segunda-feira, 25 de setembro de 2017

ARTESANATO INDÍGENA: Ciclo da vida e da harmonia com a natureza...

Panela de barro, Povo Nukini
Por: Jairo Lima

Nesse dominicus* em que minha pena tecnológica traça as linhas dessa crônica e um resfriado me aflige a paciência, observo que as redes sociais estão pegando fogo, ‘acendidas’ por alguma ‘polêmica da semana’ que surrupiou os ânimos e os neurônios de muitos, penso na semana que passou, em que o espírito do grande pajé  Sapaim Kamayurá voou em direção às estrelas e onde, uma série de pequenos dramas e percepções se interligaram como que traçados em uma teia por uma aranha fantástica, tal qual o ser divino e sobrenatural que ensinou os traços das pinturas do Povo Ashaninka.

No meio de tudo isso comecei a dar publicidade de um projeto que venho desenvolvendo, e que tem tudo pra dar errado, morrer na praia, como costumam dizer. Trata-se de divulgar e fomentar a produção e valorização de uma prática que, pelo menos pelas bandas do Aquiry precisa ser mais difundida, sob o risco de se tornar um conhecimento ‘perdido’ no decorrer dos anos que virão: produção de arte e artesanato a partir de matéria-prima natural, utilizando técnicas tradicional (pelo menos em grande parte) em seu feitio.


E porque que creio ser um projeto fadado a um sucesso insignificante? Bem, por vários motivos, entre estes um fundamental à coisa toda: o mercado de peças artesanais e de arte indígena.
Colar de aruá, Povo Marubo

Venho me interessando muito por esta arte tradicional ‘dos velhos’ como a nova geração costuma chamar, talvez por afinidade trazida pelo andar do relógio humano que, nesta mesma semana, mostrou-me o tanto que esbranquiçou meus cabelos. Talvez, por ver que o movimento social e cultural de cada geração tende cada vez mais ‘para frente’, e não, necessariamente, tem-se a preocupação ou o entendimento que esse ‘pra frente’ pressupõe um olhar para o ‘pra trás’ como referência. Talvez até porque a artificialidade fria e sem alma de algumas práticas venham me incomodando.

Calma, calminha… antes da primeira pedra digo logo que acho normal e válido tudo o que vem ocorrendo, das transformações sociais e culturais dos povos indígenas, por achar que isso faz parte do processo cíclico do ser humano, de sempre transformar suas práticas e sua percepção de mundo. Afinal, seria bem estranho ver os Maias hoje em dia realizando rituais sangrentos como antigamente, certo? Ou achar que, para ser verdadeiro, o indígena precisasse viver, comportar-se ou apresentar-se como nos primeiros tempos do contato. Nada disso, e seria ridiculamente patético alguém achar isso, pois, assim, cairia-se no pantanoso e raso terreno da discussão sobre culturalidade o que não me apetece, por achar esse papo de ‘aculturado’ ou ‘culturado’ algo bem superficial. Prefiro encarar a coisa toda pelo lado epistemológico, o de ideologema de sua essência (viram como fica chato o papo quando entramos nessa onda de analisar a coisa toda com base em pressupostos?).
Voltemos ao que interessa…

Tenho buscado adquirir algumas peças e artesanatos indígenas feitos, como já indicado mais acima, se não todo, mas em grande parte usando matéria-prima e, em alguns casos, técnicas de fabricação ‘dos antigos’. Em alguns casos, poderiam até ser peças feitas tendo como modelo expressões da arte estética e expressiva atual (esculturas, enfeites dos mais variados tipos, etc), mas, mesmo estas, a lógica de uso de matéria-prima seria a mesma. Em outros, como as peças de uso cotidiano antigas (cerâmicas, armas, tecelagem, etc) o objetivo é a aquisição de peças, feitas dentro de processos tradicionais.

Brincos, Povo Ashaninka
Assim, estes dias uma destas encomendas chegou. Tratava-se de lanças de caça e facas tradicionais do povo Marubo. O velho que me trouxe as peças ficou impressionado por ver alguém se interessando por isso, pois, segundo o mesmo, os nawa (não-índios) não se interessam por estas coisas ‘antigas’ que não são mais usadas. Afinal, como ele disse, ao comentar que tentou ensinar isso a alguns jovens:  “de que serve uma lança de caça se pode usar uma espingarda?”. Boa pergunta, realmente, mas é nela que está a essência da coisa toda que me motiva: o conhecimento material e espiritual de saber fazer.

