Por: Jairo Lima
Tivemos uma semana bem molhada aqui pelo Juruá. Choveu muito, o que contribuiu ainda mais para nosso isolamento físico do resto do Aquiry e, claro, da terra brasilis, já que o acesso terrestre entre a capital do Estado, no Seringal Empresa e a prelazia do Juruá, onde estou, regrediu aos saudosos anos oitenta, quando a rodovia federal, a infame BR 364, nada mais era que um grande varadouro que cortava o Estado de uma ponta da ‘asinha’ a outra. Mas este isolamento tem lá suas vantagens, pois nos mantém relativamente seguros e com acesso à paz característica das cidades interioranas.
Apesar dos ventos turbulentos do Planalto Central, que teimam em atazanar nossa já atribulada existência profissional, econômica e política, a semana passou relativamente calma. Claro que me refiro ao mundo do “aqui onde estão meus pés”, e não o ‘mundo’ que temos acesso pelas redes de comunicação. Estes, continuavam o cabo-de-guerra e as arengas de sempre, um pouco mais exaltadas que o normal mas, dentro da normalidade caótica de sempre.
Dentro dos afazeres diários, nesse meu indigenismo de cada dia, atendi a uma pesquisadora que veio trocar umas ideias comigo a respeito de sua proposta de pesquisa de mestrado. Na conversa, esta me contou sobre um programa que tinha assistido, sobre um museu onde tinham vários objetos e demais acessórios indígenas. No programa, a curadora do museu explicava como ‘eram’ os índios, e como hoje em dia muitos deles “deixaram a cultura, não usam mais aquelas vestimentas de antes, os objetos, isso é meio triste…”.
Interrompi a narração da colega com a pergunta: “E o que tem de estranho nisso?”
Então passamos a conversar a respeito de algo que as pessoas não percebem, ou, se percebem, não dão atenção mas que faz toda a diferença em suas existências: o dinamismo cultural. Claro! Toda cultura é dinâmica, pois está em constante movimento, agregando coisas, deixando outras, aprimorando, refinando, mantendo e descartando a todo momento. Ou seja, estático (ou parado) só poste mesmo, pois até as montanhas movimentam-se em transformação, a partir do movimento das placas tectônicas da terra.
Claro que devemos refletir, levar em conta e separar o movimento de transformação natural do processo de assimilação e integração socio-cultural, imposto aos povos indígenas no decorrer dos séculos, quando nos referimos a situação em que estes povos se encontram atualmente. Temos aqueles em que o processo de colonização extinguiu suas línguas maternas ou aspectos estéticos que os diferenciavam dos demais. Mas a reflexão não é sobre isso. Mas este não é angu que quero mastigar hoje, junto com o leitor.
Me refiro a esta visão equivocada de achar que a cultura só é válida se seguir a visão geral que se tem em relação a ela. Explico: índio mesmo, só aquele que anda nu (ou de tanga, ou com tala de envira segurando o membro, ou, ou ou.. deu pra entender né?); Ou que caça de arco e flecha; Ou pesca de mergulho e usando azagaia ou lança; Ou mora no malocão, etc. Nada disso.
Temos sim, povos que ainda conservam este estilo de vida, muito belo, natural e de acordo com sua relação social interna, seu grau de interação com a sociedade envolvente e com o meio natural em que vive. Mas, também, temos outros que não utilizam, pelo menos em grande parte, da estética ou estilo de vida como os demais. Isso não faz destes últimos menos ou mais ‘índio’ que os primeiros.
É muita falta de intelecto da maralha em achar que “o índio hoje é aculturado, pois tem celular, tem televisão, compra comida em vez de caçar, viaja, usa câmera, etc”. Pura estupidez isso.
Mas vamos em frente.
Esse movimento da dinâmica cultural propicia unir o tradicional às necessidades contemporâneas, de acordo com a interação da comunidade, ou mesmo de alguns da comunidade, com as demais sociedades e culturas com as quais se relacionam, seja por necessidade, seja por interesse, seja por imposição. Assim, não é de se estranhar quando vemos um Yanomami, como o Davi Kopenawa viajando pelo mundo, dando palestras, filmando, escrevendo livros, etc; Ou quando vemos um Ashaninka, como o Benky Ashaninka, viajando o mundo inteiro, dando palestras em que divulga a cultura de seu povo e sua experiência ambiental; Ou o Tashka Yawanawá que comumente viaja aos EUA para tratar de negócios de sua comunidade; Ou o Nilson Tuwe Huni Kuin que mora boa parte do tempo nos EUA; entre outros tantos. Estes interagem perfeitamente com o ‘mundo dawa’ e mais ainda com seu ‘próprio mundo’. Normalíssimo isso.
