sexta-feira, 24 de março de 2017

UMA MIRAÇÃO – e o que ela tem a ver com a Defensoria Pública Estadual e as/os indígenas

Mulher Madija - Foto: Acampamento Revolucionário
Por: Cláudia Aguirre

Uma miração

 Num sábado à noite recebi o honroso convite para participar de uma rodada de Uni[1] em Mâncio Lima, com a presença de indígenas de várias etnias que estão no centro urbano daquela cidade pelos mais variados motivos - trabalho, tratamento de saúde, estudos, estar de passagem entre um local e outro, e assim por diante. Trata-se de um momento em que elas/es se reúnem pra fortalecer essa irmandade por meio da vivência de suas raízes que o compartilhar do Uni representa. Experiências como esta – que sempre se dão num clima de uma alegria muito sagrada - são uma das muitas provas de que índio/índia na cidade não deixa de ser índio/índia, não: ele/ela carrega consigo a energia de seu povo e de sua terra.

Entre goles de Uni e muita cantoria iniciada sob a lua cheia e estendida até o amanhecer, tive a seguinte miração: a fotografia de um índio sério, com um ar grave, pesado, vestido com uma camisa xadrez fechada até o pescoço, num quadro pendurado numa parede mofada.
A imagem me deu um desconforto muito profundo, uma aflição. Abri rapidamente os olhos. Olhei a lua esplendorosa no céu. Olhei para os parentes, alegremente imersos nas suas músicas. Que alívio.


Sobre instituições e invisibilidade
Participação da Defensoria durante o CNPI 2015 - Foto: Jairo Lima

 Ando pensando muito sobre o tema da invisibilidade de que padecem as/os indígenas. A invisibilidade pode se dar por meios sutis, mas nem por isso de forma menos danosa. Ou, então, depois de tanto ver determinadas práticas de invisibilidade nem tão sutis assim, acabamos por naturalizá-las como sendo “normais”... Identificar violências físicas cabais – como um genocídio – é mais fácil. No entanto, é preciso ter em vista que esta violência é só a ponta de um enorme iceberg, e que ela, portanto, está intimamente ligada a outras espécies de violência simbólica. É preciso estar com os sentidos sempre aguçados para identificá-las.

Eu vou trazer a miração mais pra perto: há ainda todo um programa perene e estrutural no sentido de enquadrar as/os indígenas na moldura do não-indígena, vestindo-lhe roupas que não lhes pertencem nem apetecem. O resultado disto, a nível institucional, é a dificuldade de formulação de uma prática estatal que respeite e honre as especificidades dos diversos povos existentes. Creio que o subtexto que permeia esse constante enquadramento é: não são as políticas públicas que são inadequadas às/aos indígenas, mas são estas/es que têm que se adaptar a elas.

A/O indígena entra na sala de um órgão público e, pronto! - a máquina invisibilizadora começa a funcionar com suas diversas engrenagens, a todo vapor. A começar, muitas vezes, pela barreira da língua[2]; passando, então, por uma postura de desconcerto por parte de funcionários obrigados a seguir um certo protocolo pensado somente para os cara-pálidas – e se a situação da/o indígena não se enquadra no protocolo, a tendência é achar que o problema é  ela/e, nunca da instituição. Por fim, não posso deixar de falar do modo um tanto assistencialista de tratar os parentes, ainda meio encharcado da já extinta lógica da tutela.
Noite de Uni - Foto: Epixi Xuku Mukini

É certo que o Estado do Acre é celeiro de experiências pioneiras no que diz respeito a políticas públicas destinadas aos indígenas. Porém, na esmagadora maioria dos órgãos estatais, a preocupação de buscar prover-lhes um atendimento efetivamente especializado inexiste, sequer isto é colocado em questão. No âmbito do Poder Judiciário e nas instâncias administrativas, nem se fala. E isso se torna, muitas vezes, dramático para os indígenas.

Como eu enxergo isso tudo? Eu enxergo isso desde o ponto de vista de quem está na ponta da máquina invisibilizadora: é quando o produto que saiu das etapas finais dessa engrenagem “deu ruim”, em nenhum lugar o “ruim” foi resolvido, e aí a pessoa chega ali, na última “porta da esperança” da Defensoria Pública.  

