Autor: Petterson Silva |
Por: Raial Orotu Puri
Graças à benesse do meu irmão Roberto, eu recentemente passei a ter acesso ao fantástico mundo do Netflix, e, embora não esteja em condições de aproveitar muito esse privilégio classe média, devido às minhas limitações de tempo e necessidades de dar conta de uma infinidade de demandas, vez ou outra, permito uma pequena parada para assistir algum filme ou série. Foi assim que, dia desses, me interessei por assistir “The Oa", uma série de oito capítulos que conta a história de uma moça que, tendo estado desaparecida por sete anos, reaparece envolta em vários mistérios, dentre eles, o fato de ter recuperado a visão.
Trata-se de um enredo muito envolvente, que mistura ciência e espiritualidade, tendo como pano de fundo as EQMs (experiências de quase morte), e que abre muita margem para reflexões acerca da vida, das escolhas e suas consequências, dos propósitos da existência e dos conceitos de liberdade e prisão. Sobretudo a dicotomia entre ser livre e estar preso é bastante trabalhada na história, em que a personagem principal deseja desesperadamente voltar para o lugar aonde ficou cativa, a fim de buscar aquilo que deixou para trás.
Um dos pontos centrais da série é a possibilidade, mediante certos gestos, carregados da intenção e da intensidade necessárias, de ser capaz de libertar-se, abrir um portal dimensional e escapar de uma realidade cruel, acessando um outro lugar, que não seria a morte, mas um estado de ‘mais vida’, um outro plano, além e maior que este.
Seja pela percepção de um eco entre uma coisa e outra, seja porque na semana passada aconteceu um certo ‘aniversário’ nem um pouco comemorativo, o fato é que o enredo dessa série acabou me lembrando de uma conversa e de um fato que testemunhei no ano de 2015, quando estive no Mato Grosso do Sul, e pude encontrar uma das pessoas mais extraordinárias desse mundo, a Nhandecy Damiana, cacique da Tekoha Apyka’i.
Bom, e sei que falando desse jeito pode parecer só um dos meus muitos momentos “Maionese Airlines” (ou, no dizer goiano, aquela hora em que a pessoa “pulou o corguinho”), mas apesar de toda a distância entre uma série de ficção em boa parte ambientada nos EUA e a realidade de um grupo Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, a verdade é que essas equidistâncias podem guardar suas semelhanças, inclusive no coeficiente de surrealidade e contradição que constitui o cotidiano dos dois casos.
Autora: Heloisa Paim |
No ano de 2015 eu fui pela segunda vez à cidade de Dourados no Mato Grosso do Sul. A primeira tinha sido no ano anterior, para apresentar um trabalho em um evento acadêmico promovido pela Faculdade Intercultural Indígena, vinculada à Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. Ia escrever aqui que a segunda “visita” àquela cidade tinha sido completamente diferente da primeira, mas em tempo me recordei que nesse estado inteiro banhado pelo mar de soja, há duas coisas que não mudam: os lados marcadamente definidos entre o ódio e a Resistência, e a violência contra os parentes.
A verdade de Dourados está visível para onde quer que se olhe: quilômetros de soja até onde a vista alcança. Caminhonetes caríssimas circulando pelas ruas, enquanto outras tantas esperam pelos compradores nas muitas concessionárias espalhadas ao longo de toda a cidade. O calor absurdo que sobe do asfalto, e torna ainda mais sufocante o ar de poeira vermelha. Indígenas? Há sim, claro. À margem de toda margem, sobretudo das rodovias. Vivendo entre a as cercas, a soja, o veneno, as rodas dos veículos, o ódio, as ameaças e a morte. E ainda assim, resistindo.
Como eu dizia, nem no evento acadêmico, essa violência deu trégua: no GT onde apresentei meu trabalho, dois dos grupos deixaram de se apresentar pelo motivo de que terem acabado de ser informados de que alguém estava morto. Estava morto? Ou Fora morto? A pergunta que a gente nunca faz, porque não é preciso. No fundo a gente sabe, há 516 anos, a gente sabe. Um marido, um irmão, um filho, um genro, um pai, um amigo se fora, e era preciso ir. Ir, às pressas, em parte para chorar o morto, mas em grande parte para proteger os vivos.