Já disse antes: o que diferencia os povos indígenas entre si, e, mais ainda em relação à sociedade não-índia é uma coisinha chamada “ótica de mundo” que, somada a outra coisinha chamada herança cultural dão a estes povos suas singularidades.
Como disse, temos diferentes situações em que se encontram os diferentes povos indígenas no território brasileiro. Claro que a massificação cultural, que pacifica, doutrina e ‘abestalha’ nossa sociedade também faz seus estragos nas comunidades, principalmente através dos aparelhinhos de televisão e, em alguns casos mais atuais, através da internet. Temos sim caso dos mais jovens que cada vez mais se afastam dos ensinamentos dos mais velhos e do conhecimento tradicional, em prol da assimilação e entendimento mais fácil da cultura padronizada, que ‘é enfiada goela abaixo’ de todos. Isso é fato e contra isso é que vemos diferentes iniciativas, de muitas organizações indigenistas e indígenas, em prol do reforço identitário e cultural tradicional.
Na contramão dessa dinâmica ‘abestalhante’ temos situações de povos que se encontram num processo de ‘estudo e busca’ pela tradição, num movimento de imersão e ‘estudo do passado’, em busca de aspectos identitários que mostrem sua singularidade em relação aos demais povos. Aqui no Acre temos exemplos disso. Posso citar os Puyanawa, Nukini, Nawa e Kuntanawa.
Acho um papo muito besta quando alguém desfaz-se de um povo ou mesmo de um indivíduo desse povo (que, por causa da colonização genocida, tenham, ao longo dos séculos ou décadas, esquecido ou afastado-se da cultura dos antepassados), por causa de certa maneira de se vestir, ou de utilizar acessórios indígenas diversos, com características de outros povos. Atenção! isso não é apropriação cultural não! Igualmente acho ser de uma pequenez medíocre fazer mangofa de algum povo ou de algum indivíduo desse povo por este (s) ser (em) formado (os) por laços sanguíneos entre indígenas e não-índios, chegando ao extremos da estupidez de chamá-los de “mestiços”. Não gosto desta palavra e vejo nela a manifestação do preconceito disfarçado, impregnado de rancor e ignorância, assim como outras palavras ‘proscritas’, como por exemplo, ‘criolo’, ‘veado’, ‘tição’, ‘bastardo’, etc.
No movimento dinâmico da cultura humana, como um todo, tem espaço até para as chamadas “modas” do momento, que, em grande parte, não se fixam como parte integrante da cultura transformada e acabam ficando pelo caminho. Nesse quadro das ‘modas’ temos desde vestimentas até certas palavras e termos, que vão das chamadas ‘gírias’, até aqueles retirados do próprio vernáculo linguístico a ser usado em diferentes ocasiões de tratamento.
Agora, também, temos que pôr o dedo na ferida em algumas situações que necessitam ser citadas aqui e que, a meu ver, não representam necessariamente uma dinâmica cultural muito saudável e que me deixam, de certa maneira, cético e preocupado com as transformações que este movimento pode causar. Claro que me refiro ao chamado ‘universo do sagrado indígena’.
Nesse dinamismo todo não me estranha, nem creio ser errada a busca, principalmente dos mais jovens, em alcançar o status ‘pajé’ junto aos dawa, cantando músicas onde Yemanjá se encontra com Jesus, Nossa senhora passeia na floresta encantada dos botos, o ‘mestre’ com os caboclos dançam no terreiro de Tupã, etc etc etc. É a maneira comunicativa que encontraram para chamar a atenção dos dawa para a ‘ótica indígena’ e para os mistérios que, se apresentado de outra maneira, talvez não fosse possível se fazer compreender. E não vejo com maus olhos parte da cultura, no caso a espiritual, circulando por este mundo tão carente de iluminação.
