Por: Raial Orotu Puri
Para que a leitura deste texto flua, será
necessário fazermos um pequeno pacto de aceitação mútua: você provavelmente não
vai gostar de lê-lo, tanto quanto eu não gosto de ter de escrevê-lo. Vamos então
encará-lo como um mal necessário. No fim – pelo menos espero – o meu e o seu
esforço valerão a pena.
Vale dizer que relutei por cerca de meio ano
em tocar mais diretamente neste tema, e se o faço agora, é por sua recorrência, que me informa o
quanto urge falar dele. Sim, há fatos a respeito dos quais precisamos ficar
silentes, mas há outros que precisam ser abordados, para podermos ser capazes
de ultrapassá-los. Este é um deles.
Qual é esse tema? Violência. Mas não
violência de qualquer tipo, nem perpetrada contra qualquer pessoa. Preciso
falar sobre um tipo de violência específica, praticado contra pessoas
específicas. E, por óbvio, nada de violência gratuita aqui, já que o preço
imenso dela, nós o temos pagado há séculos. E sim, pode ser que doa em você. E sinceramente,
eu até espero que doa. Mas não se desespere: Você verá que não está sozinho nisso!
Tenho lido sobre alguns experimentos sociais que
demonstram que quando as vítimas da violência são personificadas, com nome,
rosto e um pouco de história, a identificação e a empatia têm mais chance de
brotar. É o que pretendo. Portanto, sim, será pessoal. Tanto para mim quanto
para você...
Vamos falar sobre a sua avó indígena. E porque vamos falar dela? Porque a sua avó e as minhas avós têm muito em comum. Igualmente, tenho muito em comum com elas. E não estou me referindo à questão identitária que nos aproxima. Este texto tocará nisso também, mas ele trata bem mais especificamente da violência que nos simetriza.
Você já ouviu falar disso, e provavelmente já
repetiu que a sua avó era ‘índia’ foi ‘pega no laço’. Pois é, as minhas avós também
foram ‘pegas no laço’. E depois delas, eu também fui ‘pega no laço’. Sim, de
início, falo desse modo, pois é assim que você se acostumou a ouvir... Mas
sabe, caro leitor, esse laço de que se fala não é um fitilho engomado de cetim
vermelho. Há vermelho nessa cena sim, mas é sangue. O sangue delas, o meu e o
seu também...
Cabe aqui abrir um parêntesis sobre uma
questão: hoje em dia tem gente que reclama daquilo que chama de ‘patrulha do
politicamente correto’. Considera-se em geral que este levante de pessoas que
problematizam e contestam os comentários dos outros seria um fenômeno da
atualidade, nascida na era digital, onde existe uma comunicação mais célere e
maior possibilidade de minorias se expressarem, inclusive no que toca aos seus
incômodos para com o que os outros dizem delas.
Mas veja que curioso: eu chuto que a
expressão ‘pega no laço’ está em voga há bem mais de um século. E, portanto, diria
que o politicamente correto é uma coisa que existe há muito tempo por essas
bandas, e interessante que neste caso não se vê muita gente incomodada em
adotar essa estratégia de ‘dourar a pílula’ – pílula essa, que contém veneno neste
caso.
Acontece que isso é uma coisa que me incomoda,
e muito. E o incômodo advém tanto das inumeráveis vezes em que ouvi esta
expressão, quanto do tom neutro com o qual muitas vezes me foi dito. E não, não
é exagero: Eu já perdi a conta de quantas pessoas me disseram que suas avós
foram ‘pegas no laço’, e por outro lado, posso contar nos dedos de uma mão
aquelas que demonstraram ter alguma sensibilidade sobre o fato que esta
expressão maquia.
A questão é que eu sei o significado exato dessas
palavras. E sei que no fundo todos que
usam esta expressão patética também sabem.
Sim, no fundo todo mundo sabe, mas prefere ignorar o quanto pode. Para talvez
se eximir da reflexão, da culpa, ou talvez até da dor. Mas quer saber de uma
coisa? Neste caso não há maquiagem que dê conta, e sendo assim, irei abolir o
politicamente correto deste texto, porque aqui ele não me serve. Permita-me ser
a voz na sua consciência, que vai gritar até você acordar e parar de fazer de
conta que nada aconteceu. Aconteceu. E, pode acreditar, foi horrível! Então
ouça, agora e de uma vez por todas:
Sua avó foi estuprada! Minha avó foi
estuprada! Eu fui estuprada!
Sim, caro neto e leitor... É disso que se
trata: sua avó foi estuprada! Talvez não apenas uma, mas várias vezes. Talvez por
mais do que um criminoso. E, a propósito, talvez sua família contenha tanto a vítima
quanto algoz...
