Por: Raial Orotu Puri
Dia desses eu estava me dedicando a uma tarefa inglória: visitar perfis e páginas de internet atrás de situações de desrespeito/ crimes contra o patrimônio indígena. Faço isso vez ou outra. Não por que ache a tarefa interessante. Muito pelo contrário, aliás. É triste, decepcionante e revoltante, mas é necessário na parte que me cabe nesse latifúndio.
Além de ter encontrado uma porção de casos bem sérios de apropriação cultural e falta de vergonha na cara made in raion, encontrei também algumas coisas que me fizeram duvidar enormemente da seriedade e da sanidade de algumas pessoas – isso dito tanto daquelas que ofertam determinados artigos quanto daquelas que os adquirem.
Neste texto, gostaria de falar um pouco disso. E sim, por óbvio que, ao falar disso, entrarei também nas questões de apropriação cultural, ainda que esse não seja exatamente o ponto central daquilo que quero tratar. De qualquer forma, um assunto tende a tocar no outro, porque, é claro, tem sempre a questão da salada Frankenstein que é a relação que muitos brancos têm com o sagrado indígena, mas seja como for, a princípio, quero falar menos de apropriação cultural e mais de ‘alopração’ cultural.
Um dos sites visitados por mim se intitula ‘a maior loja xamânica do Brasil’ – embora eu já tenha visto uma boa quantidade de outras bem maiores... – tem sede em São Paulo e vende uma quantidade considerável de artigos, entre terapêuticos, ritualísticos, vestuário e decoração. (No caso específico da sessão de moda, eu tenho repassado links para ‘visitação crítica’ por parte dos parentes para conferir quem foi que deu autorização para uso de nomes e grafismos de uma dezena de diferentes povos, a propósito). Na lista há, ainda, uma sessão especial dedicada ao ‘sagrado feminino’, a qual resolvi visitar por curiosidade, e foi lá que, “Meninos, eu vi!”
... Bom, sei que já falei em outro momento sobre a minha visão nada positiva acerca disso que chamam de ‘sagrado feminino’ e de suas muitas incursões bricoleur em diferentes culturas, mas ainda assim eu sempre tenho esperança que os níveis de absurdo guardem alguns limites, até a hora que a gente descobre que não, simplesmente não existem limites. Eis que encontrei um artigo chamado ‘Yoni Egg’, que era basicamente um ovo feito de pedra, em diferentes cores. Iludidamente, achei a princípio que se tratasse de algum tipo de artigo em referência a Aegon ‘Egg’ Targaryen, ou quem sabe à sua descendente, a famosa e charmosa musa de cabelos prateados da saga As Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin. Então, querendo entender o que fazia o objeto listando dentro do rol das coisas femininamente sagradas, cliquei no link me preparando para ler algo a respeito sobre a transformação de um personagem de literatura em alvo de adoração, o que dentro da cultura nerd nem chegaria a ser de todo absurdo.
Acontece que a leitura da descrição frustrou completamente minhas expectativas nerds, visto que descobri que o ovo nada tinha a ver com a Mãe dos Dragões: eis que o tal produto basicamente é um ovo de pedra utilizado para ser introduzido na vagina, e o fato de ser feito de diferentes pedras, por sua vez, tem a ver com os tipos de poderes ligados a tais pedras, que podem ativar e mexer com diferentes energias do corpo. Destaque para o de quartzo rosa, que, dentre outras coisas “fortalece o amor próprio e liberta de atitude e mentalidade patriarcal”.
Devidamente chocada (com ou sem trocadilho; fica a critério de quem lê...) com o objeto em questão, fui pesquisar mais sobre o tal produto, e após perguntar ao oráculo Google, descobri que o Yoni Egg seria, segundo alguns sites, um artefato “inicialmente vedado ao conhecimento geral” que era usado “apenas pelas concubinas dos palácios reais” – as informações aí variam entre serem originários da China, Índia, Lemúria, Egito Antigo ou Atlântida(!) – com fins de estimulação e tonificação muscular, portanto e obviamente, com fins muito mais carnais do que necessariamente santos. Descobri, ainda, que originalmente os ovos seriam sempre feitos de jade, uma pedra muito importante dentro da cultura oriental, e que a prática foi levada para o ocidente por médicos que eram Taoistas. Em alguns dos sites em que entrei, o objeto é propalado como uma espécie de oitava maravilha do mundo em termos de cura e empoderamento feminino, resgate, cura e aceitação do corpo e aproximação da mulher com o centro do poder feminino (o útero), e que foi tornado finalmente acessível a qualquer mulher – que possa pagar seu maravilhoso preço, é claro.
