Por: Raial Orotu Puri
Tendo retornado há poucos dias de uma visita a uma terra indígena, esta até então desconhecida minha, sinto necessidade de escrever um pouco sobre a experiência, que embora reúna sempre algumas sensações e impressões recorrentes tende a ser também carregada de singularidade e novidade. Quero falar aqui tanto do vivido no contexto da estadia, como daquilo que ouvi no retorno, e que me parece refletir em alguma medida uma percepção que venho construindo acerca do que tenho visto nesses tempos em que ‘conheço’ o Acre.
Como dito, eu visitei pela primeira vez a Terra Indígena Igarapé do Caucho, no município de Tarauacá, um território huni kui, povo esse há muito conhecido meu de outras paragens, outras terras, outras estadias e outros rios. Mas assim como um rio não é o mesmo a cada curva, e como a terra do barranco se molda em novidade a cada nova estação de inverno, assim também esse povo é sempre novo quando visto em outra ocasião e espaço.
Minha visita se deu no contexto da II Assembleia Extraordinária da Fephac. De início, o evento estava previsto para acontecer na Aldeia Pinuya, mas devido a uma situação logística, a reunião foi realocada no Caucho, terra mais próxima e quase similar em termos de acesso. É claro que, ‘acesso’, em termos de Acre acaba sendo influenciado por aquele fator chamado ‘BR-364’, que acaba servindo de termômetro de empenho e dedicação para qualquer alvo que para ser alcançado implique em percorrê-la. E, assim, em face de ter de encarar a personificação do verdadeiro significado de ‘estrada ruim’, a Assembleia teve seu início somente um dia após o previsto no calendário.
E por lá, pude acompanhar parte das discussões, e sentir aquele pequeno calor de constatar sinais de que o trabalho de auxiliar os parentes a defender, e principalmente de indicar as ferramentas jurídicas para exercer a defesa ativa de seus direitos deu alguns sinais de resultados, apesar de isso jamais ser motivo de descanso quanto à vigilância. Porque a verdade é que cada vez tenho mais a certeza de que este estado de ‘está tudo bem agora e não existe nenhuma ameaça com o que se preocupar’ é inalcançável. Na verdade, nada está tudo bem. Porque por maiores que sejam os esforços e as conquistas, há sempre do outro lado os raion (não-índio)com sua incansável sanha de consumir e se apossar daquilo que não lhes pertence.
Comentei brevemente sobre o fato em meu texto passado. Sobre os inumeráveis casos que encontro nas redes, através dos quais é possível atestar essa verdade. Em todo o lugar, o tempo todo, o que mais vemos são os casos de apropriação e desrespeito. Trata-se de uma luta constante, que não tem grandes chances de acabar, precisamente pela percepção distorcida que os brancos têm do sentido de propriedade, notadamente quando o bem em questão não é deles.
Não pude acompanhar a Assembleia até o final dessa vez, visto que se fazia necessário estar em Rio Branco a partir do dia 08, a fim de tomar parte em outro compromisso de trabalho. Parti levando comigo esses pensamentos, observando o amarelo ser substituído pelo laranja no céu da tarde, e vendo mais tarde a lua se erguer majestosa sobre a floresta e o rio durante o percurso de pouco mais de uma hora. Embalada pela beleza do céu mais belo do mundo, segui no rumo da cidade. Impossível fugir da melancolia desse caminho de volta para o mundo não-indígena, sobretudo quando a realidade para fora do isolamento é perpassada por tudo isso que, resumidamente, chamamos de ‘contexto atual brasileiro’.
As cidades, mesmo as pequenas, e mesmo no Acre são sempre lugares onde um indígena será frequentemente admoestado de que ele ali não é bem-vindo. Nas horas em que estive na rodoviária aguardando o ônibus, e no percurso de volta para Rio Branco fui por quatro vezes relembrada dessa verdade, através de conversas e frases soltas eivadas de preconceitos acerca daquilo que são – somos – os indígenas, suas práticas e sua cultura. Ouvi insinuações sobre drogas, sujeira, roubo e até mesmo o incrível mito do salário vitalício que cada índio recebe do governo.
Embora naqueles momentos eu estivesse muito mais preocupada e tensa com as notícias dos ataques incendiários a veículos e prédios públicos que se espalharam por todo o estado e atingiram até mesmo o ônibus fretado para levar uma parte dos participantes da Assembleia da Fephac, não está na minha capacidade ignorar esse tipo de fala. E, por mais que eu esteja efetivamente acostumada e ‘vacinada’ contra esses argumentos racistas, não posso me furtar de sentir um pesar enorme por pensar na perspectiva de que acabara de sair de um evento indígena aonde, dentre outras coisas, se discutiu sobre os muitos casos de apropriação cultural que diuturnamente são verificados aqui nestas mesmas bandas.