Além das peças que havia encomendado, outras foram trazidos pelo artesão e, para minha surpresa, descobri que todas estão entre os conhecimentos ameaçados de perder-se nas brumas dos tempo. “A nova geração não tem interesse ou paciência pra aprender”, me disse a amiga Amélia Marubo enquanto traduzia meu papo e negociação com o artesão.

Eu havia encomendado somente uma peça de lança e duas facas, para meu acervo mas, enquanto batia cabeça com um relatório bem chato, a porta da minha sala abriu e Amélia, seguida do velho artesão, entrou carregando muitas peças, além do que havia pedido. “O parente aproveitou e fez logo muitas para vender. Ele se empolgou, pois alguém queria algo que ele ainda sabe fazer, por isso ele fez logo muitas”, foi a justificativa da Amélia enquanto estendia as peças pelo chão da sala: Agora lascou. Como farei para pagar isso tudo? - Foi de cara meu pensamento, enquanto fazia uns cálculos mentais.

Feito os acertos, em que pagaria pelas peças que encomendei e o excedente ajudaria a divulgar para venda, nos despedimos e fiquei admirando tudo. Bem, minha preocupação sobre como propiciar a venda de tudo mostrou-se sem razão, pois, ao fotografar as peças e divulgar via ‘zap zap’, todas foram vendidas em menos de vinte e quatro horas. Fiquei bem feliz com isso, sensação que já tinha experimentado ao conseguir algumas semanas antes, bons compradores para a arte e artesanatos da mestra artesã Amélia Marubo após uma aula com ela onde, com muita paciência, tentou me ensinar a fazer artesanato do povo dela e que, admito, apesar do esforço, da paciência e dos ensinamentos dela, acredito que morreria de fome se dependesse disso para viver, pois levaria uma eternidade para conseguir fazer um simples colar de concha de aruá (uma espécie de caramujo).
Maracá, Povo Madija

Busquei divulgar esse meu intento entre os meus contatos nawa e demais txais índios e não-índios, de interesse em peças do que chamei de ‘arte natural’. Também mapeei todo o acervo de casa, para ter uma ideia do que tinha.

O porque dessa neura toda em relação a isso? Acho que o incômodo citado acima e, também, a percepção do ciclo espiritual e filosófico representado pelas matérias-prima utilizadas e da energia gasta para fazê-las. O que, de certo modo, assemelha-se muito a vida da gente: se por um lado sementes, barro, fibras, etc representam algo da natureza -e por essa lógica, ‘vivo’, mesmo após sua morte material - e seu processo de reutilização e harmonia, por outro, o uso cada vez maior de peças utilizando matéria-prima artificiais e/ou industrializadas nos remete a uma sensação de artificialidade e negação do ciclo da natureza. Moral da história: assim como nós, essa peças naturais se desintegrarão e voltarão ao seio da natureza que as fez (claro que se bem cuidadas não), a beleza harmoniosa e cósmica da existência. Tudo é etéreo e cíclico. Tudo se faz e se desfaz na temporalidade que lhe cabe. Observem, por exemplo, o trabalho primoroso e complexo de feitio de uma mandala por monges tibetanos, que desmancham e mesclam tudo logo após terminarem sua construção. Bem, eu acho isso. É uma das ‘verdades’ que me movem.

Também me preocupa ver certos conhecimentos irem se perdendo ao longo dos anos, tornando-se somente capítulos frios e sem alma de dissertações e teses chatas de antropólogos e demais acadêmicos. Um conhecimento como os que já ouvi até em muitas falas de lideranças e até mesmo de jovens indígenas, ao se referirem sobre certos aspectos da cultura tradicional cujo saber fazer e o ‘entender’ já se tornaram lembranças de um passado que não volta.

No entanto, muitos conhecimentos ainda se encontram ‘respirando’ nas comunidades. Estão vivos e acessíveis mas, em alguns casos, estão em baixa em relação ao interesse dos mais jovens. E porque isso? Complexo, bem complexo. Por isso me apegarei somente em um dos mosaicos dessa complexidade toda, isso em relação a peças artesanais: o interesse de mercado. Nas cidades, nas festividades das aldeias, na miríade de sites, blogs e páginas do Facebook onde se comercializam peças artesanais indígenas, o espaço para peças artesanais feitas com sementes, fibras e derivados da madeira ainda são pequenos.

