Por: Raial Orotu Puri
Faz já algum tempo que tenho uma preocupação recorrente acerca da necessidade, que cada vez se coloca de forma mais essencial, dos indígenas estarem também participando do mundo dos brancos. E isso, não necessariamente para confraternizar – quase nunca para isso – mas para tentar apreender certas ferramentas, para estar atento a ameaças e para encontrar escuta, para reivindicar direitos, para fazer-se ouvir e ser sentinela. Não que isso seja necessariamente agradável – quase nunca é – ou a melhor maneira de empregar seu tempo, quando a opção pode ser uma vida numa aldeia, e a eternidade das coisas que não mudam, das notícias que chegam tarde, do tempo que escoa a conta gotas.
Sempre tive a impressão de que, numa aldeia distante o suficiente da ‘civilização’, quando o mundo acabar a notícia vai chegar uns 03 meses depois do acontecido. Se chegar. E isso é ótimo!! O grande problema é que, cada vez mais, essa ‘distância suficiente’ diminui, e as tentativas de aniquilação do mundo indígena também se tornam cada vez mais próximas e cotidianas. E, ao que tudo nos indica, não é estrategicamente viável deixar de vigiar as ameaças sempre crescentes, e os ataques cada vez mais descarados que o mundo do raion vem perpetrando contra os povos originários. Por essas e outras coisas, a necessidade de que indígenas estejam ‘representando’ seu povo em meio não-indígena acaba sendo uma constante, para o bem ou para o mal.
Estive pensando nisso, ao longo de todos esses dias, em meio a uma série de contextos e questões. Um deles, é a grande Mobilização Nacional Indígena 2017, e o seu Acampamento Terra Livre, que este ano se instalou junto da Biblioteca Nacional em Brasília, lá permanecendo dos dias 24 a 28 de abril. De acordo com o que se ouviu, esse ano foi mais difícil chegar, mas lá estão os parentes, em número aproximado de 03 mil. Lá estão para reivindicar, para manifestar-se, para cumprir agendas e encontros, angariar promessas e exigir que o que for dito seja mais do que promessa.
Outro ponto de inflexão é a discussão que já tem se levantado nas reuniões indígenas, da necessidade da consolidação da presença indígena no Poder Legislativo, através de mandatos eletivos. Conversa espinhosa, que gera opiniões controversas, mas que se coloca cada vez como um caminho necessário de ser percorrido para tentar garantir ao menos que os direitos conquistados pelos povos originários sejam mantidos.
Fonte: Site Escreva Lola Escreva |
São algumas das formas de estar, de representar, de mostrar ao mundo não-indígena que existimos e resistimos. Não são as únicas, mas são necessárias. Cada vez mais penso que são necessárias. E digo isso, ainda que seja totalmente descrente do sistema político e pretensamente democrático que, se crê, existe em nosso país. Ainda, e apesar disso. A, ainda o digo: é preciso. E o digo porque acredito na necessidade de que os parentes ocupem todos os espaços possíveis, advocacia, medicina, sociologia, antropologia, biologia e, óbvio, a política.
Em um e outro movimento de avanço à representação, o destino é o mesmo: Brasília, esta cidade construída sob um projeto moderno que, dentre outras coisas, pautou-se em uma ideia de inclusão e acesso, mas que, na prática revela inumeráveis barreiras para tudo àquilo que representa desconformidade com o modelo estabelecido, este, devidamente branco, cristão, europeizado, capitalista e citadino. E bem... nada personifica melhor a desconformidade do modelo estabelecido que os indígenas, com sua cultura e formas de organização próprias.
Brasília sempre foi para mim um lugar hostil. Por diversas razões. Uma delas é muito mais que uma razão: é Galdino Jesus dos Santos, o guerreiro Pataxó cujo assassinato brutal
completou 20 anos na semana passada. Vinte anos se passaram desde que um grupo de moleques ricos resolveu fazer uma ‘brincadeira’ com um homem que dormia desprotegido em uma parada de ônibus, derramando álcool recém-comprado em uma loja de conveniência ateando fogo em suas roupas. E que não se engane quem pensa que este ato ‘brincalhão’ foi um caso isolado, uma situação extraordinária, ou algo que não se repetiu antes ou depois, com outras Pessoas e em outras cenas, vide os argumentos de defesa utilizados à época*. Pessoas! E é importante que isso se repita. Galdino era/é uma Pessoa, assim como o são todos as pessoas que vivem em situação de rua, e que estão, na Capital Federal e em tantas outras cidades, país afora, à mercê de ‘garotos brincalhões’.
Apenas garotos! Como o menor de idade da época, que tentou por duas vezes ser admitido em um concurso público, contestando o fato de seu antecedente criminal sob a alegação de que ‘já havia cumprido sua pena, e não era justo que fosse punido para sempre pelo que fez, afinal de contas o Brasil não admite punições perpétuas’.
