segunda-feira, 28 de agosto de 2017

COISANAWA: Cuidado. Nem todos que usam cocar por aí são índios...

Cocar Bororo
Por: Jairo Lima

Realmente o Acre não é para os desavisados. Principalmente o Acre indígena.
Nesta semana veio a público uma matéria envolvendo a prisão de um indígena, na cidade de Feijó. Prisão esta que desencadeou manifestações de todos os tipos: das sensatas aos mais estapafúrdias possíveis. É o assunto do momento no palco virtual das emoções, onde todos tem sempre uma opinião, geralmente desprovida de mais conteúdo do que “eu acho que”.

Durante a semana, enquanto voava sopapos de todos os lados, como crianças brincando de ‘guerra’, jogando bolotas de lama enquanto escondem-se atrás da cerca, um amigo, a quem prezo muito questionou-me porque ainda não manifestei minha opinião sobre o caso todo. Bem… acontece que não posso ainda expressar minha opinião sobre isso, pois, por questões de ética profissional, não poderei me manifestar até o término das apurações - para quem não sabe, o indigenismo, além de um caminho escolhido há muito tempo, também é minha ocupação profissional. Na verdade, até fico feliz desta restrição, pois, tenho como princípio esperar a comida esfriar um pouco antes de comê-la, a fim de que não passe mal depois.


Se não ia escrever sobre o assunto, então porque citou?
Cocar Irantxe
Porque quis e porque posso. Para os que possuem a capacidade de refletir - pois, da águia admiram a visão em vez de sua capacidade de voar alto -  entenderão que já expus minha opinião nos parágrafos acima.

Mas o papo de hoje, apesar de não versar sobre este problema especificamente,  tem certa transversalidade com essa confusão toda. Porém, o cerne da crônica são os ‘índios fake’ ou, como prefiro dizer: os ‘coisanawa’.

Que esse mundo dos nawa (não-índio) está uma loucura todo mundo sabe. Tem horas que dá vontade de fugir para um local bem distante (no meu caso frio também), onde  racionalidade reinasse, e o caos social e político não fosse a ordem do dia.

É muito comum passarmos por momentos de negação total, como refúgio para nos mantermos minimamente sãos. Quantos não acordam pela manhã com aquela sensação desconfortável de ter que enfrentar o mundão ao sair do quarto? Se algum dos leitores não sente isso, parabéns! Vocês fazem parte de um seleto grupo de bem aventurados, que exibem sorrisos radiantes, com a certeza de que o dia se passará sem nenhum sobressalto, tal qual a execução de um minueto de Bach. Infelizmente não sou assim, os pensamentos afloram dois segundos após abrir os olhos pela manhã e, ns labutas diárias, apesar da satisfação de fazer o que faço, fico sempre a espera de algum sobressalto, tal qual um dos saltitantes minuetos de Mozart.

Coroa Ashaninka
A busca pela sanidade e o equilíbrio são uma constante em minha vida. ‘Rotas de fuga’ e auto-terapias (como a jardinagem e a música) fazem parte de minha vida. E dentro destas rotas, claro, o ápice restaurador é a cultura indígena, a vida em aldeia, conviver e viver o cotidiano monótono da passagem do tempo, que vai desacelerando à cada dia de imersão na comunidade.

E assim, lá se vão mais de quatro décadas de vida nessa toada, e, dentro destas dezenas todas, duas de contato e vivência com estes povos. Mas, nisso tudo, tem um detalhe muito importante, essencial até: não sou indígena. Nunca serei. Posso sim (e sou) considerado ‘parente’ por povos indígena aqui do Aquiry, membro da comunidade, com nome indígena e tal (em dois casos, com direito preparação e tudo, após anos de contato e meses na comunidade, sem essa onda fake de ser ‘batizado’ de qualquer jeito, após algum ritual de cipó estilo ‘ sagrado gourmet’). Tombaria junto com estes povos em qualquer trincheira de luta. No entanto , tenho total clareza para entender perfeitamente o local que me cabe nessa história toda. Sentir-me indígena não me dá o direito de reivindicar uma identidade que, por alguma decisão cósmica que não consigo entender, não me veio com o nascimento, infelizmente.

Digo isso pois fico olhando certas figuras que, em alguns casos sem nem um centésimo do que eu vivi, assumiram para si uma falsa identidade indígena, criando toda uma história de vida para justificar essa identidade. São figuras conhecidas até, fáceis de achar no facebook ou nas ‘rodas de conversa’ dos fóruns, ‘zaps’ ou páginas diversas.