O que chega lá no núcleo da Defensoria Pública? Muitas vezes, vejo os indígenas chegarem pra resolver coisas que, a princípio, seriam elementares e simples, mas que, não raro, se tornam um transtorno um tanto complexo. Quer um exemplo? Os casos de erros ou duplicidade nos registros de nascimento, sobre tudo naqueles oriundos do Projeto Cidadão[3]. O que tem de assento de nascimento confundindo nomes de pais com o de avós, tios e primos, e discrepâncias entre informações do RANI e do registro civil, e, ainda, duplicidade de assentos, não está no gibi. Outro exemplo: casos de direito de família envolvendo alimentos e guarda de crianças e adolescentes indígenas, em que geralmente o problema de fundo, na verdade, é uma desestruturação social, cultural e econômica que não é apenas daquele núcleo familiar, e sim de uma comunidade inteira submetida por anos a fio à omissão estatal, ataques de grandes empreendimentos, etc.   
Participando da festa da tradição na aldeia Shanekaya
Terra dos Shanenawa - Feijó 2016 - Foto: Acervo Claudia

Se eu, como defensora pública - como representante do Estado, portanto -, faço parte dessa máquina invisibilizadora? Claro que sim, muitas vezes. Pra começar, eu sou uma “cara-pálida”. Pra continuar, estou num órgão do sistema de Justiça que nunca, jamais, foi pensado estruturalmente para enxergar as/os indígenas enquanto tais. Na minha formação, na faculdade de Direito, nunca ouvi falar delas/es. Invisíveis, portanto.
O quadro do indígena sério com camisa xadrez até o pescoço está simbolicamente em tantas paredes, inclusive encontrei-o lá, no meu gabinete na Defensoria Pública. Como tirar esse quadro dali?

De onde parte minha fala, e como a Defensoria Pública Estadual em Cruzeiro do Sul foi parar na aldeia.

A parte que me coube neste latifúndio do Direito foi ser defensora pública. As tramas da vida e das minhas escolhas de mulher me trouxeram para ser defensora pública estadual no Acre, mais especificamente em Cruzeiro do Sul, onde atuo desde novembro de 2014, na área cível. O núcleo da Defensoria Pública do Estado do Acre em Cruzeiro do Sul atende a população desta comarca[4] - que abarca as cidades de Cruzeiro do Sul, Porto Walter e Marechal Thaumaturgo -, e das comarcas de Rodrigues Alves e Mâncio Lima.
 
Além de ser abraçada pelo verde poderoso e pelas águas dos rios e igarapés do Vale do Juruá, ser defensora pública no Acre permitiu-me conhecer, pela primeira vez, indígenas – não aquelas/es romantizadas/os e estereotipadas/os pelo imaginário do senso comum, mas elas/eles mesmas/os, por elas/eles mesmas/os, em sua própria versão: sendo, vivendo, criando, e, sobretudo, resistindo[5]. Esse Brasil com vários povos me era invisível: eu não o conhecia realmente, do jeito que ele efetivamente é.
Ashaninka do Envira - Foto: Talita Oliveira
Para além da atuação mais individualizada no núcleo defensorial em Cruzeiro do Sul, desde 2015 tenho recebido convites para proferir palestras em encontros e eventos dos povos indígenas na região do Juruá. Tudo começou com o convite da Coordenadoria Regional do Juruá da FUNAI para realizar palestra sobre “Direitos Individuais e Coletivos dos Povos Indígenas” na etapa local da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista, ocorrida em junho de 2015 na Terra Indígena Puyanawa, em Mâncio Lima/AC [6]
Estas experiências têm me provocado uma insistente reflexão repleta de dúvidas e receios: como estabelecer uma comunicação com indígenas sobre uma área do saber que muitas vezes se mostra tão árida como o Direito? Bastaria falar-lhes os seus direitos numa espécie de “lista”? Mas isto, ao fim e ao cabo, consistiria num mero despejar de um suposto conhecimento jurídico, o que resultaria, novamente, numa prática de aculturação – e aquele quadro maldito pendurado na parede... Como fugir desta postura? Como parar de enquadrar as/os indígenas numa moldura que nós, erroneamente, tomamos como óbvia?

Procurei ter sempre em mente, para cada oportunidade que me foi dada à para falar com as/os indígenas, o seguinte questionamento: o que é importante abordar sobre o ordenamento jurídico nacional e internacional hoje, colaborando para uma apropriação do texto normativo por parte dos indígenas, de modo que estes possam formular iniciativas originais, fora da moldura do “branco”, em respeito às suas especificidades? Afinal, ninguém se emancipa se não produz o próprio saber, e o saber jurídico só se torna útil quando os próprios sujeitos de direitos se empoderam, formulam reivindicações estratégicas e criam novas práticas a partir de quem elas/es efetivamente são. É aí que está a bendição que pode ser criada a partir da frieza de uma norma.

