Crianças Huni Kuin - Foto: Talita Oliveira** |
Na semana que passou li duas noticias que me causaram
diferentes sentimentos. Notícias estas que, em comum, tinham os mesmos temas:
morte e visibilidade midiática.
Obviamente que uma delas o leitor vai deduzir se tratar
do afogamento do ator Domingos Montagner.
A outra, poucos ou praticamente nenhum dos leitores
poderia deduzir. Trata-se da divulgação do relatório “Violência contra os Povos
Indígenas do Brasil”, que nos trouxe dados que mostram haverem ocorridas 891
mortes violentas de indígenas no Brasil entre 2003 e 2015.
Como escrevi acima, estas notícias percebidas por mim trouxeram emoções distintas.
A primeira vi rapidamente e com indiferença, pelo fato de que eu não
fazia ideia de quem seria este ator que morreu, ou sequer que existia um ator
com este nome. Não sabia de que trupe ou canal o mesmo pertencia, pois tomei
conhecimento de sua morte pelo facebook, através das postagens com carinhas
tristes e lágrimas escorrendo. Geralmente "passo direto" quando vejo estes emoticons. Assim, na hora dei de ombros, pois outro sentimento logo me
tomou de assalto ao ler a matéria seguinte, do site Amazônia Real sobre o relatório que
trazia os dados e contextos das mortes dos indígenas.
Li a matéria, passei os olhos nas informações do relatório, e fiquei triste, pois me lembrei do nome de alguns destes
mortos. Lembrei-me de seus rostos. Lembrei-me da profissão de alguns deles.
Lembrei-me, ainda, de alguns momentos descontraídos e divertidos que tive junto
com alguns deles. Pensei e até escrevi um comentário quando compartilhei o
texto na minha timeline: infelizmente,
estes são os “invisíveis” e as suas mortes não causam tanta consternação quanto
a de outros. Respeito o luto nacional por suas figuras púbicas, mas me dói
muito pelo desconhecimento e a falta de reconhecimento nacional deste genocídio
que vem ocorrendo com nossos povos originários, os verdadeiros donos desta
terra...
Lembrei-me de dois casos mais recentes, um destes, em que
estive envolvido diretamente nas investigações, foi o caso do assassinato das
quatro lideranças do povo Ashaninka, na fronteira Brasil/Peru, aqui pertinho de
onde me encontro agora. Eram pessoas que lutavam pelo direito de não terem suas
terras devastadas por madeireiros e narcotraficantes. Entre estes se destacava
o líder Edwin Chota Valera, que conheci e tive a oportunidade de conversar em
duas raras ocasiões, ficando bastante impressionado com sua clareza e comovido
pela sua cruzada. Ele e os outros três foram mortos e esquartejados, não tendo
sido possível dar-lhes um enterro decente.
O segundo caso, muito mais recente, foi o assassinato do
professor Carlos Alberto
Domingos Kaxinawá, morto a tijoladas e que teve parte
da orelha decepada.
Ritual no Yuraiá - Foto: Talita Oliveira |
Almas invisíveis – pensei.
Isso me fez refletir sobre esta questão: realmente os indígenas no Brasil são seres
invisíveis?
Claro que notícias sobre os povos indígenas têm espaço
nas mídias nacionais, de grande alcance. Espaço este não só para notícias
ruins, pois tem coisa legal sendo divulgada em um programa ou outro. Mas não é
o suficiente.
Vemos crescer nas redes sociais, os sites e blogs
alternativos, que estão recheados das mais diversas notícias e matérias sobre estes
povos. Temos iniciativas muito boas, organizadas e que estão tomando um alcance
nacional cada vez maior, posso citar como exemplos a Rádio Yandê, primeira
rádio indígena do Brasil; a revista Xapuri – a qual contribuo com alguns
textos; o site Combate ao Racismo Ambiental, que mesmo não sendo exclusivo para
questões indígenas, contribui enormemente e, claro, o site Amazônia Real, com seu jornalismo amazônico; entre outros.
São experiências muito boas, um verdadeiro indigenismo, mas
que ainda não conseguem romper com o “seletismo” jornalístico e informativo
programado na mente e na cultura da maioria da população nacional. Programação
essa que os impele a não ver ou se interessar com a temática indígena, exceto
claro, as grotescas caricaturas apresentadas nas festividades carnavalescas do
Rio de Janeiro ou extravagantemente fantasiosa da festa de Parintins. Festas
que, apesar de lindas e divertidas, não contribuem muito com a causa indígena.
- Só
891 mortos em treze anos? Isso não é nada, morre isso por ano nas
favelas de São Paulo e Rio
de Janeiro – foi a mensagem que recebi de um amigo logo após ele ler minha
postagem no facebook.
Concordei com ele, ainda mais porque essas informações
são de conhecimento nacional, fazendo parte do show de horrores explorado pelos
programas ditos “policiais” que infestam os canais brasileiros, e é o tipo de
notícia com espaço cativo nos principais jornais em circulação no país, sendo
até estranho quando não há notícias, editorais ou ensaios sobre isso. Sem
contar as milhares de postagens nas redes sociais.
Não respondi à mensagem do amigo, pois não quis fazer
comparações, nem entrar na questão cultural e histórica dos índios no Brasil,
do genocídio ao etnocídio (termo ouvido ontem numa conversa com os colegas do
IFAC), pois não queria entrar em um debate desnecessário e com grandes chances
de serem cometidas injustiças ou leituras equivocadas das situações. O assunto
morreu antes de se iniciar.
