Foto: Beth Lins Specht |
Por: Rafael Castro
Em 24 de novembro de 2016 embarquei em um avião rumo ao Acre. Nesse mesmo dia, algumas horas mais tarde, eu pisaria pela primeira vez o solo desse estado que antes me parecia muito mais longínquo do que os pouco mais de dois mil e quinhentos quilômetros que separam sua capital, Rio Branco, da capital mineira, Belo Horizonte. “É um estado mítico! O Acre não existe!”, diz a “sabedoria” popular da classe média das grandes metrópoles do sudeste. De fato, para nós que aqui estamos, o Acre parece não existir. Até que, de repente, se está lá. Foi o que aconteceu comigo.
Durante todo o percurso da minha graduação em Letras o Acre não existia. Existiam apenas as literaturas de língua portuguesa e alemã, encarnadas nas geografias de lugares como Rio de Janeiro, Lisboa ou Berlim. Esses lugares sempre existiram. Os autores dessas paisagem sempre existiram. A respeito do Acre, nesse tempo, eu só sabia algumas linhas que havia lido, provavelmente escritas por Euclides da Cunha. Mas não dei muita atenção a elas. Eu estava mais preocupado em decodificar a poesia de Georg Trakl, poeta austríaco do início do século XX, ou em descobrir a linha invisível que perpassa toda a obra de Herberto Helder, seu longo poema contínuo. Foram aprendizados valiosos que, no decurso da minha graduação, me mostraram o que era a literatura e, mais importante ainda, me ensinaram o que a literatura (ainda) não era.
A leitura da obra de Oswald de Andrade despertou minha atenção para assuntos sobre os quais eu não havia antes pensado. Gradualmente, meu interesse foi se deslocando cada vez mais para a margem, para aquilo que, de certa maneira, não era tão literário assim. Iniciei a leitura de Lévi-Strauss e Pierre Clastres. Uma antropologia na margem da literatura. Uma nova perspectiva. Ver com olhos livres. Tomado desse novo interesse, decidi que, se desse continuidade aos estudos acadêmicos, tomaria como objeto de leitura algo que verdadeiramente atendesse aos meus anseios de lidar com textualidades menos canônicas ou tradicionalmente acadêmicas.
Meu conhecimento acerca de uma literatura produzida por povos indígenas era, nesse momento, bastante superficial, mas se apresentava a mim como um caminho possível. O pouco que eu havia lido a respeito foi suficiente para fazer com que eu quisesse genuinamente me dedicar ao assunto. Decidido, então, a me aprofundar nessas leituras, procurei a professora Maria Ines de Almeida em busca de orientação. O que encontrei foi mesmo uma orientação: do ocidente, Ines me apontou o outro lado: textualidades extra-ocidentais, os livros da floresta. Dentre os vários livros de diversos povos a que tive acesso, fiquei especialmente encantado com aqueles do povo Huni Kuĩ. Após um ano de leituras e conversas, eu estava lá, já no fim de meu mestrado, pisando o solo de Rio Branco. O Acre existiu.
Aldeia Água Viva - Foto: José Benedito Kaxinawá |
No dia 25 de novembro, após longa viagem de ônibus pela acidentada BR 364, cheguei no município de Tarauacá. De lá, na manhã seguinte, subi o rio homônimo, amazonicamente serpentiforme, por cerca de seis horas em um pequeno e rápido bote de alumínio, com destino à aldeia Água Viva – Terra Indígena Praia do Carapanã. A convite do Prof. Dr. Joaquim Mana – que conheci em 2015 por intermédio da minha orientadora – fui acompanhar um evento, chamado “Curso de Hãtxa Kuĩ”. Esse curso, ministrado por Mana, foi destinado aos professores Huni Kuĩ de todo o estado e seus principais objetivos foram a elaboração de uma política pedagógica para a educação escolar nas aldeias e a revisão, ampliação e criação de materiais didáticos. O nome do evento, singelo, não faz jus ao que ali aconteceu entre os dias 25 de novembro e 10 de dezembro. Mais do que um simples curso de língua, o que testemunhei foi um grande complexo transdiciplinar, algo como um seminário em que se discutia e se aplicava na prática a linguística, a pedagogia, a semiótica, a antropologia, a filosofia e muitos outros campos do conhecimento que, para nós, brancos, muitas vezes sequer possuem nome, pois os ignoramos completamente.
