conversou comigo, em linhas, imagens e impressões, e que
espelha um diálogo que não vem de hoje. Não creio que te traga nada de tão
novo, seja sobre o que posso dizer da minha participação na Assembleia da
OPIRJ, seja sobre aquele evento de triste memória. Contudo, responderei.
Para
responder, há que se falar, uma vez mais, da despropositada "conferência
internacional de celebração da falta de respeito da white people que acha que
tem legitimidade para adentrar em um mundo onde não é bem-vinda" (e não
são bem-vindos exatamente por sua absoluta falta de respeito com uma
sacralidade que são incapazes de compreender.). Às vezes, é preciso lembrar de
coisas ruins. Até mesmo para ser capaz de se afastar delas, para produzir algo
que seja eminentemente diferente, e eis o desafio que está colocado neste
momento.
Como
sabido por você, e por alguns, meu nível de participação nessa Conferência foi
intenso e extenuante, mas totalmente imprevistas, por razões que se impuseram
no correr do próprio evento. Aquilo que era, de início, apenas a participação
numa reunião pontual, específica e fechada, se desdobrou numa não-acontecida
comunicação, e que por fim acabou por ser o trabalho de apoio à confecção de um
manifesto por parte dos participantes indígenas desse evento. Este texto materializou
parte do sentimento daqueles que vivenciaram naquela semana uma espécie de
trailer compactado e em alta velocidade de uma relação nada nova, posto que já
se vão mais de cinco séculos de ‘contato’, mas nem por isso menos revoltante e
dolorosa. De fato, o que essa Conferência mostrou, desde as reuniões
preparatórias até a sua realização, não foi nenhuma novidade, e creio que só os
mais iludidos poderiam esperar resultado diferentes daqueles que já se
anunciavam nas tratativas preliminares, as quais acompanhei apenas
parcialmente, mas que foram mais do que suficientes para dar a ideia do todo,
ainda que acompanhar seu desenrolar na prática tenha sido superlativamente pior
do que a avant première antecipou. Talvez porque o festival de ‘colonialismo mandou
abraços’ tenha se tornado ainda menos suportável por ter invadido o território
tão sério e delicado do Sagrado.
Este
lugar, aonde se deve caminhar devagar e com respeito, foi invadido e pisoteado
por um enxame de gafanhotos. Já ouvi falar que, para algumas culturas sábias e
ancestrais, o gafanhoto é um animal nobre, cujos movimentos inspiram movimentos
utilizados em uma luta, no entanto, minha analogia entre o raion e o gafanhoto
é muito menos enaltecedora: penso em uma plantação que antes se erguia verde e
tenra, que desaparece e dá lugar a uma paisagem desolada, após uma nuvem
devoradora que tudo consome, com uma avidez despropositada de sentido. Pois que
é assim que vejo esse movimento que se adensa sobre os mais diversos níveis do
conhecimento humano: consumo e nada mais.
Quadro de Elon Brasil |
Consome-se,
seja como experiência sensorial, seja como experimento laboratorial, ou como
registro documental de uma prática exótica: catalogada, analisada, descrita,
etnografada, historiciada, mapeada, dissecada e reduzida a partículas
infinitesimais – e, no entanto, nem assim conseguem chegar sequer perto! Mas
como é meramente consumo, esta experiência tão ímpar e sagrada tende a ser
apenas mais uma, dentre todas as outras, e por isso vazia de significados e
incapaz de produzir conhecimento ou aprendizado.
Essa
festa de consumo foi também o tom produzido pela/na Conferência, visível tanto
no tom autoritário dos palestrantes quanto nos intervalos, e, pelo que pude
saber, adentrou até mesmo os espaços rituais aonde a horda white people esteve,
e, como era de se esperar, agiu exatamente de acordo com sua tônica, ou seja,
consumiu, com toda a avidez e desrespeito que lhes são característicos. A
propósito disso, gostaria apenas de fazer evidenciar algo que já tenho dito há
algum tempo, tratando de outras questões, mas cuja perspectiva também aqui se
aplica: ocorre que o Sagrado aqui em questão não é inanimado e inofensivo, e
sei que tudo o que se tem feito é visto e não será esquecido, tampouco relevado
quando for cobrado. Não se trata de ameaça. Apenas daquilo que É.
