Os ânimos se acirraram aqui no Aquiry, principalmente no
Yuraiá (rio Jordão), quando as Terras Indígenas Huni Kuin localizadas na região
decidiram não permitir a entrada de candidatos não-índios em suas aldeias, além
de manchetes nos jornais locais, também causou desagrado em um bom número de
postulantes às cadeiras legislativas e executivas municipal. Teve até quem
dissesse ser esta atitude contra a lei por supostamente coibir o direito de
condições iguais para os candidatos (clique aqui).
É bom citar que no Amapá, numa situação idêntica, o
Ministério Público Federal considerou válida a decisão do povo Wayãpi de não
receber candidatos em suas aldeias (clique aqui).
Acho interessante quando leio algumas manifestações
contra a decisão dos indígenas e vejo a utilização do substantivo “crime”, tão
em moda no Brasil contemporâneo.
Trocando em miúdos: os indígenas são criminosos por não
aceitarem a visita obrigatória de pessoas que nada tem a oferecer, além de
promessas vazias e muitas vezes ininteligíveis para a maioria das aldeias?
Não posso dizer que me impressiono com tal substantivo
atrelado à palavra “indígena”, afinal, na visão geral de grande parte da sociedade
nacional é esta a visão que se tem sobre os povos indígenas.
O interessante é que, no caso especificamente do interior
acreano, a maioria dos candidatos são comerciantes, e muitos destes mantém
cartões de benefícios sociais dos indígenas retidos em seus comércios,
categorizando um sistema de barracão tal qual as antigas “casas de aviação”, tão
comum durante os ciclos da borracha, nos seringais do século XX.
Assim, estes candidatos acham criminoso o cerceamento de
sua entrada para proselitismo em aldeias, mas não acreditam ser criminoso o fato
de reter estes cartões, ou comprar carne de caça ou pescados provenientes das
terras indígenas.
Fico refletindo que, na verdade, a busca pelos votos dos
indígenas por parte dos nawa
(não-índios) é somente para se eleger mesmo, pois além do discurso fantasioso
ou embusteiro, nenhum candidato realmente tem um projeto voltado para estas
comunidades. E, para ser bem franco e direto, a grande maioria destes
postulantes nem sequer tem projeto algum além do interesse próprio.
Defender que atitudes como a dos Huni Kuin fere o direito
à igualdade de condições parece até piada. Afinal, os candidatos indígenas tem
as mesmas condições de igualdade na disputa com não-índios?
Já faz tempo que a carreira política no Brasil
transformou-se numa loteria que premia com mordomias e facilidades os que conseguem se eleger e, a partir daí, iniciar seu trajeto político até o olimpo político nacional, localizado nas casas legislativas e executivas do Planalto Central.
Eu acredito que crime é a prática de trocar benefícios por votos. Crime é
mentir descaradamente para as comunidades indígenas, prometendo o que não será
realizado, seja por desinteresse, seja por falta de competência.
Acho certo, válido e amparado na lei o direito dos povos
indígenas em não receber quem quer que seja em suas comunidades, sejam
candidatos, sejam aqueles já eleitos. Não precisa de muito contorcionismo
analítico para se entender isso, basta uma leitura básica do Artigo 231 da
Constituição Federal que estabelece, entre outras coisas, o direito à
diferença, através da manutenção de seus costumes e tradições. Assim, obrigar
as comunidades a aceitarem a entrada destes políticos ou de qualquer pessoa sem
consentimento, é mais uma prova da arrogância colonialista ainda em voga nestas
terras.
Duvido muito que seria chamado de “crime” caso algum
condomínio da elite urbana proibisse a entrada de candidatos.
Claro que os candidatos indígenas se beneficiarão desta
medida proibitiva das comunidades Huni Kuin. Qual o problema nisso?
É importante citar que os indígenas são enganados não por
serem “inocentes e ingênuos”, mas sim, por considerarem a palavra de alguém
como algo sério, válido e seguro, pois, ao dar “sua palavra”, a pessoa está
colocando seu yuxin em dívida para com seu compromisso, e o seu descumprimento
pressupõe desequilíbrios e infortúnios no futuro.
Na verdade, o Brasil precisa avançar, e muito, no
entendimento de que muitas das nossas leis, chamadas “universais”, planificam
de maneira equivocada, e até criminosa os povos indígenas. Tem dúvidas? Tente
enquadrar a cultura indígena, de maneira realmente diferenciada e justa nas
leis sociais e criminais brasileiras.