A apresentação para os que ficaram, seguiu. Tratava-se de um grupo para falar de educação escolar indígena, e nele, aulas e mais aulas de resistência. Houveram os grupos que reportaram sobre o fato do preconceito que os preteria na hora da contratação aos cargos de docente; o professor que contou que seus alunos não estavam podendo frequentar aulas porque pelo caminho por onde passavam eram ameaçados de tiros (e ele sabe que em Mato Grosso do Sul as ameaças nunca são vazias); os relatos de escolas destruídas, os sonhos que ainda se sonha apesar de toda a dor, e aqueles silêncios tão eloquentes que os parentes Guarani dominam tão bem.
Terminado o evento, retornei, sem deixar de sentir um certo alívio em partir de um lugar onde o ódio aos indígenas é tão evidente que chega a ter forma, e onde a simples ideia de se identificar já abre a margem para ser alvo. Mas e os que ficam? Os que têm nesse espaço seu lugar, seus Tekohá? O único lugar aonde faz sentido estar? Confesso que não imaginava voltar tão cedo ali, muito menos que o faria envolta em tanta dor e urgência.
Acredito que todos estejam mais ou menos familiarizados com a informação, mas o fato é que o ano de 2015 foi o ano em que uma situação de violência que já era constante contra os povos originários naquele estado, ‘explodiu’ em uma escalada sanguinária há muito não vista. Ou, terá sido apenas a informação que ficou mais célere? Quem saberá dizer?! O fato é que naquele ano, dos 137 assassinatos de indígenas ocorridos em todo o país, 36 aconteceram no Mato Grosso do Sul. O relatório anual do CIMI acerca da violência contra a população indígena também registra para o mesmo ano 31 tentativas de assassinato, 18 casos de homicídio culposo, 12 registros de ameaça de morte,25 casos de ameaças várias, 12 casos de lesões corporais dolosas, 8 de abuso de poder, 13 casos de racismo, e 9 de violência sexual (ver link ao fim do texto.)
Autora: Neli Arte |
Dentre as diversas situações de violência, ocorreu o assassinato de Simeão Vilhalva em um ataque perpetrado por milícias contra a retomada da Tekoha Ñhanderu Marangatu, em Antônio João – MS, um Território homologado em 2005, mas que até hoje não teve uma desintrusão dos ocupantes não-indígenas. Como já de praxe, nada de investigação, prisão ou punição de culpados. Esses ataques acabaram fazendo com que aqueles que já quase nada tinham perdessem seus poucos pertences, deixados para trás na fuga desesperada das balas, do fogo e da maldade de quem tudo tem e não permite nem mesmo a vida precária em barracos de lona à beira das estradas.
Diante disso, aconteceu um levante de voluntários em diversos estados, buscando levar um pouco de auxílio, através de cestas básicas, roupas, produtos de higiene, etc. Nada mais do que meras tentativas de curar feridas de bala com “band-Aid”, mas era, talvez, o melhor que se podia fazer naquele momento. Era também uma forma de avisar aos atacantes que, apesar de toda a impunidade, apesar da omissão conivente do Estado, havia sim quem se importava e que ia, do jeito que pudesse, se levantar contra aquela violência. E foi assim que eu fui parar outra vez em Dourados, e pude visitar a Nhandecy Damiana, e a Tekoha Apyka’i. Em 2015, eles lá estavam.
Damiana é a liderança do seu grupo, formado em sua maioria por familiares. Aqueles que ainda estão vivos. Boa parte de sua família, inclusive o marido, um filho e dois de seus netos não estão mais. Foram levados pela violência que naquele estado se tornou cotidiana. E ela, como acontece com muitas mulheres indígenas nesse lugar que alguns chamam de ‘nosso país’, se tornou líder na boca desses túmulos... (Bônus/Easter Egg do texto: senhoras e senhores, eis a 3ª teoria do feminismo indígena.)
Eles nos receberam com carinho, nos falaram de suas dores e de sua luta. Nos mostraram as casas, o pequeno roçado em um cantinho espremido pela soja. E nos mostraram também o cemitério, aonde estão ancestrais e descendentes. Ao todo, nove túmulos, nove vítimas. Mortos em emboscadas, ataques e atropelamentos. Mortos porque são indígenas. Mortos porque seus corpos se interpõe ao delírio do agronegócio. Seus túmulos também estão no meio daquela soja maldita que toma tudo, até a vida...