O que me deixa ‘com um pé atrás’ é com certos divulgadores da cultura (sabem que, para mim, pajé é outra coisa, e destes, pouquíssimos deixam a paz de sua aldeia para irem viajar para longe) que se dizem txana, pajé etc. e que não são capazes de cantar ou apresentar, em parte do ritual, a sua cultura ancestral de cantoria, mesmo sendo a mesma ainda em uso em suas comunidades de origem, ou em outras próximas.
Cito isso pois vejo crescer esse movimento, que é interessante até, de divulgação da cultura ayahuasqueira e das medicinas dos povos indígenas acreanos, com viagens, vivências, sagrado ‘disso’ ou ‘daquilo’. Mas creio ser necessário, também, haver o incentivo para que estes divulgadores busquem mergulhar mais na cultura ancestral do seu povo, caso ainda seja utilizada, afinal, txana (cantor de cipó) de verdade sabe, primeiramente, cantar o ‘nixi pae’ (canções de ritual com cipó) do seu povo, para depois cantarolar para os encantados e demais seres que a interação cultural com os dawa (não-índios) apresentou para a cultura ritualística indígena.
Claro que temos casos e casos. Temos aqueles divulgadores e curadores que não possuem mais, em suas comunidades, aspectos da cultura ancestral como a língua indígena, e, por conseguinte, as canções tradicionais de seus rituais na língua sagrada. Esse fato não desmerece seu trabalho.
Essa preocupação se faz presente e tenho visto que nas comunidades, principalmente as Huni Kuin, tem crescido muito as conversas e reuniões entre os anciãos e os mais jovens, sobre este cuidado para com a cultura tradicional. Afinal, é preciso atenção para não ‘pasteurizar demais a coisa, para que, algo tão profundo que nos remete aos primórdios de nossa relação com a natureza, não vire o que o Tashka Yawanawá citou dia destes: “pajelança pra branco ver”. O que, na minha opinião, é uma pajelança que não serve de muita coisa, além da ‘maresia’ que nos possibilita ficar um pouco mais leve e de bem com a vida (e olha isso já é um ganho enorme).
Sim, nesse aspecto, de rituais de cipó, sou, de certa maneira um tradicionalista, pois, se posso escolher, prefiro participar de um ritual ‘de raiz’, no terreiro da aldeia, ou em ambientes ao ar livre, perto de uma fogueira, fumando meu cachimbo. Huni (ou kamarãpy, ou Uni, etc) tomado à noite, sob as estrelas e na companhia dos sons noturnos da natureza, sendo guiado pela voz do ‘cantador de cipó’, e somente lá pela metade do ritual é que rola um violão ou cantoria geral.
Como já citei em outro texto, vejo a questão de acessórios e demais apetrechos visuais como desnecessários, até porque “a parada ocorre do outro lado”. Lado este que se vê somente ao cerrar da visão do mundo da matéria. Afinal, sou do tempo que nem eram usados estes cocares estilo ‘véu de noiva’, que passaram a ser utilizados pelos txai nos últimos dez anos, mas, entendo que até isso é prova do dinamismo cultural, e tem seu valor sim, apesar de achar pouco sustentável ambientalmente, principalmente se o interesse comercial nestes acessórios aumentar.
Apesar desse meu gosto pela coisa mais de raiz, também acho bonito, importante e válido o trabalho e esforço dos que, de maneira séria e cuidadosa, buscam apresentar um pouco da cultura de seu povo, num linguajar mais ‘inteligível’ e ‘visual’ para esta nossa sociedade, que não tem muito ‘entendimento’ e que só se interessa se aquilo que for apresentado estiver dentro de uma percepção do que creem que seja o ‘sagrado’. Aí vale o violão, maracá, tambor e todo o apetrecho que se fizer necessário, tem problema não, desde que a coisa seja séria e sem bizarrices.
Acho também muito válido que as chamadas ‘medicinas indígenas’ venham ganhando espaço cada vez maior, em processos de tratamento do corpo e do espírito. Tenho somente ressalvas, no que diz respeito como algumas destas vêm sendo divulgadas e ministradas, mas isso é um papo para outra crônica.
Sim, tudo isto também é dinamismo da cultura, é movimento. Claro que sem perder a essência da coisa, que é herança tradicional que faz destes rituais e o acesso às medicinas tradicionais uma experiência de transformação do ‘Ser’ muito valiosa.
