Mulher Huni Kuin- Foto: Jairo Lima |
Observando a imagem que a revista Xapuri selecionou para
ilustrar minha crônica da semana passada, não deixei de perceber a beleza e a
força que ela emanava.
A imagem era uma fotografia, tirada pelo Prof BinhoMarques, que mostrava duas indígenas Ashaninka, entre elas a agente de saúde
Dora Piyanko Ashaninka.
Isso me fez pensar nessa figura, “mulher indígena”, na
contemporaneidade indígena do Aquiry* e o assim chamado “papel” que ocupa em sua
comunidade e nos processos de interações e interlocução social com o mundo do Yura**.
É muito comum que, ao ouvirmos falar da mulher indígena, somente façamos a ligação mental com os afazeres ditos “femininos” em uma aldeia, como
cuidar dos filhos, preparar alimentos, cuidar da casa, etc. Visão enganosa que
podemos comparar com a ideia tradicional e conservadora de nossa sociedade, que
ainda insiste no termo cafona e limitante do papel da mulher, enquadrando-a tão
somente como “do lar”.
- Só
que não, cara pálida!
O assim chamado "universo feminino indígena" é muito amplo,
e sem o qual, o que conhecemos como cultura indígena não teria a riqueza e
profundidade que estamos acostumados a ver.
Foi para as mulheres que a sagrada jiboia Yube ensinou os mistérios e os segredos
dos kene e dos mitos do seu povo Huni Kuin.
O povo Puyanawa não teria a técnica da pesca tradicional se não fosse graças a uma mulher.
O povo Puyanawa não teria a técnica da pesca tradicional se não fosse graças a uma mulher.
O feminino em tudo se faz presente na cultura indígena e
isso fica claríssimo quando analisamos a expressão máxima do sagrado indígena:
ayahuasca. Resultado mágico da união da força do cipó com os encantos da folha.
E aí que se mostra a força feminina que, representada pela folha, é responsável
por revelar os mistérios sagrados da cultura ancestral e dos caminhos
espirituais que o yuxin deve seguir.
As chamadas “artes indígenas” são impregnadas do saber e
da energia tradicional
feminina, emanadas a partir de sua manifestação física.
Por exemplo, as famosas e populares pulseiras e colares Huni Kuin (Kaxinawá) feitas
de miçangas possuem uma peculiaridade interessante, quando feitas por uma
mulher são chamados kene kuin
(desenho verdadeiro) e que traz uma energia especial e verdadeira dos
ancestrais. Quando feitas por homens, são conhecidos como dami (desenho qualquer, coisa, etc), que são bonitos e são da
cultura, mas não tem a energia espiritual e sagrada dos ancestrais. Vale citar
que outros povos indígenas locais tem, de modo geral, a mesma regra.
Tecelã Ashaninka- Foto: Shãtsi Ashaninka |
Eu, como me considero extremamente espiritualizado e dou muito valor às simbologias, faço questão de só usar kene kuin.
E o que dizer das pinturas corporais? Lindas e cheias de
simbologias.
Tive inúmeras oportunidades de ter meu corpo pintado de
desenhos tradicionais por mulheres de diferentes povos, e testifico que este é
um processo único que vai nos remetendo, a cada traçado pintado em nossa pele, às
origens e logos universais, bem como à nossa união com a força da natureza, com
a qual convivemos enquanto viventes e com a qual nos harmonizaremos quando sob
esta formos sepultados.
Uma prática que vem sendo recuperada nas aldeias é o da
parteira tradicional. Figura importante e que liga a criança à tradição de seu
povo logo ao nascer.
Os movimentos de fortalecimento ou recuperação da cultura tradicional
seriam incipientes, se não contasse com o engajamento delas. Temos vários
exemplos deste engajamento, espalhados pelas aldeias do Juruá. Um que acompanho
de perto é o lindo trabalho desenvolvido pela Vari Puyanawa que, em breve, estará
publicando suas pesquisas e “estudos” espirituais sobre kene tradicionais inspirados pelas mirações do Uni.
Outros papéis comunitários vêm sendo ocupados pelas
mulheres: professoras, agentes de saúde, presidentes de associações e
cooperativas, entre outros.