Acontece,
no entanto, que essa verdade que É, e pode ser para tantos óbvia e
incontornável, encontra-se amalgamada sobre as bases de um universo que para o
raion permanece inacessível. Aliás, vale citar as questões, cujas respostas não
vieram, feitas pelo Pedro Silvino Shanenawa dentro da reunião fechada que
discutiu o tema da patrimonialização da Ayahuasca: “O que é que a Ayahuasca fez
para vocês para vocês se interessarem tanto por ela? O que ela lhes ensinou? O
que aprenderam com ela? O que foram capazes de fazer através dela?” - Devo
dizer, para ser fiel à verdade, que alguns até ensaiaram responder a essas
questões. Mas ninguém chegou de fato a responder, porque ali, nessa reunião
fechada, penso que se deu o maior embate de toda a Conferência, e que serve
aqui de mote para a retomada desse assunto através dessa nossa conversa,
Samman... Estamos diante de dois mundos diversos demais, afastados demais, e
que olham para uma mesma coisa, mas estão longe de enxergar a mesma coisa!
Aquilo que para o raion é uma bebida que resulta de uma fusão um cipó e uma
folha, é na visão indígena um todo muito maior, e de uma vastidão que vai além
do que as palavras podem narrar, sobretudo as palavras que precisam ser ditas
na língua do usurpador, essa, a chamada ‘das luzes’, mas que tanta treva lançou
sobre os povos originários desta terra.
Porque
quando se fala de ‘ayahuasca’, esse, aliás, um termo genérico, e por isso,
reducionista, do ponto de vista indígena, se fala de um casamento ancestral
entre dois mundos, se fala de um parente cuja descendência é conhecida e
recuperável, se fala de identidade, tradição, cultura, conhecimento
não-escolarizável, de ciência; de constituição e fundamento do mundo – deste e
de todos os outros; de ciência, de doença, vida, cura, morte, do Tempo além de
todo o tempo, e do que escapa para além dele; da constituição e do fim de todas
as coisas conhecidas. Isto apenas para dizer o mínimo, e o possível. Fora o que
não pode sequer ser imaginado. Fora o que não deve ser dito. Fora o indizível.
Quadro de Neli Guimarães |
E,
eis que cá estamos. Depois da Conferência, e especificamente em função da
referida reunião, desenhou-se a pauta por um espaço de discussão na qual os
povos indígenas tenham realmente voz e espaço para dialogar sobre "o que
fizeram e o que faremos com nossos conhecimentos ancestrais", como
sintetizou de forma perfeita o parente Daniel Iberê. Não tenho dúvidas de que
essa conversa precisa urgentemente ser feita, e, como eu já comentei em outros
momentos, o que talvez tenha restado de bom dessa conferência foi despertar
para os povos indígenas a percepção do 'tamanho do problema', bem como da
necessidade de tomar lugar nesse debate.
Pois
o que me parece muito claro, é que o debate em si está posto. A ‘ayahuasca’ vem
sendo esquadrinhada e debatida nos mais diversos seguimentos e cenários, e sob
as mais variadas óticas. No entanto, ainda falta à conversa a voz indígena, que
não é nem de longe uníssona e unívoca neste tema, pois que como você bem
apontou, existem diferentes percepções acerca do tema, e que têm a ver com o
lugar de fala de cada interlocutor (tanto no contexto indígena quanto no modo
como cada um se relaciona com o mundo não indígena), e que passa pelos
interesses específicos de cada uma dessas vozes nos usos, nas consequências, e
nas possibilidades de que algo a que ela se relaciona venha a ser inserido na
esfera do patrimônio cultural. Importa esclarecer: o que eu disse acima pode
ser lido com um ‘está vendo só, nem eles conseguem concordar entre si sobre o
assunto’. Não, não é disso que se trata. O fato de dizerem coisas diferentes,
não quer dizer, necessariamente, que os indígenas, discordam entre si. Quer
dizer apenas que têm coisas diferentes a dizer. Até porque não estamos falando
sequer de um povo único, nem tampouco de opinião uniforme para cada povo.
