Por: Raial Orotu Puri
"Quando os acadêmicos vêm falar com a gente é só pra fazer pesquisa. Não nos veem como povo, como pessoas, somos apenas ossos.” -(Vherá Poty , 19/10/2016, Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira - Regional Sul.)
Devido a algumas questões que vivenciei na semana que passou, fui levada a recordar de uma conversa havida meses atrás com uma arqueóloga estrangeira em visita ao Acre. No referido diálogo, ela me perguntou se eu já havia visitado um Geoglifo, e me falou sobre o quão importante é tal experiência, para, palavras delas “poder reconhecer a perícia e sabedoria das populações ameríndias que habitaram a Amazônia milhares de anos atrás”...
Para quem não sabe, Geoglifos são um tipo especial de sítio arqueológico, que se caracteriza por desenhos traçados no chão em regiões planas, e que no Brasil já foram identificados no Acre, Rondônia e Sul do Amazonas. Os Geoglifos aqui encontrados são figuras geométricas: círculos, quadrados e octógonos, feitos mediante a escavação de longos ‘canais’ de terra, e estão associados com outros tipos de vestígios de antigas ocupações, tais como sítios cerâmicos. São melhor visualizados do ar, e, embora existam várias teorias sobre o seu significado, não há um consenso sobre os motivos pelos quais foram construídos.
A arqueóloga que conversava comigo sobre eles tinha vindo desde a Europa especialmente para visitar algumas das estruturas, e terminou com um convite para que eu a acompanhasse em uma de suas incursões, o que acabou não ocorrendo devido a eu estar com uma viagem marcada para o dia específico em que se daria a visita. De todo modo, penso que para ela ficou de certa forma um pouco evidente que não havia despertado em mim tanto interesse quanto esperava...
Esta memória me voltou nesta semana, por duas razões específicas. A primeira, também de cunho arqueológico, se refere ao fato de eu ter sido marcada em uma postagem de um parente Puri tratando do resultado de testes de datação feitos em uma canoa descoberta na região sul de Minas Gerais, e que estabeleceram que a mesma foi construída por volta de 1610. Dado o local em questão ser documentado como antiga ocupação do meu povo, bem como considerando que o pintor e explorador Rugendas fez alguns desenhos que demonstram bastante similitude do ponto de vista estilístico e construtivo com as técnicas empregadas por meus ancestrais, isto aponta para certo nível de certeza de que esta embarcação é um achado arqueológico do povo Puri.
Bem, antes de qualquer coisa, quero esclarecer que sou bastante interessada na arqueologia, e, de fato, considero os Geoglifos verdadeiramente imponentes e impressionantes, sobretudo considerando que, ao tempo em que foram feitos, inexistiam as ferramentas que hoje se encontram disponíveis. De fato é impossível deixar de reconhecer a beleza, perícia, arte e ciência que envolve a construção dos artefatos arqueológicos, e é inegável que as mais de 400 das estruturas do tipo Geoglifo já identificadas na Amazônia são testemunhos incontestáveis da sabedoria e maestria das populações que viveram há milhares de anos nesta região. Nesse sentido, considero realmente a importância destes sítios arqueológicos tão especiais e peculiares, cuja comparação mais próxima são as linhas de Nazca do Peru.
Do mesmo modo, e talvez mais ainda neste caso, a descoberta de uma canoa que quase com toda a certeza foi feita por meus ancestrais é algo que me proporciona alegria, e até mesmo certo orgulho. Afinal de contas, para um povo como o meu, que teve de resistir à diversas frentes que visaram fazê-lo desaparecer, quaisquer vestígios de existência são como mensagens do passado, gritos de incentivo e de coragem para que sigamos resistindo a todas as forças de extermínio. Elas dão conta de que, para além de toda a força de destruição, há algo que subsiste e permanece vivo.