Faixa Huni Kuin
Estes ostentam um ‘nome’ indígena que, em geral, nada tem a ver com o processo de ‘nomeação’ tradicional no povo a que dizem pertencer. Ostentam uma parafernália de enfeites estranhos, e muitas vezes exagerados, geralmente ‘chupados’ de diversas culturas indígenas mais conhecidas (pois raramente conhecem a fundo detalhes das culturas que dizem pertencer). Essas estranhas figuras geralmente se dividem em dois tipos: Uma versão black bloc, onde sempre estão envolvidos nas mais diversas presepadas que envolvam violência, depredação e protestos por causas tão bizarras quanto eles mesmos e; Os xamãs/pajés, que alardeiam os poderes fodásticos que possuem, e que fazem o possível para que todos saibam que ele é ‘pajé’, procurando falar de coisas espirituais, e ostentar nas redes sociais frascos com ayahuasca, rapé, ou cocares estranhos, imagens de bichos e o escambau. Em geral, os que se passam por xamã/pajé constituem a maioria dessa estranha ‘fauna’.

O interessante que não existe nem um único ‘coisanawa’ que queira ser Guarani-Kaiowá, e se coloque na frente de batalha fundiária deste povo, sob o risco de levar chumbo de jagunços ou ter as mãos decepadas. Claro que não! Como gosta de dizer meu querido amigo egípcio Ali: Não dá rock!

Eu entendo que a negação sobre si mesmo pode levar alguém a transformar-se, a querer ser outra pessoa. O que acho muito louco nisso tudo é que estes assumem uma identidade indígena, e, em todos os casos que conheço, nenhum destes ‘convertidos’ contribuem positivamente para a luta pelos direitos dos povos originários. Ao contrário, essas criaturas só atrapalham e marginalizam a causa.

Cocar Karajá
O que chama a atenção é que esses caras ainda conseguem arrumar uma penca de desavisados que os seguem e, em alguns casos, chegam a idolatrar os figuras. Isso me intriga, pois, na era da informação em que vivemos, basta umas poucas horas de estudo na internet para desmascarar esses pulhas. Essa é uma questão interessante: seguidores. Estes, assim como os que assumem uma falsa identidade, também estão em busca de dar sentido às suas vidas, em busca de algo, como uma carência que não tem fim. No entanto esses seguidores, pelo menos no caso dos ‘pajeca coisanawa’ não fazem mal a ninguém, se não a eles mesmos por entregarem-se aos cuidados espirituais de quem não tem condições de cuidar nem de si mesmo.

O que acho mais doido é essa fixação obsessiva, de muitos destes, em se apresentar como indígena da amazônia, em especial do Acre. Eu hein!! Mas tem um detalhe: não qualquer povo do Acre, e sim, os mais conhecidos mundo afora. Advinha quais. Interessante né? Creio que isso é para que se tenha mais status ou talvez, porque esses coisanawa não conhecem muito sobre os povos daqui.

Pareço estar chateado com isso tudo né? Respondo: Tô mesmo. Ou como se pronuncia aqui no Juruá: Tô meeermú! E como não estaria? Eu não tenho nenhum trauma ou inconstância de caráter, que tenha me feito chegar a uma negação igual a desses caras, mas, apesar de não me identificar como sendo índio, eu me identifico e me alinho totalmente com esses Povos, melhor, ainda emanado na reunião que tive sexta com o Biraci Brasil Nixiwaka Yawanawá, ousarei na definição: com estas civilizações. Por isso presepadas como as que estes caras fazem me irritam profundamente.

Dia desses imprimi os  perfis do Facebook  dos caras e mostrei para alguns dos caciques, dos povos que estes dizem fazer parte. Creio ser desnecessário dizer qual a reação destes.
Cocar Kayapó
Aproveito este texto de hoje, já que estamos tentando deixar as coisas bem claras para responder um questionamento que vez ou outra me chega, via mensagem ou mesmo através de ligações telefônicas: “Porque você não cita logo os nomes deles”? - Respondo: “Pelo mesmo fato de que não me apresento como indígena, ou seja, por não ter este direito, por não trazer para mim tal poder que não me cabe, em miúdos: por saber qual o meu lugar nisso tudo”. - Respondido? Mas não pensem que a coisa está solta não. As lideranças estão pedindo cópias destes perfis para fazerem manifestações públicas sobre estes, o que, para certos grupos que conheço pelo Sudeste e Sul, vai ser um choque danado.