Hoje em dia temos cota para mulheres candidatas nas
eleições, muito justo. Mas, não posso deixar de perguntar: e cota para índios?
Porque não se avança nisso? Em parte consigo responder a isso: não temos
políticos, principalmente em nível federal, que tenha uma plataforma de
projetos voltados aos povos indígenas.
Todas as manifestações que vemos, por parte da classe
política brasileira, não vão muito além do protocolar discurso de “lutar pelos
direitos indígenas”, conseguindo, no máximo, considerar estes direitos tão
somente a possibilidade de lutar (usam o verbo “lutar” equivocadamente, com
certeza) para conseguir destravar os processos de demarcação de terras
indígenas. Garanto que, nestes últimos dezesseis anos, não vi nenhuma
demarcação de terra como resultado dessa suposta “luta” dos políticos.
Nestes anos todos de indigenismo, ouvi muitos discursos,
vi muitos políticos tirando fotos com índios, vi e ouvi muita propaganda bonita
e colorida com indígenas sorrindo na tv ou em cartazes. Mas não vi resultado
prático significativo destes discursos e propagandas.
Afinal, como é sabido pelas comunidades e por aqueles que
acompanham o movimento indígena, nossos candidatos sofrem de um problema grave
de perda de memória logo após as eleições.
Bato novamente na tecla: porque não temos cota para
candidatos indígenas em todas as esferas do poder político no Brasil?
Na Noruega existe um povo “indígena” (originário), os
Sámi. Eles tem cadeira no parlamento norueguês, além de representatividade
executiva para todos os processos que digam respeito a estes. Seria tão difícil
ter algo assim no Brasil?
Novamente respondo: seria sim!
Então, concluindo, não vejo nada de anormal, criminal ou
excludente a decisão das comunidades Huni Kuin de proibirem a entrada de nawa oferecendo aquilo que não tem,
comprando votos, iludindo a comunidade. Inclusive, a Federação do Povo Huni
Kuin do Acre (FEPHAC), através de seu presidente, Ninawa Huni Kuin já
manifestou seu apoio ao movimento das aldeias do Jordão.
É bom lembrar, também, dos problemas ocasionados durante
as eleições, em que candidatos fomentam a ida de indígenas para as cidades, prometendo
mundos e fundos para eles e, um dia após as eleições os esquecem nas beiras dos
rios, passando fome e sem condições de retorno. Tivemos um triste exemplo disso
no Amazonas, nas eleições de 2014.
Concluindo, creio que as organizações indigenistas,
indígenas, parceiros e indigenistas devem também se atualizar para este novo
ciclo que se segue. Não sei se será pior, ou melhor. Só sei que será diferente
dos demais.
Temos que solapar a prática colonialista de obrigar os
povos indígenas a aceitarem aquilo que não querem.
É isso.
Nesta última semana em que não escrevi no blog fiquei
observando as convulsões virtuais no meu feed do Facebook, onde vi
comemorações, lamentações, revoltas e muitos clichês nas postagens. Não respondi
a nenhuma mensagem nem provocação, nas postagens em que me marcaram. Apenas
refleti na máxima de Maquiavel, que tem muito a ver com que vem sendo postado
nas redes sociais: há três espécies de
cérebros: uns entendem por si próprios; os outros discernem o que os primeiros
entendem; e os terceiros não entendem nem por si próprios nem pelos outros; os
primeiros são excelentíssimos; os segundos excelentes; e os terceiros
totalmente inúteis.
Tenho observado muitos nesta terceira categoria descrita
por Maquiavel. É preciso entender que o mundo não é binário, é líquido. E neste mundo
líquido a dúvida é quem reina.
O que posso dizer a todos é que eu sou, sempre fui e
sempre serei “pró-índio”. Acredito que isso já sinaliza muito do que acho sobre
as zaragatas nacionais que andam ocorrendo.
Venho lendo muitas coisas, batalhando no indigenismo de
cada dia, com poucos recursos e muitos desafios.
O calor me aflige nestas tardes quentes de setembro,
esperando pelo canto agonizante das cigarras, que indicam que a agonia do agora
prenuncia um futuro de transformações e renovação em nossa Amazônia.
Boa semana a tod@s!
Jairo Lima
* Todos os desenhos utilizados nesta postagem são do professor e artista Isaías Sales Ibã Huni Kuin.
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