(Talvez não seja pedir demais que os raion superem a visão de que os indígenas
são algo como um coletivo que partilha um mesmo cérebro e dizem todos em
monocórdio sempre a mesma coisa tal qual os etezinhos de brinquedo do filme Toy
Story que uma leitura bem ruim e uma interpretação ainda pior de Marcel Mauss
possa produzir!)
Eu
venho já de três conversas preliminares realizadas no contexto das Assembleias
de organizações regionais indígenas, da OPIRE e da OPIRJ, e estive também
discutindo isso em uma rápida participação no curso de hãtxa kui que está se
realizando na TI Praia do Carapanã. Participei desses eventos operando dentro
de dois registros: o de registrar esses eventos sob a forma de relatoria, e o
de apresentar as informações referentes aos processos atualmente em curso no
Iphan que tratam de temas ligados a conhecimentos tradicionais indígenas, a
saber, o registro dos padrões gráficos kenê kui do povo Huni Kui, e o processo
de registro do ‘uso ritual da ayahuasca’.
É
interessante notar que em cada um desses espaços, a minha exposição foi
praticamente a mesma, mas desdobrou-se em discussões diametralmente opostas, o
que me serviu especialmente para ver de forma ainda mais clara a vastidão desse
tema dentro do mundo indígena.
Em
todas essas ocasiões, eu tenho acompanhado a enunciação desses distintos
lugares de fala, e esta experiência me faz ver de forma cada vez mais premente
que todas essas vozes precisam ter seu espaço, com todo o respeito e condições
para que seus pontos de vista sejam expressos. Assim como acho fundamental que
também sejam respeitadas e consideradas todas as opções pelo silêncio. Porque
sei, desde as escamas e poros que cobrem minha pele, que existe um ponto para
além do qual o olhar do raion não pode ir, e não irá, e para além dele está o
Segredo que contém a possibilidade da própria ‘eficácia’ daquilo que é sagrado.
E, ciente que sou de tudo isso, penso que somente um espaço construído e
pensado para atender às necessidades de interlocutores indígenas pode ser capaz
de abarcar essas dimensões que não são passíveis de virem a ser tangenciadas
dentro de quinze minutos de fala contados em uma mesa de uma conferência
acadêmica.
Quadro de Ana Martins |
Como
alguém que está participando da idealização desse espaço de discussão, eu
espero de coração que esse seja um espaço distinto daquele da Conferência, e
que seus resultados que daí advenham sejam muito mais positivos para os povos
indígenas do Acre do que aqueles que se desenham a partir do horizonte sombrio
das coisas que são pensadas desde gabinetes, sem participação, consulta e
diálogo com os grupos diretamente interessados no tema.
Agora,
Samman, para ilustrar e responder às suas demais suas perguntas, ao mesmo tempo
que dou fechamento a este texto, de citar algumas impressões, não todas, da participação
especificamente na Assembleia da OPIRJ. Primeiramente, é importante citar o
local – lindo! – na qual o evento se deu: a Terra Indígena Puyanawa.
Cito-a
não apenas por ser uma das mais belas terras que já visitei no Acre, mas também
por que esta terra tem uma história específica, e que felizmente é vitoriosa,
de luta contra as consequências funestas que o mundo não-indígena gera, quando
ele começa a invadir os territórios sagrados indígenas. Essa vitória tão cara
foi conquistada após uma intensa batalha, e hoje se espelha na beleza e força
do terreirão sagrado, se eleva em cantos que ecoam a tradição, e se derrama na
placidez do igarapé de águas aprazíveis e santificadas dos silêncios musicais
da luz do sol brincando por entre as folhas das árvores.