Bom, antes de mais nada gostaria destacar que se as concubinas dos palácios usavam esse objeto com fins de tonificação muscular e, portanto, maior obtenção de prazer sexual – talvez muito mais de seus senhores do que delas próprias, diga-se de passagem – acredito que não existe nada de errado em vender um produto idêntico com os mesmos fins em um site. Também não existe necessariamente nada de tão errado em atrelar uma prática de benefícios físicos a uma concepção mística, filosófica ou religiosa, sobretudo uma que trabalha e lida bastante com pontos energéticos, e eu não sou nenhuma especialista em nenhuma dessas coisas para atestar que deste o início não foi sempre assim dentro do contexto aonde a prática era usada. Do mesmo modo, também não existe algo a princípio tão errado na utilização e adaptação de uma prática por uma outra cultura, mas por outro lado, acho que se deve sempre colocar o pé no freio nessas questões todas, para evitar alguns desvirtuamentos no percurso, e principalmente, para evitar mau-caratismo na hora de vender um produto.
E é aí que entra a minha birra com as coisas que se imiscuem no sagrado: a criação de ‘nichos de mercado’, a geração de renda a partir dessa aura e desse selo, mesmo naquilo que, a princípio, não o tem. E diria que este é um exemplo bastante gritante desse caso.
Note-se: o produto bem poderia entrar numa lista de produtos de sex shop, mas acontece que aí, talvez o mercado consumidor não fosse tão grande. Então, porque não sacralizar a coisa? E mais ainda, porque não incluí-lo no novíssimo seguimento feminismo-namastê não é mesmo?
Porque veja-se, como já disse no texto tratando do chamado ‘parto natural’, não é possível negar que a adoção de determinadas práticas advindas de contextos e culturas tradicionais em substituição a métodos ocidentais não seja salutar para melhorar a qualidade de vida de muita gente. Nesse sentido, não tenho necessariamente uma crítica a que mulheres, independentemente da etnia a que pertencerem, busquem alternativas e soluções para melhoria de suas próprias vidas, inclusive no aspecto de sua sexualidade. Mais ainda, é óbvio que tônus da musculatura em questão não tem necessariamente a ver ‘apenas’ com sexo, mas com diversas outras questões bem importantes para a saúde feminina e, portanto, não estou aqui questionando o uso do artefato em si, tampouco, a potencialidade e poder da energização com pedras. Do mesmo modo, não tenho nem pretensões de me arrogar em juiz do modo como cada mulher lida com seu corpo ou melhora a sua relação com ele, e acho que qualquer iniciativa ou busca pessoal nesse sentido é mais do que válida e necessária.
Mas, gente, né? Existe realmente necessidade de sacralizar uma coisa para ser importante? Não basta vender um artefato para melhoria do tônus muscular intravaginal feminino? A vagina precisa ser sacralizada para vender mais? O prazer sexual precisa ser santificado para que os produtos a ele relacionados fiquem mais caros? Mas, acima de tudo, eu queria mesmo era saber, Minha Nossa Senhora da Falta de Noção: no que é que colocar uma pedra rosa dentro do seu corpo vai contribuir para a libertação do patriarcado?
Desculpem, mas tudo o que eu tenho a concluir de ofertas como essas é que realmente,
definitivamente e sem qualquer sombra de dúvidas o movimento intitulado ‘Sagrado Feminismo’ ou sofre de uma séria falta de caráter, ou de mais séria ainda falta de consciência da realidade do mundo, o que é sem dúvida agravado pelo fato de ser formado por um grupo bastante específico de mulheres, aquelas que têm dinheiro para gastar com esse tipo de objeto (Ah, sim, esqueci de comentar que os tais ovinhos custam mais de 100 reais cada, mais frete...), e, precisamente por isso, por viverem em um mundo bastante à parte e bastante blindado a problemas do mundo real, é detentor de uma série de privilégios, inclusive o de acreditar nos efeitos da libertação do patriarcado a partir da introdução de ovos em suas vaginas.