Justo? De fato, o Brasil não admite punições perpétuas, exceto no caso de Galdino, o único cuja pena não pode ser revertida jamais.
O crime de Galdino? Chegar atrasado à pensão que abrigava a delegação indígena que havia ido a Brasília para participar das manifestações do Dia do Índio de 19 de abril de 2007. E sim, isso precisa ser lembrado também! É necessário lembrar esse ‘detalhe’, ainda que ele provoque náuseas e revolta. Não existe nada que justifique a ‘brincadeira’ dos meninos ricos que assassinaram Galdino, tampouco, há qualquer margem de justificativa em submetê-lo a uma situação de vulnerabilidade em um ambiente ameaçador, apenas por um apreço às ‘regras do estabelecimento’. Lamento, mas na minha cabeça – provavelmente doente, eu sei – o sangue e a dor daquela noite também mancham as mãos de quem fechou as portas da pensão, porque foi este o que selou o destino terrível.
Fonte Site Caderno Descolorindo |
É claro... pode-se dizer que isso é o imprevisível. Isso é aquela coisa, a armadilha presente na letra legal, que descaracteriza a participação no crime, por falta de ‘nexo de causalidade’ entre uma e outra coisa. Pois é... E, no entanto... Galdino não pode dormir em segurança e, por isso, foi assassinado. Quem poderia esperar que tal horror acontecesse?
Quem? Para ser sincera, eu creio que qualquer um poderia esperar, exceto, infelizmente, Galdino, caso contrário não teria pregado os olhos, ou teria escolhido outro lugar para repousar, e talvez ainda estivesse entre os vivos... Mas não está.
Vinte anos se passaram. O local do ocorrido foi batizado de ‘Praça do Compromisso’, ainda que não se saiba ao certo os termos desse compromisso, ainda que exista quaisquer provas materiais de que houve, de fato, um compromisso de que pessoas deixem de ser mortas em crimes absurdos... Para marcar a memória do que houve naquele local, foi instalado um duplo monumento: um representa um homem cercado de chamas, e outro, uma pomba, evocando a paz.
Paz? Vinte anos depois, o local ainda cheira a carne queimada. Bom, talvez nem todos os narizes sejam capazes de o sentir. Assim como talvez nem todos os ouvidos possam ainda ouvir os gritos e a dor daquele lugar. Mas está lá. Sempre estará.
Porque não é só Brasília. É o Brasil. O mesmo país em que, na semana na qual ocorre a 30ª Edição do Acampamento Terra Livre, testemunha em silêncio mais uma – só mais uma – ação truculenta de despejo dos Kaiowá da Tekoha Nhandeva em Caarapó, Mato Grosso do Sul. As notícias desse ataque ocorreram nesta terça-feira, 25 de abril, enquanto preparava este texto. De novo, e de novo, e de novo! O desespero revivido a cada momento, sem fim.
É por essa razão que às vezes tenho uma reação amarga em relação àqueles que vêm a mim
comentar sobre o quanto se emocionaram e horrorizaram com a magistral película ‘Martírio’ de Vicente Carelli. Maravilhoso filme, de fato. E seria preciso não ser humano para não se emocionar ou horrorizar, bem sei. Mas o problema é que esse filme não tem fim. Ele não cessa no acender das luzes do cinema. O Martírio dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul é o todo dia. Há 517 anos, esse é o cotidiano que se propõe a ser a normalidade de grande parte das populações indígenas dentro das fronteiras que foram impostas e batizadas de Brasil. E, bem sei que é esperar demais, e desejar demais, mas de todo o meu coração quebrado por esse contínuo de desespero, eu espero que alguns, ao menos alguns dos que assistiram esse documentário possam acordar da sua letargia e compreender que é preciso uma reação que vá além da emoção e horror. É preciso apagar o fogo do corpo de Galdino, é preciso não deixar que ele morra em Brasília. É preciso que atear fogo a um corpo adormecido, seja ele indígena ou de um morador de rua, não seja uma brincadeira possível de ser sequer pensada, quanto mais realizada. É preciso que o Mato Grosso do Sul deixe de ser Calvário, é preciso que o Brasil pare de caminhar sobre o sangue do nosso povo.
Não precisamos de memoriais, de monumentos e de praças de compromisso. Precisamos de compromissos de verdade. De ação. Precisamos viver, e estamos morrendo.
Nesse sentido, penso que importam sim as idas, as representações. Existe a necessidade de estar e de mostrar que a vida ainda existe entre nós, visto que frequentemente isto é colocado em dúvida, na mesma medida em que com frequência se tenta que essa existência deixe de existir. É preciso que o lugar de fala seja ocupado, de fato, por aqueles de quem se fala. E que essas falas deixem de ser sempre em terceira pessoa. Que o ‘eles’ seja trocado pelo ‘nós’.
