Por: Raial Orotu Puri
Outro dia nas minhas memórias do Facebook fui recordada de um compartilhamento de 2015 que fiz de uma postagem de uma moça dizendo que a sua proposta para o programa de retrospectiva de final de ano era bem curta: fazer de conta que nada aconteceu e desejar feliz 2016. Ao rever a lembrança, ri de novo da piadinha, mas hoje este ‘meme’ me voltou à memória em outra perspectiva aonde o riso deixou de caber...
Assim, gostaria de aproveitar o clima de final de ano, época de retrospectivas tanto televisivas quanto pessoais, para abordar o assunto dos ‘balanços’ de fim de ano. Acontece mesmo quase sempre que o mês de dezembro seja uma etapa de fechamento de muitas coisas, de retrospectivas e, obviamente, de planos para o futuro.
Inclusive, como é de conhecimento dos leitores desse blog, é nesse clima que se darão na semana que vem dois importantes eventos no Juruá dos quais tomarei parte: a Conferência das Organizações Indígenas do Vale do Juruá, e, em seguida, a Yubaka Hayra, (Conferência Indígena da “Ayahuasca”.) O primeiro evento terá, dentre outras coisas, a apresentação das atividades realizadas ao longo de 2017 pelas instituições indígenas da região; por sua vez, o segundo será o início de uma discussão demandada há muito, de um espaço especificamente indígena para discussão da possível patrimonialização da bebida ‘ayahuasca’.
Esta discussão já vinha sendo pautada há tempos, e tornou-se premente quando da realização da White Conference, e agora terá seu lugar através do esforço das organizações indígenas e da CR da Funai no Juruá, e creio que será muito benéfica para todos aqueles que dela poderão participar.
Mas estes eventos ainda estão por vir. E, antes disso, há muita coisa que passou nesses anos recentes, e a respeito dos quais cabe rememorar. E, ao contrário do que propôs o meme que citei no começo do texto, não há para tais fatos a possibilidade de fazer de conta que nada aconteceu. Aconteceu. Aconteceram coisas em demasia. E fechar os olhos para tais coisas é irresponsável, cruel e criminoso.
Eu penso que talvez seja porque os brasileiros raion tenham por hábito fingir que nada aconteceu que as coisas estão como estão. Finge-se que não existe racismo no Brasil; finge-se que mais de 300 anos de escravidão da população negra não aconteceram; finge-se que as consequências do fato de que esta escravidão ter sido apenas teoricamente anulada não aconteceram; finge-se que não houve e não há genocídio da população originária destas terras; finge-se tanto que acaba-se por acreditar. Finge-se que nada está acontecendo. Finge-se que as coisas não têm consequência, mesmo quando as consequências batem às nossas portas, mesmo quando estas portas são arrancadas, mesmo quando a casa inteira é levada embora... mesmo e a despeito de que as consequências muitas vezes envolvam a morte de muitos.
Vejo isso em níveis macro, na forma como o Brasil trata a sua história, como no caso noticiado esta semana, de um protesto branco contra a demarcação dos territórios originários dos Guarani na região de Guaíra, Paraná. O ódio e o racismo, fomentado por uma ignorância voluntária a fatos que são por demais conhecidos – a presenta histórica milenar do povo naquela região – têm tornado o clima da região ainda mais tenso que de costume.
É essa a tônica geral, bem sei. Meus textos ao longo deste ano têm em boa parte refletido diferentes faces de uma mesma tristeza perene e inafastável: os brancos são em sua maioria completamente omissos e sem qualquer tipo de empatia para com a dor de quaisquer outros que não sejam seus espelhos. Exemplos comparativos? Tenho muitos...
Racismo, falta de empatia, ignorância histórica voluntária cercam também o caso do mais recente ataque sofrido pela Tekohá Guarani no Morro dos Cavalos, no qual Ivete, mãe da Cacique Kerexú Yxapyry foi torturada dentro de sua própria casa, tendo seu corpo retalhado a golpes de facão, e sua mão esquerda decepada. Seus agressores só pararam por julgarem que a vítima já estava morta. Não está... Assim como não morreram Aldely de Jesus Ribeiro, José Ribamar Mendes, Francisco Jansen da Luz, José André Ribeiro e Inaldo Serejo, os cinco guerreiros Gamela que foram atacados em abril no Maranhão (alguns dos quais, inclusive, também tiveram mãos decepadas), em um ataque também motivado pelas mesmas razões de todos os outros.
Assim como não morreu Elisângela Dell-Armelina Suruí, professora de Rondônia premiada com o prêmio Educador do Ano, atacada a tiros na noite de 29/11, quando ela e seu marido seguiam de moto em direção à Terra Indígena Sete de Setembro. Ao que tudo indica, o ataque se deu a mando de madeireiros da região. Apesar do susto, nenhum dos dois se feriu.