Foi nessa oportunidade, observando o incansável trabalho de Joaquim Mana e dos professores Huni Kuĩ, que minha noção do que é a literatura se transformou por completo. Naturalmente, essa foi uma experiência muito marcante para mim. Por essa razão, apresento aqui um breve relato do que vivi nessas duas semanas que passei na Aldeia Água Viva acompanhando o “Curso de Hãtxa Kuĩ”.
Foto: Beth Lins Specht |
Cheguei à aldeia no segundo dia de evento, por volta das 16 horas. Após ser instalado em uma das casas e descansar por alguns minutos, fui para o shubuã acompanhar as atividades que já aconteciam. Era o momento das apresentações iniciais. Cada grupo de professores de cada aldeia (compareceram representantes de 33 aldeias) se apresentava. A noite chegou rápido e as atividades do dia se encerraram. Após um banho e uma refeição, combinamos, eu e o Joaquim Mana, que eu me apresentaria a todos na manhã seguinte. Fui dormir. Fiquei encantado com o frio que se instala na madrugada da floresta. Na manhã seguinte, após quebrar o jejum, fomos novamente para o shubuã. Com bastante vergonha – pois não me sinto muito confortável ao falar em público, a menos que eu esteja lendo um texto previamente preparado – me apresentei a todos. Instantaneamente, perdi a vergonha. A resposta dos professores foi calorosa, expansiva e bastante amigável. Iniciou-se, então, uma série de aprendizados sobre a língua e as práticas culturais desse povo da floresta. Nos dias seguintes, conversei com vários professores, especialmente os mais jovens. Esses jovens professores respondiam com atenção a todas as minhas perguntas sobre o Hãtxa Kuĩ. Essa língua, que eu tentava em vão aprender sozinho, em casa, longe da floresta, por meio de leituras, tornou-se, desse momento em diante, algo vivo e mágico.
Em um certo dia, reparei uma cartolina grande com duas cobras desenhadas. Uma delas, identificada pela legenda “L. Portuguêsa” (sic), engolia a outra, identificada por “Hãtxa inũ beya xarabu” (algo como “práticas linguísticas tradicionais”). Sobre as duas cobras, o título: Uatiã (passado). Mana me desafiou: consegue interpretar esse desenho? Fiquei instantaneamente sem palavras, e não pude respondê-lo imediatamente. Passei o dia pensando naquela imagem, em sua força e, ao anoitecer, senti-me triste ao contemplar o passado indígena expresso por aquela imagem. Intimamente, fiquei um pouco envergonhado por ser um amante da literatura e carregar a língua portuguesa, essa cobra devoradora, em tão alta estima.
No dia seguinte, ao chegar ao shubuã pela manhã, fui surpreendido por um outro desenho de duas cobras. Dessa vez, nenhuma delas engolia a outra. Elas apenas se encaravam. Sobre elas, o título em letras grandes: “Eskatianã” (pode ser traduzido por “atualmente”). Essa imagem, me explicou Joaquim, reflete o desejo do povo Huni Kuĩ de que a língua portuguesa não mais se sobreponha ao Hãtxa Kuĩ. As cobras, continuou o professor a me explicar, devem conviver, pois ambas as línguas e ambas as culturas são importantes e devem ser dominadas em suas modalidades orais e escritas. Esse ensinamento, por mais simples que pareça, despertou em mim a sensação de que eu estava aprendendo algo de enorme valor. Intuí, naquele momento, que essa experiência na aldeia transformaria completamente minhas visões de mundo, que o contato com esse povo mudaria meu pensamento, até mesmo sobre aqueles assuntos que eu imaginava tão meus: a língua e a literatura.
Shubuã da aldeia Água Viva - Foto: Beth Lins Specht |
Nos dias que seguiram, acompanhei os debates para o planejamento da política pedagógica da educação escolar Huni Kuĩ. O professor Mana apresentou aos demais uma proposta de nove áreas do conhecimento a serem trabalhadas nas escolas. Os professores iniciaram, então, uma atividade cujo objetivo era analisá-las e discutir acerca de seus conteúdos e meios de implementação nas aulas. Outras atividades nesse sentido se seguiram no decorrer dessa primeira semana. Acompanhei o desenvolvimento de todas elas, envolto pela estranha sensação que é ouvir constantemente uma língua que não compartilho. Esse estranhamento não se apresentou a mim, porém, como algo negativo. Senti-me imerso em um contexto mágico, de cujo código só me era possível compreender pequenas partes, palavras, senhas.