É pena só que, lá nos níveis muito mais abaixo do edifício, ou lá do lado de fora dele, ao relento, tem um mundo onde mulheres recebem 30% menos que homens para desempenhar as mesmas funções, têm mulheres que precisam arcar com dupla e tripla jornada de trabalho e criam sozinhos filhos de pais que recusam-se a assumir a responsabilidade, têm mulheres sendo mortas todos os dias, tem mulheres sendo estupradas todos os dias, tem um país que é o campeão de assassinato de mulheres trans, tem um país onde mulheres negras são as maiores vítimas nas estatísticas da violência, e onde as mulheres indígenas sequer entram nessas estatísticas.
E é exatamente porque eu falo desde esse mundo, aonde é arriscado viver e difícil sobreviver unicamente pelo fato de ser mulher, aonde não existem paredes e blindagens que me livrem de muitos riscos (e mesmo assim, não nego que eu seja bastante privilegiada se me comparar com muitas outras!), e aonde não existe nem óculos nem ovo cor de rosa para tornar minha realidade mais bonitinha, é que eu digo que comercializar um produto desse e com esse tipo de propaganda é tão absurdo que chega a ser até mesmo ofensivo.
E, por fim, mas nunca por último, queria só dizer algumas palavras sobre uma frase que comumente se faz presente nos anúncios e textos ligados a produtos/elementos que são originários de culturas não-ocidentais: o ‘finalmente acessível para todos’. Dia desses, por exemplo, vi uma postagem de facebook de uma amiga, que justamente falava de um ritual antigo, fechado e reservado de mulheres de um determinado povo indígena norte-americano. No post, relatava-se que aquela cerimônia, que se manteve velada e vedada a quaisquer olhos estranhos por mais de um milênio, ‘finalmente estava acessível a todos’ porque alguém convencera uma das participantes a levar um gravador para dentro da caverna aonde se dava a prática, e que, por conta disso, aquele canto vedado, fechado e inacessível por mais de um milênio fora apresentado em uma universidade por um professor a seus alunos, e que também vinha sendo difundido para meditação, notadamente reuniões de mulheres em busca do resgate do sagrado, etc, etc, etc, etc... Um etcetera para cada palavrão engolido acerca de tal post. (A propósito, meu sincero agradecimento à sensibilidade e compreensão da amiga em questão quanto a minha comunicação de contrariedade por emoticons).
Ok... eu sei que minha visão radical sobre a necessidade da manutenção do Segredo a respeito do que é Sagrado me torna bastante irritadiça com casos desse tipo, e sei que é possível até que a tal cerimônia seja só uma ficção criada para tornar mais especial um canto, e que não tenha havido o caso de profanação narrado acima. Mas ainda que este caso nunca tenha ocorrido, permanece o incômodo nessa necessidade do mundo raion em necessariamente ter de acessar e consumir segredos pertencentes a outras culturas. Consumir é um bom verbo, porque fala dessa fome eterna de conhecer, saber, ver como se faz, usar e, claro, descartar, porque, afinal de contas, o item é só mais uma bugiganga comprada num site qualquer, pela qual se pagou um preço, mas que nem por isso é algo que tenha valor, importância, significado para quem passou a ter aquilo apenas porque pagou.
Digamos que, se ao contrário da minha tentativa de ser otimista pensando que a história narrada no post de minha amiga era fantasioso, e que de fato exista sim uma caverna aonde mulheres tiveram um culto fechado e restrito por mais de mil anos. Será que realmente não passa pela cabeça de raion (não-índio) que é um completo absurdo ‘convencer’ uma dessas mulheres a levar um gravador para dentro da cerimônia, que é uma aberração completa colocar essa música para tocar numa aula em uma universidade, e que é uma profanação jogar a música no youtube para ela estar ‘finalmente acessível a todos’?
É... eu sei. É realmente complicado querer explicar a noção de valor para quem só pensa em preço.
* Todas as imagens foram retiradas do site Pinterest.
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC)
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