Opa!!! É preciso deixar claro que não estou condenando a arte e expressão estética de peças artesanais e demais obras feitas com miçangas, lã industrial, tintas químicas e o escambau. São lindas e atendem a gostos pessoais, visão estética de cultura, expressividade, praticidades de mercado e de feitio. Estou apenas explicando o que me motivou a esse movimento todo que ora ando fazendo, e porque o acho muito importante como lastro cultural e essência natural de relação com a natureza. Também não advogo em nome de uma produção exclusivamente ou em grande parte voltada ao mercado, que vise a confecção de cocares ou peças feitas a partir de peles, dentes e penas (no caso dos cocares) de animais raros, ou de ‘espírito forte (como onças, araras, harpia, entre outros). (O grifo é para destacar que essa posição é em relação ao mercado, e não ao uso nas comunidades, pois quando se visa o mercado, a aquisição destas penas, peles, dentes e ossos se dão de maneira predatória).
Faca, Povo Yawanawá

Quem tem uma peça ou artesanato tradicional ‘dos antigos’ em casa sabe do que estou falando. E quem não tem, digo que a sensação e a energia que destes emana é algo único.
Já citei em textos anteriores que tem espaço para estas peças. Tem pessoas que, como eu, vêem nestas algo maior que sua beleza estética. Além disso, fomentar sua produção, mesmo que voltada ao mercado (e as neuras que o culto ao ‘money’ suscitam em alguns) e sua divulgação é contribuir, de alguma forma, mesmo que em pequena escala, com sua manutenção. Eu sou do tipo que, ao fazer compras, observo se o produto está vinculado com alguma ação social ou cultural. Acho isso importante.

Digo aos que não conhecem muito sobre a cultura material e expressiva dos povos indígenas que é algo lindo e rico de significados, onde a força da cultura e da identidade de um povo extrapola os parâmetros de sua apresentação estética. E quando esta vem expressa através de materiais coletados da natureza, este significado ganha ainda mais força.

Aqui no Aquiry, apesar de toda adversidade, há cerca de três anos, uma iniciativa, através de parcerias institucionais  e algumas comunidades,  que promoveram toda uma campanha de fomento e difusão destes conhecimentos, logrou êxito e propiciou, entre outras coisas, o ressurgimento da produção de peças que em muitos casos, estavam restritos a um pequeno grupo de anciões. Um exemplo disso é o trabalho com cerâmicas. Claro que muitas destas peças acabei adquirindo ou incentivando amigos a adquirir. Povos como os Puyanawa, Nukini e algumas aldeias Huni Kuin, onde este projeto desenvolveu-se, vem produzindo cada vez mais e, mesmo que timidamente, conseguindo negociar estas peças e, em alguns casos, reinserindo-as, seja nos festivais seja em seu cotidiano.

Nesse processo todo, de fomento e valorização dessas peças,  muitas vezes, após adquirir uma quantidade de colares, pulseiras e outros itens acabo presenteando amigos e familiares, no intuito de despertar nestes o interesse. Também foi iniciado um projeto novo, na página do Facebbok do Crônicas Indigenistas, onde serão criados ‘catálogos’ virtuais para que os interessados possam conhecer mais sobre estas peças a que me refiro na crônica de hoje (para ver um desses, clique aqui).

É isso…

Termino a crônica entre espirros e admiração com outra expressão maravilhosa da arte indígena: imagens da apresentação e exposição em São Paulo, do professor, txana e artista Isaías Ibã Huni Kuin com seus desenhos e pinturas que nos leva, ao reino encantado do Nixi Pae**. Ainda admirado, vejo que recebi uma mensagem no face, olho e nela, uma pessoa me falar que quer adquirir peças artesanais, indico uns links com imagens de peças em madeira, sementes, etc, bem como o contato dos artesãos. Em resposta a pessoa diz que achou ‘bonitinho’ mas queria mesmo eram ‘coisas mais coloridas e bonitas’. Respiro fundo… um bocado de respostas engenhosas me vem à mente mas, o que faço? Indico links de artesãos que podem atender ao que ela crê ser o melhor pra ela… mas não respondi a saudação de despedida da mesma.

Que foi? Hoje é  Dominicus ué… não poderia mandar a figura ao quinto dos… bem… do céu.. enfim.

Boa semana a tod@s,


Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.










* ‘Dia do Senhor’, ou seja, domingo.

** Ritual os encantos do huni (auyhuasca) do povo Huni Kuin.
- Todas as imagens são de autoria de Jairo Lima, e representam peças de seu acervo.

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