A semana seguinte foi dedicada ao trabalho de revisão e ampliação dos materiais didáticos existentes – duas cartilhas de alfabetização e um dicionário – e à criação de uma nova cartilha. É preciso que eu me detenha um pouco nesse tema, pois ele tem muito a dizer sobre aquilo que mais me tocou: a transformação da minha visão sobre a literatura.
As cartilhas de alfabetização Huni Kuĩ são organizadas de modo a apresentar aos alunos letra por letra do alfabeto. Assim, começando pela vogal “a”, o aluno aprenderá o som, a grafia, as sílabas possíveis etc. O que me chamou muito a atenção nesse momento dos trabalhos – embora eu já conhecesse a primeira cartilha – foi o fato de que, para cada letra apresentada, corresponde uma pequena história [Miyui tese]. Assim, na primeira cartilha, por exemplo, para se apresentar a letra “a”, deve-se ler uma pequena história sobre a paca (“Anu”, em Hãtxa Kuĩ). A letra, para os Huni Kuĩ, é muito mais do que mero som [fonema] ou forma escrita [grafema]. Ela parece ser a própria potencialidade da literatura, a possibilidade de se contar uma história. É pela letra que se pode acessar a experiência do mito. É também pela letra que se pode imprimir a identidade de um povo sobre as páginas de um livro. Percebi então que a relação entre a vida e a literatura era, para os Huni Kuĩ, ainda mais estreita do que eu imaginava.
Foto: Acervo Joaquim Maná Kaxinawá (a esquerda na foto) |
Durante toda essa segunda semana, tal impressão só veio a se confirmar. Pude observar diariamente um esforço conjunto, comunitário, para a produção literária. Além de produzirem novas histórias para a cartilha publicar, alguns professores transcreviam também histórias gravadas em aúdio que eles, em suas aldeias, colheram dos mais velhos. Em outras ocasiões, alguns sábios da região que se encontravam na aldeia eram convidados pelo professor Joaquim para que contassem histórias para os jovens professores ali presentes. Em outros momentos, quando os professores mais antigos – como o reconhecidamente sábio Tene Txana Sapa (Norberto Sales) – tinham algo a dizer, os mais jovens corriam com seus celulares e gravadores para captar a fala desses mestres. A literatura – escrita e oral – estava sendo produzida ali, em larga escala. Sob o teto do shubuã e sobre o solo da aldeia, sobre o mesmo chão pisado pelos pés de um povo por muito tempo chamado de “ágrafo” e “primitivo”, pulsava viva e emergia, diante dos meus olhos, uma literatura forte, magicamente envolvente, imensamente distinta de tudo aquilo que me foi apresentado como “literatura” pela academia. Para os Huni Kuĩ, tudo é literatura, pois tudo vive, e tudo que vive existe em uma história. Essa é uma grande lição.
Para finalizar esse relato, contarei um episódio que me ocorreu durante a primeira semana do curso. Algo de que nunca me esquecerei. Chego mesmo a pensar que devo classificar tal episódio como “mítico”, pois o vejo agora, em retrospecto, como uma espécie de síntese de tudo aquilo que escrevi em minha dissertação de mestrado. Nesse episódio eu pude realmente compreender aquilo que eu apenas tateava em minha pesquisa. Eis a história:
Era a terceira noite que eu passava na aldeia. Por volta das 21 horas, atei minha rede e deitei-me para dormir. Sonhei. Eu estava sentado em uma das carteiras escolares dispostas no shubuã, olhando em direção ao quadro negro, como se estivesse a observar uma palestra do Joaquim ou a escutar a leitura de algum professor que apresentava o resultado de uma atividade. No entanto, não havia ninguém. Era madrugada, mas a lua cheia me permitia enxergar o entorno. Quando me dei conta de que estava sozinho, senti um pouco de medo. Tentei me levantar para ir de volta à casa em que eu estava hospedado, pois era tarde e todos deviam estar dormindo.