E foi quando estávamos na Casa de Reza que tudo aconteceu. A Casa em si, era uma simples armação de telhado, coberta de lona, com bancos nos lados e sem paredes. Damiana, junto com o rezador e sua nora cantavam uma canção cadenciada com maracás, a pedido dela, sua mensagem era filmada “para que todo mundo veja o que a gente passa aqui”. E então, no meio do canto, ela repentinamente elevou a cadência um pouco acima dos demais que a acompanhavam, e, repentinamente, eu senti o estalo de algo que se descola, nunca conversei com os que estavam comigo, para saber se sentiram o mesmo, só sei falar de mim, do que senti naquele instante: o mundo pareceu sair do seu curso, tudo ficou repentinamente silencioso para além da voz dela. O som dos carros na BR logo ali perto sumiu, e a luz do dia ficou mais amarelada... Lembro de ter pensado toscamente se era daí que vinha o nome ‘Dourados’, e foi então que notei que, em volta de toda a Casa onde estávamos, apareceu um enorme enxame de abelhas.
Eu, com meu status de alérgica demarcado desde a infância, ao nível ‘você-vai-ter-um-choque-anafilático-se-tomar-uma-só-picada’, eu senti uma onda de pânico invadir-me, mas, assim como ele veio, ele se foi, quando me dei conta do que de fato estava acontecendo, de que aquilo que eu via à minha volta não era desse mundo; as abelhas estavam à volta toda, zumbindo e amarelando o ar, mas nem uma única entrava no espaço da Casa. Até porque, sequer estávamos ainda em Dourados, ou no mesmo mundo de soja e morte. Damiana havia dobrado o mundo, e nos levado todos dali.
Autora: Lu Lacerda |
Me entendam: e se existe um lugar onde abelhas não sobrevivem, é nesse estado, onde praticamente a única coisa verde que existe é a soja transgênica e envenenada, e onde a sobrevivência dos Kaiowá – em Guarani, “habitante da mata” – também é combatida. Aquelas abelhas vieram porque Damiana as chamou, desde um lugar onde não há morte, nem dor, aonde as matas ainda vivem e abunda a caça, os rios são limpos, e há flores e frutos. Aquelas abelhas não fariam mau a nenhum de nós. Não sei dizer quando tempo aquilo durou, só sei que assim como elas vieram, elas partiram, em algum momento em que o canto mudou de novo sua cadência. O Instante Sagrado se fora, mas me sinto grata por tê-lo visto, por ter dirigido por quase 20 horas sem parar, apenas para estar ali e ver. Chorei copiosamente, pela beleza daquela verdade que eu vi, num pequeno lugar de esperança no meio daquela imensidão de desolação.
Lembrei-me das palavras que ouvira na noite anterior, ditas por Matias Beno, que nos deu pouso depois da longa viagem: “Tem algo que eu aprendi, nesse tempo que estou aqui, e é uma lição de fé que eu não conhecia. Eu sempre me perguntei, como é que eles podem ter esperança e ainda resistir, apesar de tudo o que acontece com eles. Pois eu agora sei: Eu vi que o rezador, quando está ali cantando e tangendo o seu maracá, ele é capaz de ver para além dessa dor terrível, ele olha e vê o mundo além, que eles chamam de Terra Sem Males. E, no fundo, é isso que o faz seguir lutando: ele sabe que é livre, de uma liberdade que só ele tem”.
Sim, lá estava o sobrenatural, o Sagrado. A liberdade. Tudo aquilo em um pequeno acampamento feito de lona e pedaços de tábua, de um roçado esmagado e de túmulos que marcam o lugar de descanso daqueles que partiram, todos violentamente tirados da vida. É por eles também, eu bem sei, que Damiana não dobra de vez o mundo e não parte para a liberdade que ela chama com sua voz. Porque a Tekohá não pode ser abandonada, não enquanto esse mundo ainda é tão hostil a ponto de desrespeitar esse lugar considerado santificado.