Agora, para aqueles ‘outros’, principalmente os dawa, e até mesmo certos ‘parente’, que nada tem a ver com a cultura ayahuasqueira tradicional indígena ou com as medicinas tradicionais como o kambô, o rapé sananga, etc, que não tem esta herança cultural, se utilizar destas culturas para se apresentarem como curadores, aplicadores de medicina e o escambau, só digo uma coisa: são falsários e charlatões. Afinal, apresentam algo que eles mesmos não têm, nem mesmo escondidinho lá no fundo de sua ‘memória espiritual’. E destes charlatões e aproveitadores da vulnerabilidades alheias, tem ao montes, e vemos a cada dia pipocar páginas no Facebook onde falsos gurus, pseudo-pajés e demais bichos grilo do mal vendem seus serviços, cobrando um ‘valor de troca’ ou ‘doação’ para prestarem a caridade.
Vi até casos até de apropriação de termos indígenas ou palavras, utilizadas das mais diversas maneiras, como por exemplo, a saudação haux, sendo usada como mote de propaganda de certos serviços de tratamento espiritual. É mole? Como diz minha querida mamãe: “me poupe me economize”.
Inclusive essa é uma palavra que sintetiza bastante essa questão do ‘movimento’ temporal, onde certos termos são utilizados e tornam-se parte de certa característica associada a uma cultura. Nos últimos anos esta vem sendo usada bastante como uma espécie de saudação de despedida ou, em muitos casos, para qualquer coisa. Bem, pelo menos para despedidas seria mais interessante usar os termos corretos da língua indígena do interlocutor (caso este tenha, claro), soa até mais bonito. Cito, como exemplo, a saudação Huni Kuin, mankae (ou no ‘vernáculo’ man ka ê, como me alertou, em uma entrevista, o ProfDr. Joaquim Maná Huni Kuin), ou a saudação de despedida Ashaninka hatama. Fale em voz alta estas palavras. Notou como soam bem mais bonitas?
Esse termo, associado inicialmente ao hãtxa kuin (língua verdadeira) do povo Huni Kuin e aos Yawanawá acabou tornando-se palavra de uso comum a muitos outros povos e, cansativamente utilizada pelos dawa. Para saber mais sobre esta palavra e seu uso, sugiro a leitura de um texto pra lá de interessante, apesar de igualmente provocativo, bem como seus comentários, no blog do Altino, que tratou do assunto (clique aqui), a partir das falas de Nilton Tuwe Huni Kuin e Tashka Yawanawá. Vale perceber e refletir sobre as diferentes percepções de seu uso, a partir da ótica destes dois grandes txais, bem como das reflexões postadas nos comentários, que podem ajudar a esclarecer estas percepções.
Eu, particularmente, acho interessante a essência do seu uso como fazem os Huni Kuin (leia o texto indicado), e não vejo como errado sua adoção social pelos dawa, pois é uma palavra o me faz lembrar de duas outras que possuem, de certa maneira, a mesma essência em seu uso: shalom, utilizada por judeus e; salamaleico, utilizada pelos muçulmanos.
Mas, infelizmente, o que anda rolando é que tem muita gente fazendo uso desenfreado e bem banalizado dessa palavra, sem atentar para seu uso correto, dentro das boas energias e na essência pois esta tem uma conotação bem mais séria do que muitos sequer imaginam.
O papo se estendeu e até parece que embolou né? Mas não! Isso também é movimento, dinâmica, transformação.
E não poderia ser diferente, afinal todos nós somos frutos desse movimento natural do cosmo, dessa natureza que se reinventa a cada dia, se transforma. A diferença, para mim é a essência e, nisso, vejo que nossos queridos txai mais uma vez nos mostram o caminho. Afinal: “Sou moderno, sou índio?” - Certo Dedê Maia?
E assim, nesse movimento, por vezes cíclico, termino esse texto, voltando ao ponto onde comecei, à questão do museu. Pois é somente ele que ‘vive’ do passado, que fica ali, estático, congelado no tempo.
Entendeu, cara pálida?
Boa semana a tod@s!
Todas as imagens são de autoria de Ion David, da empresa Travessia Ecoturismo.
Adorei o artigo! grato por publicar minhas fotos! grande abraço!! ION
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