Anos de convivência com os povos indígenas do Aquiry
muito me ensinaram, principalmente a respeitar o papel da mulher e sua
importância na dinâmica e no funcionamento de uma aldeia.
Vari Puyanawa e seus desenhos - Foto: Talita Oliveira |
Claro que, por ser homem, sempre fui excluído dos momentos
em que as mulheres se dirigem aos roçados para colher macaxeira ou banana. Mas,
pelos relatos de minhas companheiras indigenistas que já acompanharam estes
momentos, é onde se pode aprender muito sobre a cultura e seus processos de
tomada de decisão.
É por isso que sempre digo para os que não conhecem a
cultura indígena: no fim das contas, acho
que quem manda numa aldeia são as mulheres, pode ter certeza.
O mundo está sempre em transformação social e cultural, e
claro, as comunidades indígenas, à exceção dos povos isolados, não estão imunes
a estas transformações. Só que estas transformações, além de novos desafios,
também vem trazendo ventos de mudança e expansão do papel da mulher neste
universo social e cultural.
Temos muitos exemplos disso.
É cada vez mais comum esta participação nos processos de
tomada de decisão e representatividade do movimento indígena, bem como de
outros espaços ditos “de poder” que, até bem pouco tempo, tinham a figura
masculina como referência.
Palavras como pajé, cacique, liderança, são só algumas
que deixaram de se referir exclusivamente a atividades do homem. Pelo menos
aqui no Aquiry.
Assim, temos figuras queridas e fortes que assumiram
papéis de referência em suas comunidades e em instituições, dando, além de um
brilho e energias diferentes, um toque especial no trato da questão indígena.
São figuras como a Cacique Enir Shanenawa, que resolveu
criar uma aldeia, a Shanekaya, com o objetivo de fortalecer a cultura do seu
povo e não permitir a interferência dos maus costumes dos nawa, como o uso de
bebidas alcoólicas. Esta comunidade hoje é referência em organização para seu
povo, e vem se destacando na região como um local que cada vez mais recebe
visitas e onde são realizadas atividades ligadas ao movimento indígena local.
E como não citar a coordenadora da Coordenação Regional
Alto Purus, em Rio Branco, Maria Evanízia Puyanawa, que conseguiu recolocar em
pleno funcionamento esta unidade da FUNAI, que praticamente estava inoperante e
deteriorada.
E como não se encantar com o vídeo “Nixpu Pima - Rito de Passagem Huni Kuin”, da
videasta Pãteani Mara Vanessa Huni Kuin, apresentando uma visão única e rica da
cerimônia de batismo tradicional de seu povo?
Pãteani Huni Kuin - Foto: Talita Oliveira |
Aqui no Juruá acostumamos com a presença e as palavras
fortes de lideranças como Lucila Nawa, na luta pela regularização fundiária de
sua terra; e da Edna Shanenawa, que vem encampando e lutando pelas políticas de
gênero e fortalecimento dos conhecimentos do artesanato indígena, através da
Associação de Artesãs e Artesãos do Vale do Juruá.
Não poderia deixar de citar a prof Francisca Yaka
Shawãdawa, que iniciou sua trajetória no magistério indígena sob meus cuidados,
há dezesseis anos atrás, e hoje é a presidente da Organização dos Professores Indígenas
do Acre (OPIAC), referência na luta pelos direitos dos professores e pelas
políticas voltadas à educação escolar indígena.
A presença e trabalhos cada vez mais reconhecidos e
procurados das pajés Yawanawá contribuíram
para a quebra de paradigmas nesse nosso mundo em transição, onde o papel da
mulher no assim chamado “sagrado indígena” assumiu nova posição. E, ao
contrário do que acham, os assim chamados “puristas”, este movimento deu nova
vida a este povo e serviu de referência para que outros passassem a considerar
cada vez mais esta participação e protagonismo.
A saúde indígena do Juruá recebeu de braços abertos a
médica Gilda Maria Yawanawá, primeira médica indígena do Acre, nascida e criada
na Terra Indígena Rio Gregório e que, através de parcerias de seu povo foi para
Cuba para cursar medicina e que, tendo retornado, atuará no atendimento de
saúde aos povos indígenas do estado.