Prof Norberto Sales Tene - Foto: Mara Vanessa |
Não consegui me levantar. Senti um frio na barriga. Alguém estava por perto. Saindo do escuro da madrugada, vi uma anta se aproximar. Foi a primeira (e única) vez que vi esse animal assim de perto. Ele se aproximava devagar, mas parecia indiferente à minha presença. Era como se eu não estivesse ali. Chegando cada vez mais perto, aquele bicho enorme, de uma cor que se confundia com a noite, me causava certo incômodo. O frio na barriga aumentava e aumentava. Até que a anta, já muito próxima, a centímetros de mim, olhou diretamente nos meus olhos e, como se se desse conta da minha estranha presença, fugiu em disparada. Acordei. Ao abrir os olhos, fui imediatamente acometido por uma forte dor na barriga. Levantei-me às pressas, peguei a lanterna e saí da casa rumo ao banheiro. Voltei para a rede e dormi novamente, por pouco tempo, pois já era alta madrugada e a hora de acordar era, normalmente, entre as cinco e às cinco e meia da manhã.
Ao me levantar junto dos outros que se hospedavam na mesma casa que eu, senti que estava doente. Minha barriga ainda doía. Eu parecia entrar em um estado febril. Resolvi ignorar a situação, pensando que melhoraria logo. Tomamos nosso café da manhã – ou melhor, tomaram, pois não tive apetite – e fomos ao shubuã iniciar as atividades. O mal estar foi gradativamente piorando. Eu devia estar bem pálido e suando bastante, pois o recém conhecido Txana Iskubu – professor da região do Rio Breu por quem desenvolvi grande afeto posteriormente – veio até a mim e me perguntou se eu estava com febre. Saímos, eu e ele, do shubuã e nos sentamos em uns banquinhos quase debaixo de um pé de ingá Por saber que os sonhos são de imensa importância para os Huni Kuĩ, contei a ele sobre a anta. Depois de responder várias perguntas minuciosas que ele me fazia sobre detalhes desse sonho, ele me disse, em um tom reconfortante, para que eu ficasse tranquilo, que logo eu iria melhorar. Meu espírito estava se adaptando ao ambiente da floresta, meu corpo se acostumando à alimentação da aldeia. Com algum banho especial ou alguma outra medicina, eu me curaria rápido.
Velhos mestres Huni Kui dando palestra - Foto: Beth Lins Specht |
Voltei para o shubuã e, menos de meia hora depois, cheguei ao meu limite. Fui para a casa, atei minha rede e me deitei. Dormi. Passei o dia quase todo dormindo. Levantei apenas para ir ao banheiro e para tomar uma medicina (uma garrafada preparada de diferentes medicinas da floresta, com gosto bem amargo, semelhante ao sabor do nixi pae) que me foi oferecida.
Acordei, no dia seguinte, me sentindo melhor. Na hora do almoço, horário de intervalo das atividades, conversei com Siã, professor e cineasta, filho do professor Joaquim. Falamos sobre meu sonho. Ele me disse: “Olha, txai, isso é nisũ da anta. Onde você está, ela também está. Quando você fala, ela também fala”. Descobri, então, que nossos yuxĩ [espíritos, imagens] estavam deslocados de seus lugares originais. Eu e ela estávamos, juntos, fora de nós mesmos. Minha imagem na dela, a dela na minha. E por isso, estávamos ambos doentes. Naquele instante, imaginar que havia, na floresta, uma anta doente por estar impregnada pela minha imagem me comoveu bastante. Após o almoço, enquanto descansávamos antes de iniciar novamente as atividades, pedi ao Siã que ele me ajudasse a compreender alguns cantos, para minha pesquisa de mestrado. Ele sugeriu que começássemos pelo canto “Yame awa kawanai”. que quer dizer algo como “anta da noite passando”. Fomos lendo juntos e traduzindo – ou tentando exprimir em português aquilo que líamos. Voltamos, depois, para as atividades regulares. No fim do dia, Siã me procurou e disse que haveria um ritual de nixi pae naquela noite. Perguntou-me se eu gostaria de participar. Disse que seria muito bom para mim, e que eu não precisava ter medo algum por nunca ter tomado o cipó. Assenti.
Por volta das vinte e uma horas, munido de minha manta e de uma lanterna, voltei ao shubuã, local onde aconteceria o ritual. Eram poucas pessoas presentes. Grande parte delas veio até a mim para me aconselhar, para fazer com que eu me sentisse tranquilo e bem. “O pensamento tem que ser sempre positivo”, me alertou Txana Iskubu. “Lembra sempre que você tomou o nixi, txai. Não esquece disso. Fica tranquilo que, pra onde quer que você vá, você vai voltar”.