Ah sim!
Há também outros modos de contar a história... Já os ouvi e você por certo
também: “minha avó foi acuada de cachorro”; “minha avó foi pega a dente de
cachorro”. Quem é versado em caçadas, sabe bem sobre a utilidade dos cães em
tais empreitadas, e como são úteis tanto para farejar quanto para acuar a
presa. Acontece que a presa em questão
foi a sua avó, percebe? A sua avó foi caçada com um animal e, após ter sido
capturada, com certeza foi estuprada. O porquê de eu estar tão certa disso?
Porque nesse mundo machista o estupro é a ferramenta principal de poder e subjugação
usada contra as mulheres, isso desde que o mundo é mundo. Igualmente, desde que
o mundo é mundo, ou ao menos, desde que existem grupos de indivíduos que se
acreditam no direito de dominar e subjugar outros seres humanos, o estupro faz
parte das estratégias de dominação, humilhação e genocídio.
Talvez
não lhes escape que isso que aqui é dito tenha a ver com a tão famosa, e tão
negada, “cultura do estupro”, que no caso das mulheres indígenas é ainda mais
insidiosa e perversa. Porque quando a mulher indígena é a vítima, ela não o é
sozinha, já que com ela é vitimada também toda a comunidade da qual faz parte,
e do qual ela é sustentáculo. Porque o estupro aqui tratado é instrumento do
racismo e do colonialismo, que nos atinge a todas e todos*.
Sim, eu falo do estupro
sistemático, de milhares de mulheres. Porque é isso que eu posso apreender da
quantidade de pessoas que me tem contado sobre suas avós estupradas, e porque é
isso que se infere da história deste país, que foi construída sobre o genocídio
de milhões. Mas, mais uma vez, não se desvie e não se esqueça: não se tratam de
pessoas anônimas. Tratam-se das mulheres da sua família e da minha. O Brasil
foi construído mediante o estupro de nossas avós!
Aqueles que já leram textos
meus textos talvez já conheçam em parte a história das mulheres do meu povo,
mas cabe aqui repetir uma vez mais: As mulheres Puri foram caçadas, estupradas
e escravizadas. Tiveram filhos desses estupros, alguns dos brancos que as
escravizaram, outros tantos, filhos de homens negros escravizados, crianças geradas
para serem igualmente escravas e vítimas. E as filhas delas? Nossas mães? E as
filhas de suas filhas, a minha geração? Bom, é por isso que eu disse que é
pessoal...
É pessoal sim. E é, aliás,
estatisticamente mais provável de acontecer do que você gosta de admitir. Segundo
as estatísticas atuais brasileiras, a cada onze minutos uma mulher é violentada
no país, e segundo as estatísticas mundiais, uma em cada quatro mulheres vai
ser vítima de violência sexual ao longo de sua vida.
Pois bem, você certamente já
conheceu mais do que quatro mulheres ao longo da sua existência. Isso inclui
amigas, namoradas, esposas, mães, filhas, colegas de trabalho, da escola, da
igreja, etc... Logo, você já conheceu muitas vítimas. Eu sou uma delas. E sua
avó também é!
E vale dizer que mesmo que
esses números sejam horrendos, essas pesquisas não são precisas, e não alcançam
a realidade, porque uma parte considerável dos casos sequer chega a ser
denunciada. Outros tantos deles passam ao largo de qualquer consideração ou de
estatísticas, já que são crimes praticados contra mulheres que estão a margem
de todas elas – e creio que não é preciso que você pense muito para compreender
o não-lugar das mulheres indígenas ainda nos dias de hoje dentro de tais contagens.
E veja, não quero que pareça
que comigo foi o mesmo que se passou com elas. Não foi. Com nossas avós foi bem
pior! Porque quando elas foram ‘pegas no laço’ do estupro, elas também foram
vítimas e testemunhas de outros tantos crimes, dentre eles, o assassinato de
seu povo. Por terrível que tenha sido para mim – e foi – eu não vi meus pais e
irmãos serem mortos, eu não fui arrastada para um lugar desconhecido, não
fiquei cativa até ‘amansar’, e não tive
de suportar um casamento forçado, nem o desespero de uma gravidez fruto de um
crime; ninguém me obrigou a nunca mais falar a minha língua, não me fizeram
abdicar das minhas crenças, nem de tudo que fazia o meu sentido de mundo; eu
não fui espoliada da minha terra, das minhas raízes, e de tudo o que eu sabia. Eu
não fui forçada a negar tudo o que eu era, até sentir vontade de não mais ser. Eu
não fui forçada a silenciar sobre tudo, nem tive de guardar um mundo inteiro
dentro de mim para que ele não desaparecesse. Eu não tive de esperar uma ou
duas gerações para ver de novo brotar as sementes do meu povo.