Por essas e outras, repito que considero sem dúvida a importância dos achados arqueológicos, grandes ou pequenos. Há, no entanto, algo que às vezes me causa um certo incômodo nesse tipo de conversa: ao mesmo tempo em que noto esse grande fervor da parte de muitos pesquisadores que acorrem ao Acre para fazer seus estudos, e tecem infinitos louvores às populações ameríndias pretéritas, parece haver certo distanciamento da parte desses em relação ao contexto e lutas dos povos indígenas ainda viventes na atualidade.
É claro que isto não se faz presente no ponto de vista de todos os arqueólogos, visto que conheço alguns profissionais desta área que são de fato engajados em projetos bem menos distanciados, no entanto, isto não é infelizmente a regra. Do mesmo modo, também não posso de forma alguma dizer que isto seja um problema particular da Arqueologia, posto que, como já disse outras vezes, é bem comum da parte da Academia como um todo ser bastante distanciada, hermética e pouco inclusiva.
Devido a isso, não raro, esse distanciamento é perceptível e concreto, e muitas vezes transforma-se em preconceito escancarado, como o denunciado na frase que inseri no preâmbulo deste texto, proferida pelo parente Guarani Vherá Poty no ano passado no Congresso de Arqueologia da SAB-Sul. Tudo se passa como se o valor do passado se sobressaísse à contemporaneidade, à luta que se faz no hoje e no agora, e que se nos tempos primevos já era imensa, agora se mostram ainda maiores. E é por isso mesmo que eu gostaria de fazer notar que se um Geoglifo é grande e imponente, maior ainda é a força da resistência dos povos originários, que ainda sonham, ainda lutam, ainda vivem e produzem sua cultura.
E esse é o segundo motivo pelo qual me recordei da conversa sobre os Geoglifos do Acre... A memória se deu precisamente porque, nesta semana, no mesmo ambiente no qual estive em contato com a citada arqueóloga europeia, tive o desprazer de testemunhar um conjunto de manifestações racistas contra indígenas – estes, bem vivos – vindas de alguém que, devido à sua posição e cargo, deveria ter um mínimo de noção sobre o que fala e pensa. Mas, é claro, noção é um artigo muito raro nos dias de hoje, e a falta dela por outro lado é tão abundante que chega a nausear.
A mesma falta de noção é, de saída, o que para mim se sobressai no caso ocorrido também na semana que passou, o racismo que teve por vítima a estudante indígena do curso de pedagogia Kethyla Sawãdawa no campus da UFAC de Cruzeiro do Sul, a qual recebeu uma hedionda carta contendo ameaças e diversos ataques de cunho racista.
Esses dois casos me parecem associados por terem se dado em contextos acadêmicos, e por terem partido de membros da Academia – felizmente no segundo caso, a IES parece estar tomando providências no sentido de apurar e responsabilizar o autor do crime.
Quando me refiro à falta de noção, me refiro ao fato óbvio de que estamos no Acre, terra que, antes de qualquer coisa, é morada de mais de uma dezena de povos, cada um dos quais com uma história particular de resistência e força, e detentores de uma cultura vívida, rica e pulsante, e cuja ‘perícia e sabedoria’ são visíveis para quem quer que tenha olhos para ver...
Eu confesso, como já reportei outras vezes, o quanto estas manifestações racistas soam para mim de forma mais terrível quando proferidas neste Estado, justo pelo motivo de que, no meu ponto de vista, se existe um Acre na atualidade, e se ele é assim tão incrível, maravilhoso e motivador da visitação de pessoas de todas as partes do mundo, ele o é principalmente pela grandeza desses povos que aqui vivem, e acredito ser de uma mesquinhez tacanha e torpe que isso seja ignorado ou relativizado pelos descendentes dos não-indígenas que aqui chegaram milhares de anos depois.