O que eu tenho aprendido neste - ainda - breve contato com as/os indígenas é que os caminhos para esta bendição estão longe de serem óbvios. É como um desbravar de novas trilhas numa floresta mesmo.   



Gosto de mencionar um artigo que para mim é muito atraente e poderoso, qual seja, o Artigo 4, inciso III, da Lei Complementar Federal número 80/94, que estabelece a necessidade de promoção da difusão e da conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico. Vale a pena saber mais sobre o que é e para que serve a Defensoria Pública, clique aqui para acessar um apêndice sobre esse ponto.
As minhas experiências mais marcantes com indígenas nestes poucos dois anos e meio de
Shanenawa - Foto: Same Shanenawa
atuação como defensora pública aqui no Juruá foram os momentos em que fui chamada para conversar sobre temas jurídicos relacionados aos povos indígenas. Destas experiências, reforço quatro principais aprendizados para a Defensoria Pública como instituição, quais sejam: 1) o investimento num trabalho de educação jurídica de difusão dos direitos humanos permite  afastar-nos de uma atuação meramente individual e assistencialista, podendo, assim, colaborar para um verdadeiro empoderamento das/os indígenas no que diz respeito à apropriação dos textos normativos e a consequente formulação de estratégias próprias por parte de cada uma das comunidades indígenas; 2) nessa mesma linha de raciocínio, este tipo de atuação faz com que se torne visível uma demanda que, antes, estava reprimida devido à desinformação por parte das/os indígenas; 3) em se tratando de indígenas, nada, ou quase nada, no ordenamento jurídico nacional ou internacional deve ser tido como óbvio, sendo imprescindível a postura de diálogo, de demonstrar às/aos

indígenas que elas/es não precisam aceitar goela abaixo qualquer política pública que viole a sua dignidade enquanto pertencentes a um povo; 4) a necessidade de uma certa “humildade institucional”, no sentido da Defensoria Pública Estadual, num primeiro momento, estar mais preocupada em efetivamente ouvir as/os indígenas do que transmitir ou fazer algo de forma precipitada, sob pena de recair, inadvertidamente, num assimilacionismo.   

Ainda no que diz respeito à educação em direitos e a formulação de uma atuação sistemática de reivindicação e de valorização e respeito à organização social das comunidades indígenas, pode-se destacar a possibilidade de um trabalho com estas no sentido de ver os laudos antropológicos e os planos de gestão territorial como instrumentos jurídico-políticos, na medida em que podem auxiliar as/os indígenas a apresentarem uma espécie de protocolo a ser seguido pelo Estado para fins de direcionar políticas públicas, estabelecer mecanismos de consulta prévia, e assim por diante. Esta é uma ideia que demanda uma maior elaboração, mas, sem dúvida, é capaz de resultar num um trabalho de empoderamento do qual a Defensoria Pública pode fazer parte.

No âmbito dos direitos individuais, gostaria de mencionar a problemática do nome indígena, que vem aparecendo com cada vez mais força. Em primeiro lugar, destaco que reconhecer o nome indígena no assento de nascimento é, por si, o um dos momentos cruciais em que o Estado Brasileiro reconhece o indivíduo como indígena, enquanto representante de um povo, isto é, de um modo de criar, fazer e viver próprio[07].

Diante deste reconhecimento, abre-se campo para o seguinte questionamento: poderia esse mesmo Estado, que reconhece um cidadão como indígena em seu registro civil, puní-lo ou lhe proibir o uso/transporte de Uni ou de penas, sendo tais práticas parte de um modo de criar, fazer e viver próprio de seu povo? Evidente que ter o nome indígena reconhecido no registro civil, por si só, não impediria os impasses enfrentados pelos parentes quanto a estes aspectos, mas, com toda certeza, provoca uma estratégia que auxilie o exercício e a defesa de direitos. Outra seara que pode ser estratégica relacionada ao nome indígena é a discussão sobre a instituição de cotas, por exemplo. Enfim, a questão do nome indígena é área de atuação da Defensoria Pública Estadual por excelência, e penso deve ser objeto de uma atuação  específica para cada comunidade - afastando-se, portanto, de uma padronização -, com a devida abordagem antropológica, para que se identifique o que é importante, para cada grupo, fazer constar no registro civil de seus integrantes, respeitando a cultura e a organização familiar e social de cada um deles[08]
Crianças Noke Koi - Foto: Talita Oliveira

Como visto, abrem-se caminhos um tanto inéditos de atuação da Defensoria Pública Estadual no sentido de enxergar as especificidades dos povos indígenas e pautar a sua prática institucional a partir disto. De todo modo, acredito que estamos no início desta estrada, e muita reflexão interna à instituição é necessária. Neste sentido, fiz uma proposta junto à Coordenadoria de Cidadania e ao Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública do Estado do Acre consistente na realização de um seminário previsto para os próximos meses, em que se possa trazer representantes indígenas e envolver os demais defensores públicos neste debate, de forma que possamos iniciar o estabelecimento de estratégias específicas destinada a estes povos. Nada mais justo num estado que tem expressiva população destes, não é?