Kuntanawa - Foto: Talita Oliveira |
Assim, mergulhei em minhas reflexões por um tempo,
refletindo as lutas, desafios e atrocidades vividas continuamente pelos
indígenas brasileiros. Os descasos das autoridades representativas de nosso
país. As leis cada vez mais universais que, quando não integracionistas (num
sentido pejorativo), são excludentes. A busca pelo lucro e luxo dos donos do
poder e de terras. Tantas mortes, tantos sofrimentos... pensei: meu Deus! Que cegueira é essa que acomete o
povo brasileiro?
Passando os olhos pelas postagens, notei algumas bem
hostis, pelo fato de que estava sendo dada tanta importância à morte deste ator
da Globo (saquei que era desta empresa neste momento), tendi a concordar e senti
que estava me deixando levar por estes pensamentos tristes, revoltados e que,
tal qual um líquido inflamável, tentava acender uma fogueira de sentimentos e
posicionamentos que há anos aprendi a controlar e direcionar para coisas
positivas e construtivas.
Nisso, atentei para um fato que me gerou outro
sentimento: eu estava agindo igual aos “cegos e indiferentes” do Brasil ao dar
de ombros sobre a notícia da morte do ator. Caramba! Eu o estava tratando como
um ser invisível! Eu estava sendo totalmente “seletivo programado”, polarizante
e insensível!
Constrangido, como se tivesse sido pego fazendo algo
muito feio, resolvi ler um pouco mais sobre o ator. Apesar de não assistir (e
não gostar de) novelas, resolvi ler sobre o tema da mesma. Vi algumas cenas,
entre estas, a do personagem sendo resgatado pelos índios após ser baleado.
Li sobre suas atividades e projetos fora das telas e confesso que me
surpreendi com o que li, me arrependendo de ter “dado de ombros” ao ter o
primeiro contato com a notícia de sua morte.
Olhando a situação pela ótica dos povos indígenas, suas
tradições, concepções de mundo e crenças, não deixei de sentir que, apesar da
tragédia como se deu sua passagem, Domingos Montagner se foi como que
“encantado” pelos seres do rio São Francisco. Inclusive o ator foi homenageado
pelo povo indígena Fulni-ô, que participou de alguns episódios da novela e que
afirmaram exatamente o que escrevo aqui.
Feita minha mea
culpa mental (e agora pública), convenci-me que temos que contribuir
para o
aumento da visibilidade dos povos indígenas, lendo e compartilhando, divulgando
e envolvendo cada vez mais pessoas para a causa indígena, para que a mensagem
chegue aos seus olhos, ouvidos e corações.
"Vigiando o rio Tejo", Kuntanawa - Foto: Talita Oliveira |
Não precisamos de radicalismos, nem de polarizações.
Precisamos de união, sensibilidade e conhecimento. O movimento indígena precisa
de ações construtivas, agregadoras e informativas.
Ao final do dia cheguei à conclusão de que, na verdade,
os povos indígenas não são invisíveis. Sua cultura é rica e luminosa. O
problema é que a grande maioria da população brasileira ainda não é capaz de
enxergar esta luz.
E é nesse ponto que temos que contribuir, pois temos que
ajudar o maior número de pessoas a enxergar esta luz. Essa é mais uma frente do
indigenismo.
O que não podemos é nos transformarmos em pessoas cegas
que, sob pretexto de só enxergar a luz da cultura indígena, se torna alguém
intolerante e desagregador para com os que não enxergam, desprezando ou
ridicularizando-os, isso não contribui em nada, pelo contrário.
Crianças Noke Koi - Foto: Talita Oliveira |
Um exemplo maravilhoso foi dado pelos Fulni-ô ao
homenagear o ator falecido, independente de suas crenças, posições políticas ou
local de trabalho. Mostraram respeito pela alma humana, tornando-a “visível”
para os seres celestiais e seus ancestrais na aldeia sideral.
São atitudes como esta que mostram a grandeza da cultura indígena.
Acalmo meu coração e minha mente, refletindo as sábias
palavras do grande pensador e educador Jiddu Krishnamurti: a verdadeira revolução não é a revolução violenta, mas a que se realiza
pelo cultivo da integração e da inteligência de entes humanos, os quais, pela
influência de suas vidas, promoverão gradualmente radicais transformações na
sociedade.
Boa semana a tod@s,
Jairo
Lima
* Nawa xarabu bu huneä - "povos invisíveis", em hãtxa kuin, língua do povo Huni Kuin.
**Talita Oliveira é fotógrafa, radicada em Rio Branco/AC, trabalha no projeto Nokun Txai, projeto pioneiro da produtora Saci-Conteúdo em Movimento. Participou de vários projetos visuais, entre estes o "Artista de Plástico".
Parabéns, Txai!!!
ResponderExcluirMuito bom Jairo, dias atrás vi a Indígena Narubia Werreria palestrando e comentou de forma triste sobre a grande quantidade de suicídios que tem acontecido no seu povo no Tocantins, fiquei muito surpresa. Agora você faz essa publicação, vejo que o genocídio nunca acabou, infelizmente.
ResponderExcluirOi Flor,
ResponderExcluirÉ algo que o Brasil precisa evoluir.
É isso mesmo, Jairo. Precisamos de mais coesão e menos mimimi.
ResponderExcluirTô contigo. Força, amigo!
Agradeço professor Binho. Realmente, temos que arregaçar as mangas.
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