E não se conforte pensando
que isso ficou no passado: Isso é o presente e, se nada for feito, será também
nosso futuro. Acontece o tempo todo, em todos os lugares. Está acontecendo
agora mesmo, enquanto você lê. Mulheres indígenas ao longo da história foram e
são vítimas dentro e fora de suas comunidades, e são também alvo de outras
inumeráveis violências, inclusive a falta de acolhimento de instituições e
profissionais que teriam por obrigação lhes prestar auxílio. São também vítimas
das leis que existem, que por melhores que sejam, não abarcam suas
especificidades. Mulheres indígenas e os povos a que elas pertencem são vítimas
sistemáticas de omissão, da indiferença, e de atos intencionais de extermínio.
E é por causa disso tudo que
eu preciso falar hoje com você, que como eu também descende de mulheres
indígenas que foram estupradas. E se eu falo
assim às claras, faço-o porque é preciso. Porque existe uma ferida aberta que
precisa ser curada. E é preciso que você que me lê faça parte da solução, e não
do problema. É preciso que você aprenda a curar.
E a cura começa por você ter
consciência do que de fato aconteceu com a sua avó, e parar de usar um
eufemismo besta para tentar fazer as coisas menos piores do que são. Quanto a
isso, não tem jeito: Estupro é estupro! É horrível, atroz, te dá pesadelos
dormindo ou acordada; faz querer morrer milhares de vezes por dia; te faz se
sentir suja de um jeito que água nenhuma lava; faz ter medo, e raiva, e ódio;
te faz desacreditar do amor, da esperança e da vida.
Mas me entenda, pode até
parecer que eu estou aqui falando ‘apenas’ da violência e da dor, porém não é ‘só’
disso que se trata. Trata-se também da
minha vontade de que meus netos, quando um dia falarem de mim, possam dizer algo
a meu respeito, e não apenas sobre o que fizeram comigo. Sim, eu fui estuprada,
assim como antes e depois de mim muitas foram também... Mas somos muito mais do
que isso!
Não sei quantos de vocês
chegaram a conhecer essas avós em vida, até porque talvez essa vó seja na
verdade uma tataravó, e quando você nasceu, ela já há muito havia partido deste
mundo. Não sei quantos tiveram a chance de conviver com essas mulheres, não sei
quantos foram ninados e acalentados por elas, ou quantos tomaram pitos ou
surras por alguma traquinagem. Não sei quantos ouviram delas alguma história ou
ensinamento... Não sei o quanto vocês puderam aprender do que elas disseram, e
quantos de vocês foram apenas crianças desatentas, como a maioria é (eu
inclusa). Não sei se alguém reparou nos silêncios e nos olhos por vezes tristes
e distantes. Não sei se algum de vocês as conheceu de fato... Não sei se algum
de vocês as viu chorar, não sei se alguma delas foi consolada.
Não sei se alguma delas
ouviu a frase mágica que quebrou minhas correntes. E sabem, eu queria muito ter
sido esse alguém para elas, queria ter lhes aquelas palavras: “não foi sua
culpa!” Mas ainda que em vida elas não
tenham ouvido isto de mim, elas o ouviram depois, e o ouvem agora, pois sei que
elas estão comigo agora mesmo, me ajudando a escrever.
E infelizmente, eu também
não sei muito sobre elas, porque isso também me foi roubado. Mas do pouco que
restou do mundo do qual fomos arrancadas, ficou aquilo que me salvou, e me
salva ainda hoje. O legado que elas protegeram por toda a vida, e que nos
transmitiram para que nós fizéssemos brotar e frutificar.
Quero lhes contar neste
momento uma história de meu povo: Em nossa tradição, essa semente pode ser
compreendida como literal, pois há na região outrora povoada pelos Puri, e que
atualmente buscamos retomar, um tipo de conta da qual tradicionalmente são
feitos os nossos adornos e objetos rituais. Em nossa língua ela se chama Phyôinhã, lágrima-mãe (essa conta é popularmente
conhecida como ‘capim rosário’ ou lágrima de nossa senhora). Ela nasceu do
choro de uma mulher fugitiva à beira d’água, uma mulher que chorou tanto que
suas lágrimas se misturaram ao rio. Uma mulher que quis ser rio, e rio se fez,
para se lavar de tudo. Mas ela não se acabou, porque o choro que ela tinha chorado,
e que era pesado e grande se transformou em pedrinhas que verteram de seus
olhos, e delas nasceu algo. As pedrinhas que caíram dos olhos dela tinham o
feitio das pérolas na aparência e na natureza: eram lisas como se fossem
polidas; Eram feitas da mágoa pesada, e já nasciam furadas. Quem as encontrou
aprendeu a usá-las e delas são feitas muitas coisas. Quem as têm ainda hoje se
lembra, e sabe que elas vieram dos olhos de nossa Mãe, e que por isso elas são
especiais e através delas podemos vê-la
e ouvir quando ela chora, canta ou ri.