Se há algo que tenho aprendido nestes anos em que convivo com os povos do Acre é justamente a grandeza que possuem. Tenho visto aqui, e qualquer um que o queira, suponho, também vê, o quão amáveis, receptivos e generosos são os povos indígenas que habitam neste estado para com aqueles que vêm de fora. Esta generosidade – por vezes, para mim até um pouco temerária – faz com que se disponham a ensinar e partilhar de seus conhecimentos ancestrais acerca da natureza e da Sobrenatureza com as quais eles têm lidado há milhares de anos para manter o equilíbrio entre os mundos.
Esses mundos, como não deve escapar a ninguém, são todos convergentes e se correlacionam neste no qual os diversos povos são levados a interagir, este mundo que só não está ainda de todo condenado pela ação destes povos. E digo isto tanto do ponto de vista de ações práticas tais como a preservação ambiental, quanto do ponto de vista de uma sociabilidade muito mais humana e verdadeira do que esta que circunda o mundo morto dos raion (não-índios).
E é por isso que não me é possível compreender como tantos podem se embasbacar com a grandeza de um Geoglifo ou, para citar algo atual, com a maestria de uma ainbu kenaya em tecer um timá kenê (tecido com kenê) perfeito, e, no mesmo tempo e lugar, se façam presentes ideias que produzem cartas com as palavras que Khetyla teve de ler, ou as que eu ouvi. Eu realmente penso que esta desconexão entre uma e outra coisa deveria ser impeditiva até mesmo do pensamento racista.
Isso sem contar o fato apontado pelo Jairo em seu texto de segunda-feira, 23/10, de que a quase totalidade das pessoas que aqui vivem têm alguma ascendência indígena, o que torna a manifestação racista ainda mais absurda do que já o é pelo simples fato de ser articulada. E é preciso, a propósito, ter a percepção de que esta característica não se restringe ao Acre, visto que a mesma realidade se apresenta no restante do Brasil e da América Latina (e provavelmente das outras duas...). E, como já disse em outra ocasião, o ódio que todos esses reportam a negros e indígenas nada mais é do que um ódio a si mesmo, visto que a despeito de toda e qualquer ancestralidade também europeia, o que unifica a todos os nascidos nesta terra após a invasão, é que são, ao fim e ao cabo, todos latinos.
No entanto, para além de qualquer discurso de miscigenação, eu penso que o que está em jogo é também uma absurda desumanização das pessoas e das culturas indígenas da atualidade, uma desconsideração para com sua grandeza e sabedoria, a qual evidentemente não está adstrita às técnicas empregadas na construção de artefatos arqueológicos. Quem quer que tenha olhos para ver – e eu acho que talvez existam entre os raion aqueles que o têm – pode constatar essa verdade ao observar o viver e o resistir de um indígena, e ela grandeza não está em construir um grande monumento arqueológico em vistas de se tornar Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, mas exatamente na capacidade de manter-se vivo e são, em um mundo tão mesquinho como esse que foi construído pelo ódio à diferença.
A grandeza deles – nossa – está nessa sabedoria antiga e ancestral que ainda corre em nossas veias, nas vozes de nossos Ancestrais e dos Grandes Seres que nós conhecemos muito mais do que apenas por nome, na força de nossas histórias ancestrais que contam a vocês como nossos mundos se fez, e como nós mesmos temos feito esse mundo existir.
É por isso mesmo que me assombra tanto essa persistência em rejeitar os povos originários destas terras, e em mostrar-se hostis e racistas para com eles, visto que, só para começar a conversa, estávamos aqui primeiro, e contra tudo e todos, vamos continuar, porque, tal qual asseverava o brado do exército do Cacique Guairacá ‘Co ivi oguerecó yara!’ (esta terra tem dono), e os donos dessas terras são os povos originários.
E, é porque esta terra inteira pertence à Kethyla, a seu povo, e aos povos originários de uma terra que foi invadida, escravizada e denominada Acre, nem ela, e nem ninguém será mandado ‘voltar para a aldeia’. Kethyla, aluna exemplar e com excelentes notas, vai continuar a estudar, se assim o quiser, e não será nenhuma carta mesquinha que irá diminuir sua grandeza. Ela pode se formar e ser orgulho para seu povo, assim como tantos antes dela, e outros tantos depois. Ela e todos eles vão circular, viver, e serão tão grandes quanto o desejarem, e sei que é isso que mais atormenta essas pequenas mentes racistas: Eles - nós – resistimos. Sempre.