Partimos de Dourados algumas horas depois, nesse mesmo dia, após visitar ainda a Reserva Indígena que lá existe. Uma das oito do MS. Criadas entre 1915 e 1928 pelo extinto SPI, as oito Reservas somam 18 mil hectares, e seu objetivo seria, à época em que foram concebidas, absurdamente destinadas a abrigar toda a população e os diferentes povos existentes no estado. Hoje estão superpopulosas e enfrentam uma infinidade de problemas daí resultantes, mas principalmente derivados de ser indígena em um estado onde isso constitui motivo para ser odiado, e ter negados direitos mínimos, inclusive, o de Viver. Quem não suporta a vida confinada e longe de seus locais de referência, tenta reocupar os Tekoha – ou se mata*...
Deixar a reserva ou tentar reocupar os territórios perdidos se trata de uma escolha entre um ruim, e um ruim também, mas ao menos, junto do lugar de ser o que se é (a tradução mais “simples” para a palavra Tekoha). É o caso da Apyka’i.
Quando partimos, Damiana e os seus estavam no Tekohá, naquilo que ainda é possível ser o Tekohá. Mas isso mudaria menos de um ano depois. Lembram do ‘aniversário’ que eu citei? No dia 07 de julho de 2016, Apyka’i foi despejada pela QUINTA VEZ em 18 anos de retomada e tentativa de ocupação do território tradicional. De novo as casas, o roçado, e as criações foram destroçados. De novo, aquele povo foi colocado para fora de seu território por um grande efetivo policial, embasado em uma ordem de despejo assinada pela Justiça Federal de Dourados. Foram despejados à margem da BR 463. Voltaram de novo ao ponto de sempre: o outro lado da estrada, no limite estreito da faixa de terra entre o asfalto e outra cerca. Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outra vez.
Para garantir que não voltem, instalou-se uma milícia privada que controla seus passos. Mas Damiana não pode, nem vai partir, ainda. Não pode dobrar o mundo, ainda. O Tekohá precisa ser protegido. Os túmulos precisam ser protegidos. E é a voz, é o amor de quem nunca esquece, de quem jamais abandona os seus que os protege, acima de tudo. O Tekohá precisa ser reconstruído, repovoado, sobretudo das vozes dos vivos...
Fonte: Site Elo 7 |
Lembro de ter lido uma mensagem dos rezadores Guarani, quando dos ataques de 2015. Eles diziam que estavam se reunindo de novo, e que iam cantar os cantos esquecidos, cantos que iam fazer o tempo correr devagar, e fazer o branco parar, da única forma que julgavam possível. Dizia que o fariam, quando sentissem ter chegado o tempo. Às vezes, muitas vezes, quando vejo uma nova notícia de ataque, uma nova corrida pela vida, um novo despejo, – porque despejo também é Genocídio! – um novo pedido de socorro vindo dos parentes Kaiowá, quando o medo me toma a garganta e pouco mais há a fazer além de dar o alarme, eu lembro dessa mensagem, e das abelhas, e do som do maracá, e da voz de Damiana. E então eu peço para que esse tempo chegue logo, e que nunca mais nenhum Tekohá seja vilipendiado pela soja e a maldade dos brancos, e que a Terra Sem Males possa Ser, de novo e para sempre...
PS: Sei que alguns dos que leram podem estar pensando “ué, mas a senhorita ‘sobre o sagrado não se fala’ acabou de falar?” Bom, sim. Contei isto por duas razões básicas. A primeira é para demonstrar o que eu tantas vezes disse em meus textos criticando a ênfase que se dá aos rituais xamânicos amazônicos, como se tudo que existe de ‘espiritual’ e grandiosos só estivesse aqui. (Pelo contrário, acredito que uma das coisas mais espirituais do mundo é manter a fé num lugar aonde até a esperança não viceja, mas isso é o que eu acredito, e ninguém precisa concordar comigo!). A segunda razão, tem a ver com o pedido da própria Damiana, de que registrássemos tudo, e contássemos ao mundo tudo o que vimos lá...
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* Os índices de suicídio entre indígenas são altíssimos em relação à população não-indígena brasileira, e ainda maior entre os Guarani e Kaiowá.
Algumas informações para saber mais:
Uma reportagem muito boa do Repórter Brasil sobre a Tekohá Apyka’i. É uma matéria de 2011, mas diante de tudo que houve antes e depois, permanece ainda atual.
http://reporterbrasil.org.br/2011/12/uma-tragedia-indigena/
Links para o relatório do CIMI contendo dados anuais da violência contra os indígenas em diferentes estados. (Os dados de 2016 serão publicados até o final deste ano).
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).
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