O texto termina aqui, mas os desafios para a Defensoria Pública Acreana, não. E espero ter outras muitas oportunidades de compartilhar as dores e as belezas dessas diversas possibilidades, retirando aquele antiquado quadro da parede.


Cláudia de Freitas Aguirre, natural do Rio de Janeiro, paulistana por décadas porque a vida assim quis, acreana agora por vontade própria. Formada em direito pela USP em 2006. Defensora Pública Estadual em Cruzeiro do Sul/Acre desde 2014








Notas:
[1] mais comumente conhecido como ayahuasca, bebida feita a partir da chacrona e do mariri, utilizada pelos povos indígenas em seus rituais espirituais e culturais.
[2] Quer ver um caso de respeito às várias línguas indígenas que coexistem num mesmo país? Dê uma olhada no site da Defensoria del Pueblo da Bolívia aqui (http://www.defensoria.gob.bo/): nota-se, ali, a opção de ver o site nas línguas indígenas mais faladas naquele país (quéchua, aymara, guarani). Na primeira vez em que visitei o site, achei isso imensamente simbólico e significativo, já que demonstra uma iniciativa do estado de se adaptar aos indígenas naquilo que lhe é crucial: a língua e a comunicação.
[3] “O projeto cidadão é um trabalho social realizado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Acre em parceria com órgãos federais, estaduais, municipais e não governamentais.  Sua finalidade primordial é assegurar à população de menor poder aquisitivo o direito à documentação básica, bem como o acesso rápido e gratuito aos serviços públicos da área social: saúde, educação, meio ambiente, segurança e trabalho” – fonte: http://www.tjac.jus.br/adm/sepso/projeto-cidadao/. Por vezes, estes atendimentos se dão por meio do deslocamento do funcionários do Tribunal de Justiça e demais órgãos públicos envolvidos para as localidades distantes dos centros urbanos.
[4] A comarca corresponde ao território em que o juiz de primeiro grau irá exercer sua jurisdição e pode abranger um ou mais municípios. Cada comarca pode contar com vários juízes ou apenas um.
[5] Sabe a diferença entre o enredo da Beija-Flor e o da Imperatriz Leopoldinense neste Carnaval de 2017? Ela tem muito a dizer sobre o que eu estou falando.
[6] Posteriormente, fui convidada a participar da mesa com o mesmo tema, na etapa regional da Conferência, ocorrida em Rio Branco em outubro de 2015. Na etapa nacional, realizada em Brasília em dezembro de 2015, participei somente como observadora, dando continuidade à minha tarefa de conhecer e aprender mais com os parentes. Ainda em 2015, fui chamada para falar sobre direito das mulheres indígenas no 1º Encontro das Artesãs Indígenas do Vale do Juruá, em setembro de 2015 em Cruzeiro do Sul/AC. Em novembro de 2016, convidaram-me para discorrer sobre “Ameaças aos direitos humanos e ambientais nas disputas territoriais” na XXXVII Assembleia Regional do Conselho Indigenista Missionário – regional da Amazônia Ocidental. Por fim, no último mês de fevereiro, participei do Encontro das Artesãs e Artesãos Indígenas do Vale do Juruá, na Terra Indígena Puyanawa, oportunidade em que me pediram uma conversa sobre, dentre outros pontos, direito das mulheres indígenas e nome indígena.

[7] Aqui, menciono o art. 216, inciso II, da Constituição Federal: “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...) II - os modos de criar, fazer e viver”. Creio que este dispositivo abre campo para uma conotação política da cultura para além de seu caráter meramente “folclórico”, e isto é de fundamental importância para os povos indígenas.
[8] Estas reflexões a respeito do nome indígena e do uso jurídico-político dos laudos antropológicos e planos de gestão territorial foram frutos de nutridoras conversas com Johny Fernandes Giffoni, defensor público estadual do Pará, que tem feito um trabalho pioneiro com indígenas daquele estado.

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