Finalizando o texto, quero esclarecer que, no caso das palavras que eu ouvi, dentro de uma perspectiva ‘decepcionada, porém não surpresa’, procurei encontrar no mais profundo do meu ser o coeficiente necessário de calma para apenas dar uma resposta mordaz, ainda que meu impulso inicial tendesse para uma atitude bem mais sangrenta. O que me fez apenas responder foi considerar que entre mim e um interlocutor racista existe um abismo epistemológico que neste caso eu penso ser intransponível.
Desde o ponto de vista de um racista, eu e os demais parentes indígenas somos, de saída, inferiores e, portanto, incapazes de dialogar em pé de igualdade. De minha parte, a desumanidade raion também é um fato bastante tácito e, neste caso específico, tão evidente que não haveria da minha parte qualquer intenção de perder com ele o meu tempo. Como tenho dito ao longo desta crônica, enxergar a grandeza das culturas indígenas depende, antes de tudo, que a pessoa tenha a capacidade de ver, que, por óbvio, não tem a ver com qualquer condição ou deficiência ocular, mas com aptidão de mente. E se há algo que fica por demais claro diante de situações como essas, é que os dons da visão e pensamento são ausentes em racistas.
E por serem incapazes de ver, seguem com vidas ocas e mortas, valorizando títulos e privilégios vazios. Enquanto isso, os originários seguem sendo o que são e sempre foram, e ao mesmo tempo se reinventam e recriam, agindo com a mesma capacidade em quaisquer dos mundos que se proponham a viver.
Pois sim, somos bem mais do que persistências do passado: somos mais que Geoglifos, artefatos líticos, cerâmicas antigas, desenhos em cavernas, canoas devolvidas das profundezas das águas, ossos ou túmulos. Somos o que está vivo, o que subsiste para além de toda a morte, e de todo o extermínio e o somos em qualquer lugar, na aldeia, na Universidade, nas Instituições e cidades. Porque, acima de tudo Somos!
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).
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Algumas referências do texto:
Sobre os Geoglifos da Amazônia há diversos estudos acadêmicos inclusive, segue uma matéria introdutória: https://www.xapuri.info/arqueologia/os-geoglifos-do-acre/
Sobre a Canoa encontrada em Andrelândia (foi encontrada em 2015, e os testes realizados em 2017 confirmam a datação como 1610): https://marsemfim.com.br/canoa-indigena-de-1610-e-encontrada-em-minas-gerais/
Para quem ainda não conhece a história do ‘lendário’ Cacique Guairacá, que durante cerca de 50 anos comandou a resistência ao avanço espanhol na região de Guarapuava, segue um link: http://www.redesuldenoticias.com.br/home.asp?id=38803
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Algumas referências do texto:
Sobre os Geoglifos da Amazônia há diversos estudos acadêmicos inclusive, segue uma matéria introdutória: https://www.xapuri.info/arqueologia/os-geoglifos-do-acre/
Sobre a Canoa encontrada em Andrelândia (foi encontrada em 2015, e os testes realizados em 2017 confirmam a datação como 1610): https://marsemfim.com.br/canoa-indigena-de-1610-e-encontrada-em-minas-gerais/
Para quem ainda não conhece a história do ‘lendário’ Cacique Guairacá, que durante cerca de 50 anos comandou a resistência ao avanço espanhol na região de Guarapuava, segue um link: http://www.redesuldenoticias.com.br/home.asp?id=38803
Créditos de imagens: Imagem 1 - Marco Reis; Imagem 2 - Alexandre Segregio; Imagem 3 - Alexandre Segregio; Imagem 4 - Blog do Netuno; Imagem 5 - Site Elo7; Imagem 6 -
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