Já está enchendo a panelinha ver as medicinas e rituais dos povos da amazônia serem macaqueados por falsos índios, pajecas, terapeutas e o escambau, que descobriram uma verdadeira mina de ouro e de possibilidades, e, por isso, infestam (isso mesmo, o verbo infestar é proposital) as redes sociais oferecendo-se para rituais, terapias, ‘sagrado disso ou daquilo’. Para piorar descobri que tem um grupinho lá pelo Sul que anda fazendo chá de misturas de plantas que dão ‘barato’ e dizem ser ayahuasca, para enganar os desavisados. Era só o que faltava. Depois morre alguém e sabem que vão culpar? Eu vos digo: o ‘pajé’ indígena que veio do Acre.
Cocar Rikbatisa

É por isso gente boa, que coisas como a que estão acontecendo hoje aqui pelo Aquiry envolvendo muitos jovens indígenas não vieram ‘do nada’. Fazem parte de uma cadeia de eventos e situações que só contribuem para essa confusão toda. Não se iludam. Abram os olhos e a mente. Sejam espertos e busquem saber mais sobre estes messias de araque que se auto-promovem por aí. Não se deixem levar para batalhas sem causa justa, nem deixem que esculhambem com seu espírito. Como bem me ensinou há quinze anos atrás meu compadre Ali Zeilton, um muçulmano egípcio que muito viajou pelas aldeias acreanas: Confia em Alá, mas amarre seu camelo.

O meu está bem amarrado e o de vocês?

Boa semana a tod@s!


Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.

2 comentários:

  1. Ótima crônica, parabéns!
    Tá na hora de dar um basta nesses aproveitadores e as lideranças indígenas precisam começar a divulgar mesmo, nome foto e dizer que não pertence ao povo. É triste, é de chorar ver essa bagunça que estão fazendo com os povos Indígenas do Acre. Tem muita gente usando o nome do povo pra se promover e ganhar dinheiro e o pior que são pessoas usuárias de drogas que misturam tudo e fazem uma bagunça da cultura.Vejo que são destruidores sim destruidores e sem respeito, sem amor só pensam no próprio umbigo.

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  2. Excerto Facebook da Daiara Tukano:
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    Daiara Figueroa
    Daiara Figueroa Hahahaha bomba hein... polêmica polêmica, pior q tem muita etnogenese ultrasincretista por aí que pega carona nisso tudo, num esquema "não seja marginal, seja índio" onde derrepente é capaz até de surgir um povo inteiro onde todos são lideranças ou pajé de alguma coisa, pq existe um estereótipo ou ilusão sobre alguma "glória" de ser indígena. A gente vai só observando até onde vai isso tudo. Até também pq tem quem ache que basta contratar Antropologo pra comprar laudo, ou então comprar fazenda chique pra gringo beber ayahuasca e chamar de aldeia. O buraco tá mais embaixo que só usar um cocar. Tem aqueles que acham que ter rani é suficiente para enganar os parentes, e há Casos famosos de quem falsificou rani ou inventou um jeito de tirar para virar cacique de aldeias invisíveis e se autopromover como liderança de movimento indígena. Tem uns até que tiram foto com ruralista e fazem o jogo de quem pague mais para virar "o índio que o ruralista quer"... Outros que vão em câmara municipal e até em congresso nacional usando cocar e como para muito Branco "índio é tudo igual" basta um cocar e uma pinturinha. Esse buraco é muito fundo e é importante os verdadeiros caciques, lideranças espirituais tradicionais dos povos ficarem atentos e cientes disso pq esses farsantes podem prejudicar a imagem de um povo inteiro com uma única cusma. Prejudica o povo e é totalmente irresponsável com os que caem em papos tão absurdos que são sérios casos de estelionato, principalmente no que toca à espiritualidade. Um exemplo interessante é uma denúncia do cacique Nailton pataxó hãhãhãe da aldeia Caramuru, com relação a uma certa pessoa que andou em espaços oficiais se declarando como cacique pajé tupinambá Caramuru, todo vestido de acreano, Inventando que fala na língua pano, e já querendo organizar festival internacional de medicinas indígenas no interior de São Paulo... o cacique da aldeia Caramuru Foi o único que se manifestou a respeito, e isso pelo uso inapropriado do nome do povo, ele nem mencionou o uso das medicinas no esquema empresarial da tal aldeia.... mas enfim... são apenas reflexões sobre causos que tem acontecido por aí, e do buraco é só à beira... os casos não tocam só o acre, ou os povos brasileiros, já até apareceu gente se declarando indígena até por ter sido Lakota na última reincarnaçao...

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