Casos isolados? Só se o Brasil for o maior caso isolado continental de que se tem notícia, visto ser essa a tônica do que acontece o tempo todo, em todos os lugares. Quando não temos ataques violentos, temos racismo institucional, e, em toda parte, ele se alimenta das forças da omissão e da falta de empatia que seguem em voga da parte daqueles que acham-se no direito de não se envolver e seguir silentes...
Muitos têm sido mortos. Outros ainda vivem, apesar da dor, do medo, das cicatrizes. E espero de coração que assim continuem, eles e todos os demais que dia a dia são vítimas desse mesmo ódio racista. Espero que este extermínio pare, e que seja possível ainda uma realidade diferente de vida, segurança e paz para todos os territórios sagrados.
Espero... Mas não espero como quem conta horas, meses ou anos... Espero porque desejo isso, mesmo sabendo em algum ponto de meu inconsciente que a mudança precisaria ser tanta que seria preciso fundar um mundo novo aonde tais coisas fossem possíveis.
Espero porque desejo. Espero porque estou viva ainda.
Espero porque essa é a luta que tenho por lutar, enquanto estou viva ainda, e essa luta é válida até mesmo em honra àqueles que agora já esperam do outro lado, como é o caso de Creusa Benites Lopes da tekoha Apyka'i-Dourados-MS, que eu conheci no ano de 2015, quando pude visitar a comunidade ainda em seu Tekohá, do qual vieram a ser expulsos em 2016. Creusa morreu às margens da Rodovia aonde precariamente essa comunidade e outras centenas têm sobrevivido e resistido no Mato Grosso do Sul.
Creusa não espera mais deste lado. Partiu para sua Terra Sem Males. Enquanto isso, outros ainda esperam. Ainda sonham, ainda lutam. E é por eles que não posso jamais fingir que nada aconteceu.
Para quem está deste lado da luta, isso não é possível. Desde antes de haver televisão e retrospectivas televisionadas, não podemos nos dar ao luxo de fazer de conta que nada aconteceu, porque acontece conosco, porque cortam na nossa carne, porque são as nossas mãos arrancadas, somos nós os alvos das balas, é o nosso sangue derramado, somos nós quem temos nossas identidades contestadas, que somos acusados de sermos ‘falsos índios’, invasores, aproveitadores do Governo. Somos nós que temos nosso Sagrado roubado, vilipendiado, deturpado e profanado, somos nós que temos nossas tradições ridicularizadas, somos nós que temos nossa identidade transformada em fantasia de mau gosto, somos nós que temos de ver as árvores cortadas, os cursos dos rios interrompidos por concreto e ferros... Somos nós. Mas e quanto a vocês?
Só tem a possibilidade de ignorar voluntariamente a história quem está do lado que a escreveu com a tinta que é feita do nosso sangue. Mas eu digo e repito: esta omissão é tão responsável e tão culpada quanto a ação violenta! E é ainda mais neste tempo atual, em que o poder da comunicação se faz tão presente, em que as hastag viralizam, em que o compartilhamento das informações se faz em tempo real...
...Infelizmente, enquanto a empatia e a dor dos brancos não for também em tempo real, sinto que tudo permanecerá como está, e continuaremos a contar cicatrizes e mortos, e por isso choramos, e vivemos esses cinco séculos de luto e tristeza, e de luta em meio à tristeza. Por isso mesmo, eu não tenho meios em mim de escrever uma retrospectiva que não seja de dor, raiva e lágrimas.
Mas este texto não termina aqui: Espero que as Conferências que estão por vir possam trazer a algum alento a minha mente atormentada, pois que eu sei que no Acre, ainda existem coisas belas por conhecer, e aqui ainda existe um ar diferente e mais respirável... E aqui talvez ainda haja tempo de defender este ar, estas florestas, estes rios, e estes povos...
Se eu puder, talvez seja disso que eu fale no próximo texto...
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).
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- Todas as imagens são pinturas de autoria do artista Tiago Tosh
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Notícias comentadas neste texto:
Protesto em Guaíra contra demarcação das Terras do povo Guarani: http://porem.net/2017/12/06/demarcacao-de-terras-em-guaira-pr-volta-a-pauta-com-desinformacao-e-atos-anti-indigenas/
Notícia sobre o mais recente ataque contra a Aldeia Itaty, Morro dos Cavalos, Palhoça – SC: https://jornalistaslivres.org/2017/11/ataque-aldeia-povo-guarani-do-morro-dos-cavalos-pede-socorro/
Notícia da página Aty Guasu sobre a morte de Creuza Benítez:
https://www.facebook.com/aty.guasu/photos/a.603723143096222.1073741826.603723103096226/679645865503949/?type=3&theater
Texto sobre o ataque ao Povo Gamela no Maranhão:
http://cronicasindigenistas.blogspot.com.br/2017/05/ataque-ao-povo-gamela-quem-dera-o.html
Ataque à professora Elisângela Dell-Armelina Suruí, Rondônia.
https://g1.globo.com/ro/cacoal-e-zona-da-mata/noticia/vencedora-do-premio-educador-do-ano-e-atacada-a-tiros-em-rondonia.ghtml
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