Neste
belo espaço, pela primeira vez me permiti participar de uma rodada de
‘ayahuasca’ realizada durante o evento. Explico-me: em geral, dada a
responsabilidade de ter de acordar cedo e estar desperta o suficiente para
acompanhar e registrar todas as falas, geralmente não me vejo em condições de
tomar parte no ritual. Desta vez, decidi pelo contrário, e confesso que nem de
longe me arrependo, seja por ter vivido uma das melhores experiências de minha
vida neste campo até agora, seja porque dessa forma sinto que me é possível
diminuir um pouco a distância de interlocução que a posição de ‘representante
dos nawa’ me impõe.
Em
segundo lugar, preciso ressaltar a beleza que é para mim acompanhar e registrar
a maturidade de discussões consistentes e deliberações proferidas ao seio de
uma Assembleia Indígena. E, dentro dela, acho muito pertinente registrar uma
cena em particular que para mim serve para sintetizar o que tentei expressar
aqui ao longo deste texto: na rodada de fechamento da Assembleia, foi aberta a
fala para as lideranças de cada terra apresentarem suas considerações sobre o
evento do qual haviam participado, bem como para fazer as despedidas formais.
Um dos últimos a falar foi Ingo, representante dos Ashaninka do Breu. Ao tomar
a palavra, ele disse que pretendia fazer a sua fala em sua língua e que, depois
que ele terminasse, o Francisco Piyãko, “se quisesse, e como quisesse” poderia
fazer a tradução. Penso ter compreendido a sutileza contida nessa sentença
específica. A mesma sutileza, por exemplo, presente no fato de que figuras como
Raoni Txucarramae, que compreende total e claramente o português recusa-se
terminantemente a se expressar nessa língua: existem coisas que não devem ser
ditas para ouvidos que não saibam ouvir.
Enquanto
ouvia as palavras de Ingo, minha cabeça retornou outra vez à já citada reunião
da White Conference, ao momento específico em que o ProfDr Joaquim Maná
Kaxinawá levantou-se para fazer sua fala, e a fez, é claro, em hãtxa kui.
Lembrei-me disso porque enquanto ele falava, uma senhora norte-americana atrás
dele, tentou por diversas vezes interrompê-lo, inclusive puxando-lhe a camisa
para avisá-lo de que não estava entendendo coisa alguma.
Quadro de Toni Galeria |
Aquele
foi para mim talvez o melhor momento do evento inteiro. Talvez o único bom de
fato, no qual eu sorri feliz e contemplada, ante ao lindo revide àquele
conjunto infinito de violências e desrespeito. Aquele foi, sem dúvida, um
momento de revanche a tudo o que vínhamos sofrendo, sobretudo ao colonialismo
que chegou ao cúmulo de pensar em tradução simultânea para o inglês, alemão,
espanhol, etc, mas não para o português, limitando ainda mais as possibilidades
de comunicação por parte dos participantes indígenas. Diferentemente do que
ocorreu na Conferência, não passou pela cabeça de ninguém interromper Ingo.
Porque, ainda que muitos na Assembleia não fossem falantes da língua Ashaninka,
todos compreenderam.
Por
essas e outras, meu caríssimo amigo, é que eu finalizo aqui, dizendo que tenho
a expectativa, o desejo e a vontade de que, desta vez, nesta conversa que
estamos desenhando, se produza um resultado muito distinto daquele visto na
White Conference. Afinal, como foi repisadamente dito e rememorado pelos
senhores de Ibiza, aquele evento 'não era indígena'; Se tudo correr bem, esse será.
Raial
Orotu Puri, é indígena do povo Puri. Graduada em Direito pela UNIDESC e
doutoranda em antropologia pela UFPR. Atualmente está radicada em Rio
branco-Acre, onde atua como Chefe de Divisão no IPHAN/AC. Raial também
contribui como assessora jurídica da Federação do Povo Huni Kui do Acre
(FEPHAC). Grande divulgadora deste blog
Texto muito bem escrito e muito sensível. Feliz de acompanhar esse diálogo!
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