O ritual começou. Meio sem jeito, por não conhecer a liturgia, tomei o pequeno copo com a bebida. Começou a cantoria. Apenas uma voz soava na completa escuridão ou à luz de uma única vela que sempre se apagava com o vento. Vez ou outra eu reconhecia qual canto estava sendo cantado, embora o conteúdo não me fosse claro. Me sentia bem. Certo tempo depois, tomamos uma segunda dose do nixi pae. Sentei-me, novamente, na cadeira e me envolvi em minha manta. Já sentia o frio e a chegada da força. De vez em quando, um enjoo se instalava por breves momentos. Comecei a ter alguns lapsos de sono/sonho. Involuntariamente eu dormia e começava a sonhar bem vividamente, mas só percebia que havia cochilado quando acordava.
Professores e alunos da aldeia Água Viva - Foto: José Benedito Kaxinawá |
Fiz certo esforço para me manter em vigília e, pouco tempo depois, comecei a mirar. Tudo que eu via estava recoberto de kene. Quando conseguia enxergar minha pele, percebia que ela também estava recoberta. Minhas tatuagens se transformavam em kene de diversas cores, muito vívidos e luminosos. Julguei ver alguns animais espreitando do lado de fora do shubuã. Não tive, nessa ocasião, medo algum. Fiquei apenas admirando tudo aquilo que se apresentava diante dos meus olhos despertos enquanto ouvia as canções, que a essa altura já eram acompanhadas de violões e, ocasionalmente, uma flauta doce. O ritual foi se encaminhando para o fim. Por volta das três da manhã, Siã perguntou-me como eu estava me sentindo. Respondi que me sentia muito bem. Ele disse, então, que antes de terminarmos ele gostaria de cantar a “música da anta” para mim. A mesma música que havíamos estudado naquele dia. Poucos minutos depois, ele começou a cantar. Estranhamente, senti que compreendia tudo aquilo que eu ouvia, de uma maneira bastante diferente daquela que experimentei ao traduzir o canto. As palavras agora penetravam em mim antes mesmo de elas fazerem sentido. O significado não era mais minha primeira necessidade. O que me afetava nesse momento, de forma mais contundente, eram as sensações. E através delas julguei “entender” por completo aquele canto.
Por fim, todos se despediram e fomos, eu e Siã, para a casa, atarmos nossas redes para dormir. O que essa história guarda de especial é que, quando do momento da tradução, não me atentei ao fato de que a função específica desse canto é afastar daqueles que o escutam – no momento em que estão sob o efeito do espírito da floresta – o nisũ causado pelos diversos animais que são citados. Dentre eles, a anta, que figura, inclusive, no título atribuído à peça. Só fui ligar os pontos – perceber a “coincidência” – na manhã seguinte.
"O Acre existe", Rafael vencendo obstáculos - Foto: Beth Lins Specht |
A tradução, o ritual do nixi pae, tudo aquilo era parte de uma medicina, um plano para que eu me curasse. O canto, a língua a princípio incompreensível. As ervas da floresta, o cipó. A força da palavra. A literatura e a vida, me dei conta, se apresentaram a mim, naquele dia, como fenômenos absolutamente indistintos e indissociáveis. Tudo aquilo sobre o qual eu havia escrito em meu trabalho de mestrado se mostrou como um fenômeno único: o animal, o vegetal, o sonho, a cura e a palavra. Do momento em que tive essa percepção até o último dia que passei na companhia dos Huni Kuĩ, eu vivi a “literatura verdadeira”. É preciso aceitarmos que nós, brancos, temos muito o que aprender com os povos da floresta. Inclusive em matéria de literatura.
P.S.: É preciso que eu faça aqui alguns agradecimentos: ao professor Joaquim Mana por seu convite, sua paciência e seus ensinamentos preciosos; a Maria Ines, por ter me introduzido no universo da literatura indígena; ao Jairo, autor do blog, cuja força e solicitude tornaram possível minha viagem à Praia do Carapanã.
Rafael Castro é graduado em Letras pela UFMG e mestre em Estudos Literários pela mesma universidade. Sua maior área de interesse é a literatura indígena.
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