Que coisa curiosa é o racismo, não? A cultura indígena é realmente algo tão interessante que todo mundo quer tomar para si, por outro lado, os indígenas são alvos constantes de divagações racistas sobre essa mesma cultura. Resumidamente, e valendo-me outra vez de uma ótima paráfrase colhida do movimento negro “no Brasil está cada vez na moda ser índio, desde que você não seja um”.
E é assim que se pode existir no mesmo tempo e lugar dois posicionamentos tão distintos e discrepantes: de um lado, o constante enxame de gafanhotos raion vindos de todas as partes do mundo, com suas homilias de paixão pela ‘cultura indígena’, – ainda que isso que eles consumam como ‘cultura indígena’ seja algo devidamente pasteurizado, descaracterizado e gourmetizado para atender ao paladar peculiar de quem não tem muito compromisso com tradição e respeito – e seus cantos de sereia que acabam atraindo uma lastimável quantidade de parentes incautos; e, de outro lado, a profusão de outros tantos raion (não-índios) racistas que acreditam que a única coisa admissível para um indígena fazer é desaparecer.
Em um e outro movimento, inegavelmente, eu vejo racismo. Pois sim, o racismo também está diretamente relacionado nos crimes de apropriação cultural. Que outra palavra pode existir para esse desrespeito infinito de se achar no direito de invadir espaços e se apropriar de saberes ancestrais, de simplesmente leva-los e ‘adaptá-los’, vende-los e lucrar em cima deles? Há outro nome a ser dado para a atitude revoltada para com qualquer tentativa, mesmo a mais educada, de indicar a impropriedade desse tipo de prática? Se há outra forma de ver tais situações, ela não habita meus olhos e percepção.
Pois é... Acontece que o Acre, com toda a singularidade, é ainda assim parte do mesmo país construído sob séculos de racismo e colonialismo, aonde aberrações como as falas cotejadas na votação do Supremo Tribunal Federal desta quarta-feira , 17/08, podem partir da boca de juristas que, em tese, seriam profundos conhecedores e protetores dos preceitos constitucionais. E é assim que se faz possível que se discuta a datação para direitos ancestrais, que precedem mesmo a noção de país e constituição, e que através de um argumento absurdo e que ignora as inumeráveis violências e expropriações sofridas pelos povos originários, se neguem direitos inegáveis.
O que me consola nessa balança tão desigual de poderes, que é sempre mantida em assimetria pelo poder pecuniário, é que essa não é uma guerra travada apenas neste plano, razão pela qual sei que, apesar de tudo, ainda há esperança. Obviamente, ela não está fundada no mundo branco e em suas leis cujos beneficiários são sempre e exclusivamente eles mesmos. O que equilibra a balança é a tenacidade da reza e dos cantos e a resistência invicta desde 1500.
É a essa força que podemos creditar a vitória que foi vista nesta quarta-feira, no resultado do julgamento das Ações movidas pelo estado do Mato Grosso contra a União, requerendo uma indenização em função da demarcação de terras indígenas. Inversão de valores pouca é bobagem, né? Qual deveria ser o valor da indenização a ser paga por cinco séculos do genocídio que dizimou mais da metade da população originária deste país? Incomensurável. Qual o preço que pode equivaler a tantas mortes, tanto sangue derramado? O que pode pagar o fato de que, mesmo comemorando essa vitória, sabemos que isso está longe de ser a trégua, e a possibilidade de descanso.
Comemoramos, porque assim somos nós. Sabemos tanto de dor quanto de alegria. E, em um mundo que fez tão escassas as razões de se alegrar, é preciso sim celebrar.
Mas não somos ingênuos em nossa alegria. Sabemos que o Marco Temporal é monstro vivo e apenas dormindo. Sabemos que ele um dia desperta, e por isso, permanece o estado de atenção e a necessidade de constante vigilância. Temos ainda entalado na garganta a assinatura do parecer da AGU que estendeu as condicionantes do julgamento da TI Raposa Serra do Sol aos demais casos de demarcação de terras indígenas – apenas para citar uma parte dessa aberração genocida que nada mais é que a reiteração de um plano de extermínio que sempre esteve no horizonte desejado pelas pretensões de um estado que a todo custo quer varrer do mapa tudo o que não for tão branco quanto ele pretende absurdamente ser.
Ainda temos plena consciência de que o Congresso Brasileiro é majoritariamente formado e bancado por quem total interesse que esse plano de extermínio tenha êxito. E ainda temos de forçar a entrada e exigir respeito em um mundo aonde pessoas ainda se acham no direito de julgar ser razoável expressar em alto e bom som suas ‘opiniões’ racistas para com os indígenas, notadamente porque quando a vítima é indígena os crimes de racismo e injúria racial são relativizados e minimizados.
Assim é. Sabemos. Por essas e outras, nesta quarta-feira nós comemoramos sim. Mas a festa termina, e o sol que se levanta no dia seguinte à festa há de nos encontrar de pé e prontos para seguir vigilantes.
* Todas as imagens utilizadas neste texto são de autoria da artista Jane Beata
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC)
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