Por isso, não basta apenas o ‘deixa o índio lá’, como dito no trecho da fabulosa música Demarcação Já, de Carlos Rennó, e lançada nesta segunda, 24 de abril. Tive a oportunidade de ouvir a canção em sua forma declamada como poesia ainda carecendo ser musicada, no ATL de 2015, ocasião em que Chico César lançou a também excelente canção “Reis do Agronegócio”**... “Demarcação Já” é carregada de verdade, e fala da maior de todas as urgências para os povos originários: a demarcação de suas terras, e, obviamente, a possibilidade de viver nelas em segurança.
No entanto, esses 517 anos de massacre ininterruptos nos ensinaram também, que ‘deixar o índio lá’ não é uma opção viável, no mesmo país que fecha suas portas ao indígena que chegou atrasado, para que este mesmo indígena, algumas horas mais tarde perca sua vida com mais de 70% de seu corpo queimado. No país em que Galdino nasceu e foi assassinado, há que se ter sempre um vigilante com olhos abertos, para que os outros possam dormir. Porque este é o mesmo país da ação de despejo em Caarapó, e do ‘exercício paramilitar’ em Takawara, e de um Presidente de um órgão indigenista que diz que os indígenas precisam deixar de ser o que sempre foram e ‘evoluir’ – na cabeça dele, os indígenas são o mesmo que Galdino foi: atrasados!
Neste país, a prece do adormecer dos indígenas deve ser muito parecida com a que aparece no filme ‘Reino de Fogo’ (2002):
“O que fazemos quando estamos dormindo? Ficamos com um olho no céu.
O que fazemos quando estamos acordados? Ficamos com os dois olhos no céu.”
Trágico? Certamente. Catastrófico? Certamente. Mas quem dera fosse eu a neurótica exagerada. Quem dera, enquanto ainda escrevo, não tenha chegado também a notícia da forte repressão à manifestação de hoje dos parentes em Brasília, de novo as bombas, o gás, as balas... de novo a violência, a dor. De novo a percepção de que são os povos originários os invasores do espaço. Quem dera não fosse tudo sempre assim.
E é exatamente essa a grande questão de fundo presente na possibilidade, e na necessidade da consolidação da representação política por parte dos parentes. Nada de festa, pompa ou circunstância. O que está em questão é o jogo entre a vida e a morte, a necessidade de ser sentinela pelo bem da continuidade da vida de povos inteiros, nessa realidade de um país em que os assassinatos acontecem à queima roupa, mas também nas canetadas no Planalto Central. Lembro das palavras fortes e sintomáticas de Ailton Krenak, gravadas por Rodrigo Siqueira Arajeju, no essencial documentário Índio Cidadão: “Se for preciso que um de nossos jovens venha para cá para esse lugar, para acabar sua vida aqui, para vigiar, é preciso que venha. Porque nossos jovens estão morrendo de qualquer maneira. Nós estamos morrendo.”
É essa a forma e a força dessa urgência. O trágico de uma vida que insiste em ser vida, a despeito de todas as forças que se erguem em contrário. O drama perene de um povo que já estava aqui, antes que esse país fosse um país, mas que mesmo assim é punido por ter ‘chegado atrasado’. As portas estão seladas. E é preciso forçar essa entrada. Estar dentro. Falar desde dentro. Colocar a desconformidade lá e exigir respeito a ela. Representatividade importa, é o que dizem. E, neste caso, ela é decisiva. Porque ela também é questão de vida e morte.
Kuêk |
Digo isso também por causa dos olhos de Kuêk, o Borum ancestral de Ailton, talvez o primeiro embaixador dos povos originários em terras estrangeiras, que no ano de 1816 partiu para a Alemanha em companhia do príncipe Maximiliano zu Wied-Neuwied.
Quando trabalhei no setor de Ações Educativas do MAE-UFPR, ajudei na elaboração do conteúdo expositivo e na identidade visual de uma sala didático-expositiva na Universidade, que tinha por fim a recepção de visitas de turmas escolares, e que se prestava a atuar como ferramenta de apoio a professores no ensino da Cultura Indígena e Afrobrasileira, obrigatória nos termos da legislação (espera-se, que continue sendo a propósito...). Um dos elementos escolhidos para esta composição foi um painel retratando indígenas em diferentes contextos, desde os tradicionais, até aqueles de contato com elementos da contemporaneidade, justamente para servir de uma discussão sobre a presença e a diversidade, a pluralidade e, claro, a permanência das culturas indígenas na ‘modernidade’.