Ela é furada, e através desses
furos passam os fios de nossa existência e de nossos enfeites. Quando elas
vibram em nossas Gangerinas (maracás),
ouvimos as vozes dEla, e nos unimos à sua voz; nesses momentos sagrados, sentimos
essas avós junto de nós, não mais em dor, mas agora em canto vivo que nos faz
sentir de novo que estamos sim, vivos, e assim seguiremos.
Esse é uma ínfima parte do
imenso legado que foi guardado por elas, e transmitido, quando
finalmente
pudemos ouvir. Nos pertence como memória, para que nos lembremos da dor e das
lágrimas, mas também para que nos recordemos da vida, de quem somos, e daquilo não
nos demoverão de ser jamais...
Por elas, em honra delas,
convém lutar, e se lembrar, porque precisamos ser memória. Precisamos falar,
mesmo sobre a dor, para que isto não se repita. Então, caros netos e netas,
tenham respeito por essas mulheres imensas, nossas ancestrais, porque elas são
sobreviventes! Respeite suas memórias, e respeite-as também personificadas
naquelas que vieram depois delas e que precisam de apoio para sobreviver nesse
mundo que nos é duplamente hostil. Por sermos mulheres e indígenas, temos sido
vitimadas, por seu machismo, por sua ignorância, por sua omissão, por sua
indiferença. Nós continuamos sendo estupradas e mortas. E é preciso que isso
pare, e já!
É por isso que eu espero
respeito para elas da parte de vocês. Espero que vocês, homens e mulheres que
leem este texto, possam ser para com as mulheres indígenas da contemporaneidade
pessoas melhores do que foram aquelas da geração com a qual as suas avós
tiveram de conviver.
E vale dizer: espero o mesmo
dos que não têm na sua árvore genealógica nenhuma avó que pertencia aos povos
originários. Tendo ou não uma avó indígena entre os seus ancestrais, seja parte
da cura e da solução, nunca do problema, e participe da construção de um mundo
em que cada vez menos mulheres e crianças sejam vítimas deste ou de quaisquer
outros crimes. Porque eu desejo sim algo grande assim: um mundo aonde os versos**
com os quais termino meu texto não sejam mais a minha verdade, nem de nenhuma
outra mulher...
“Você me contou sobre todas as índias que já aconselhou
Que disseram não quererem mais ser índias
Porque um homem branco ou um índio as estuprou Ou matou seu irmão Ou tentou atropelá-la na ruaOu as insultou ou fez tudo issoO pão nosso de ódio de cada dia Ás vezes nem eu quero ser índia
Mas nunca disse isso antes em alto e bom som Além da fome
Da falta de onde dormir ou de onde dançar
De não ter um emprego ou um lar decente para oferecer a VóÉ saber, com cada sopro invisível de vida,
Que se você não fizer algo bonito
Para que eles possam por na parede ou a redor de seus pescoços
Você poderia estar morta.
(“Old Indian Granny”, Chrystos, Fugitive Colors. Vancouver: Press Gang, 1995).
___________________
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC) e como antropóloga do DSEI-ARJ.
* Meu texto não foi
aqui acadêmico, mas caso queiram ler algo do gênero, indico a abordagem de
Andrea Cherokee Smith, no seu livro “Conquest: Sexual Violence and American
Indian Genocide”. O primeiro capítulo do livro recebeu o prêmio recebeu o
prêmio Gustavus Myers Outstanding Book Award de 2005 e está disponível em
português no link a seguir:
** Chrystos, do povo Menominee,
é uma escritora, poetisa, professora e ativista dois espíritos que publicou
vários livros e poemas tratando dos direitos civis dos indígenas norte-americanos,
da justiça social e feminismo. O poema supracitado comenta o testemunho de
Andrea Cherokee em rotinas de aconselhamento de mulheres indígenas vítimas de
violência sexual, contexto no qual ela muitas vezes ouviu das pacientes que
elas não queriam mais ser índias, já que isso significava para elas ser
justamente o motivo da violência sofrida.
* Todas as imagens são do artista Odilon Redon
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