Yaka Shawãdawa - Foto: Hadrien La Vapeur |
Um movimento crescente, e que está se consolidando cada
vez mais, é o intercambio e participação em diversas atividades no Brasil e no
exterior de mestras e aprendizes da tradição, divulgando e apresentando a
cultura de seus povos, sempre com alegria e com a energia cativante de sua
presença. Entre estas mensageiras, não poderia deixar de citar a filha do
saudoso Inkamuru, Ayani Huni Kuin.
Citei estes exemplos, e poderia citar muitos outros, só
aqui no Aquiry, isso sem contar no restante do país onde várias lideranças mulheres se destacam.
Recentemente estive em Rio Branco, em uma série
interminável de reuniões e, numa destas, reparei estar “cercado” de mulheres em
destaque nos diferentes nichos de sua atuação. Foi um pensamento de relance,
mas notei que estas se dividiam, em igual quantidade, entre indígenas e
indigenistas. Lindo. Não posso negar que me senti minoria, juntamente com
outros colegas do sexo masculino, mas, ao contrário do sentimento de disputa,
senti um algo reconfortante de saber que estas mulheres estavam ali, e que
isso, pelo menos para mim, significava que teríamos sucesso no que estávamos
discutindo.
Same Shanenawa - Foto: Arquivo Same |
Ah, sim! Não poderia deixar de citar que muitas destas
mulheres são mães, esposas, estudantes, amigas, avós, etc. E sempre observei
que, independentemente do que estejam desenvolvendo, jamais se esquecem destes
compromissos familiares, sociais e culturais em que estão inseridas.
Sempre achei a mulher indígena uma criatura linda,
imbuída de uma beleza que transcende o material.
Sua presença nos ambientes nunca passa despercebida, pois
inunda o espaço com a energia suave e colorida de seu yuxin. Carregando sobre
si toda a sabedora e força entregues a seu ser pelos seres fantásticos e
sagrados dos antepassados.
Não gosto da palavra “guardião” para classificar qualquer
conhecedor da tradição indígena, por isso creio ser a mulher indígena, em vez
de guardiã, a representação viva da força ancestral do seu povo e sem a qual
este não teria razão de existir.
Não poderia terminar minha reflexão sem citar outra “categoria”
de mulheres que, por seu engajamento, são consideradas como parte da cultura.
Falo das indigenistas que dedicaram ou dedicam suas vidas ao trabalho junto às
comunidades.
Pessoas maravilhosas, representadas pela figura guerreira
e incansável da querida e eterna professora de indigenismo, Dedê Maia, que
mesmo após ultrapassar a idade de aposentadoria, continua envolvida em projetos
e lutas em prol dos direitos e chamada “agenda indígena”, e com a qual tenho a
felicidade de cruzar, vez ou outra, em diferentes ambientais de trabalho.
Dede Maia em seu "ambiente natural" - Foto: Acervo Dede |
Finalizo atentando que iniciamos o mês chamado “outubro
rosa”, dedicado à campanha que nos impele a refletir e contribuir, de alguma
maneira, para a conscientização sobre a prevenção e o diagnostico precoce do
câncer de mama. Não poderia me furtar de citar isso.
Diferentemente de outras crônicas, nesta não citarei
frase de algum pensador – ou pensadora – sobre o tema que discorri. Decidi isso
simplesmente porque não acredito haver pensador ou filosofo que seja capaz de
definir a mulher e, no caso em questão, a mulher indígena com toda a honra e
louvores que esta merece.
Boa semana a tod@s,
Jairo Lima
* Aquiry - Nome original do Estado do Acre
** Yura - Não-índio
Amei!
ResponderExcluirLindo, que bela homenagem, a cada semana você nos presenteia com seus textos maravilhosos...e essa semana fiquei encantada com esta bela homenagem...simplesmente encantador.Boa semana para nós.
ResponderExcluirExcelente!
ResponderExcluirTexto maravilhoso, cheio de encantamentos!
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