Dentro do mosaico, constavam duas imagens de Kuêk, feitas pelo mesmo autor da realeza alemão, que realizou no Brasil uma longa viagem de exploração. Duas imagens que sempre me tocaram de forma muito profunda. Na primeira, feita por volta de 1814, Kuêk aparece logo após ser encontrado, e ali está enfeitado com todos os seus adornos, os grandes brincos de madeira, e o botoque sob o lábio. E, é claro, o retratista, do alto do seu eurocentrismo indisfarçado, carregou os traços do Borum de uma ferocidade animalesca.
Câmara Cascudo diz que Kuêk aprendeu a falar fluentemente o alemão, e desenvolveu uma relação muito estreita com o príncipe, que teria sofrido bastante com a sua morte. Mas a proteção e o apreço real do amigo principesco não impediu que depois de morto ele tivesse o mesmo destino de cobaia que tantos outros indígenas antes e depois dele tiveram quando levados à Europa, vivos ou mortos. A viagem de Kuêk só chegou ao fim 195 anos depois, quando os seus ossos foram devolvidos mediante um pedido da Prefeitura de Jequitinhonha ao Governo Alemão.
A segunda imagem data de 1830, e foi feita na Alemanha, dois anos antes da morte de Kuêk. Mas a distância entre as duas imagens é maior do que 16 anos. E os milhares de quilômetros de mar e terra entre Minas Gerais e a Corte Alemã. Entre a partida e o regresso. Neste outro retrato, um dos mais conhecidos dentre os vários que foram feitos e enfeitam o palácio de Neuwied, Kuêk aparece com trajes de fidalgo, mas dos seus adornos antigos, ficaram apenas as cicatrizes: a marca cicatrizada do botoque no queixo, e os lóbulos das orelhas vazios. Os traços também foram suavizados pelo retratista, como que a dizer que a ‘civilidade’ domou a
‘fera’ de outrora e o transformou em outro tipo de homem. Mas os olhos... nos olhos Kuêk ainda é o mesmo, e isso é um alívio para mim. Porque encontrar o que eu encontro nos olhos de Kuêk depois de tantos anos vividos em terra estranha é o alívio de saber que a Resistência impera, e o retorno é possível, mesmo depois de tudo. Encontro também um eco de tristeza e saudade. E também, de algum modo, cautela. Normal... como já disse em outro texto, qualquer um que tenha sangue indígena e viva em meio dos brancos, sabe muito bem que está em terra estranha, e que aquele não é seu lugar. E, se por acaso for possível esquecer de algum momento disso, haverá sempre um lembrete, não raro, violento.
Site Pinterest |
Infelizmente, o retorno para Kuêk somente se deu depois que seus olhos não mais podiam se iluminar com as matas de Minas Gerais, depois que sua pele não mais podia se refrescar nas águas do Watu, pois que tudo o que dele voltou, talvez tarde demais, foram seus ossos.
E isso também é sério, sério demais: de coração eu espero que cada vez menos os nossos representantes só possam voltar quando reduzidos a ossos. Pelo contrário, ainda que sem esperança, eu espero que haja algum tempo no qual os caminhos da cidade sejam menos traiçoeiros, hostis, violentos. Espero, ainda que não creia que eu própria veja esse tempo em vida, que algum a brincadeira traiçoeira não se avizinhe dos corpos adormecidos nos pontos de ônibus, e que as bombas, as balas e o gás não seja deflagrado contra as Marchas em Brasília; que não haja morte, nem somente campos de soja no Mato Grosso do Sul. Que os reis do agronegócio sejam todos destronados. Que “Demarcação Já” possa ser uma música velha, e um dia ainda alguém fique chocado com o absurdo de que uma letra assim precisou ser composta.
Eu espero. E acredito que, de alguma maneira, a forma de alcançar uma realidade de maior respeito e de convivência seja precisamente a representação nos espaços públicos, sejam eles quais forem. Isso é decisivo, até para que um dia, o ingresso em uma carreira representativa não seja sinônimo de ‘acabar a vida’. Para que a possibilidade de representar o seu povo em uma posição de mando, seja algo diferente, mais equânime, mais saudável do que a toxidade que se sente quando se está na cidade. Que a representação do diferente, e a defesa desse sagrado direito à diferença seja algum dia mais suave do que a luta entre a vida e a morte.
Eu espero...
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* Na época da prisão, uma das primeiras alegações feitas pelos então acusados pelo crime foi ‘pensamos que era um mendigo’. Eu creio que não se faz necessário uma explicação ampliada da materialidade desse argumento, e do tipo de sociedade em algo dessa natureza se faz possível...
** Assista aqui os vídeos das canções:
Demarcação Já: https://youtu.be/wbMzdkaMsd0
Reis do Agronegócio: https://www.youtube.com/watch?v=0mtvwidXP_4
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