Por: Jairo Lima
- Não come isso aí
não txai! – Alertou-me Maru fazendo-me cessar o movimento de levar à boca
uma colherada de um apetitoso pirão de peixe, e olhar para o prato em busca de
algo estranho que alertasse meu parceiro de viagens.
- O que foi? –
Perguntei, já achando que tinha algo errado com a comida.
- Esse peixe aí tu
não pode comer, se não vai afetar tua melhora – Respondeu-me Maru
tranquilamente, sem precisar de mais detalhes eu entendi que ele se referia à
“dieta” que eu deveria seguir, pois estava me recuperando de uma infecção e
aquele alimento seria por demais “reimoso”*.
Desisti imediatamente daquela iguaria às margens do rio
Taraya (Tarauacá), enquanto descansávamos à noite no batelão, após um dia de
muito sol e poucas novidades em nossa subida em direção à aldeia Goiana, Terra
Indígena Praia do Carapanã. Acabei tendo que me contentar com uma farofa de
carne moída.
A conversa então seguiu sobre a questão das dietas, com
os tipos de comida que deveriam ser evitadas ou usadas, de acordo com as
idades, condição física ou de saúde da pessoa.
Assim, pelo restante de minha estadia nesta Terra
Indígena até meu total reestabelecimento, segui à risca a dieta indicada pelo
Maru e pela Parã.
Essas são minhas lembranças de 2004, e não foi meu
primeiro contato como assunto, mas, foi a primeira vez que dei a devida atenção
ao tema. Principalmente pelo fato de estar em recuperação de uma enfermidade e
a última coisa que eu queria era passar o restante de minha viagem doente, a
“dias”** de distância de um hospital.
Desde esta experiência passei a estudar mais sobre o
assunto, bastante interessante e complexo que vai além de simplesmente deixar
de comer ou beber algo. Tem muito a ver, também com o equilíbrio espiritual e
holístico do indivíduo e, deste, com a natureza. Esta última também numa
concepção anímica de sua essência.
Muitas vezes me submeti a dietas e tratamentos com as
chamadas “medicinas indígenas”, não só com olhos e interesses de pesquisador,
mas, também, por questões pessoais, e posso afirmar que estas dietas e
tratamentos foram verdadeiras jornadas, fazendo-me entender profundamente uma
das chaves do entendimento da sentença filosófica e espiritual mais clara que
já ouvi, eternizada nas paredes do templo de Apolo, em Delfos: conhece-te a ti mesmo.
A palavra dieta
é algo muito comum aos ouvidos e entendimento de nossa sociedade. No entanto, a
compreensão e uso da mesma foram restringidos à estética do corpo ou ao
tratamento de saúde.
Vemos, a cada dia, surgirem novas formas de dieta para
emagrecimento, para lapidar o corpo, para endurecer o bumbum, sumir com as
rugas, etc. Assim como vemos notícias sobre novas descobertas ligando alimentos
ao aumento ou diminuição de doenças.
Somos inundados de propagandas do “antes e depois” de tal
terapia, tratamento ou uso de técnicas e produtos de ultima geração,
consagrados, onde estrelas da TV ou do esporte nos mostram como estão bem com
estes procedimentos mágicos.
Vemos, a cada dia, novos estudos trazendo regras e
novidades sobre nutrição e bem estar alimentar. O que acho interessante nestes
“novos estudos” sobre alimentação e nutrição é que, a cada ano ou década,
descobre-se que tal alimento é perigoso ou, o que era considerado saudável
antes, torna-se pernicioso depois. Tenho quarenta e três anos e já vi o ovo
entrar e sair da lista de alimentos perigosos umas tantas vezes. Assim como o
café, o chocolate, o vinho e o sal. Parece que a cada nova geração de médicos a
regra é desdizer a anterior.
Parece que nossos estudiosos ainda não conseguem entender
o que se passa com a “máquina”. Acho isso interessante e não posso deixar de
fazer uma comparação com os conhecimentos indígenas que, para muitos, são primitivos, atrasados e cheios de superstições.
Sei que pode parecer papo de bicho grilo (nada contra),
mas, aprendi nesses anos todos que não se trata a “máquina” sem equilibrar o
“sopro” que a move. Isso está claro não só para os mais antenados às praticas
holísticas da medicina, como também para todos os povos antigos, inclusive os
que nos deram as bases da sociedade que vivemos hoje.
Acontece que, ao passo que nós vamos “evoluindo” nesta
civilização moderna rodeada de concreto e asfalto, vamos deixando para trás, ou
relegando à categoria de superstição, a herança espiritual e mística dos nossos
antepassados. Até a espiritualidade moderna é, em grande maioria e
principalmente em nossa cultura ocidental, enquadrada em “caixinhas”
devidamente doutrinada e com preceitos estabelecidos, pautados em dogmas ou
expressões frias de algo que parece estar tão longe, algo inalcançável. Vamos
perdendo o prazer das coisas simples, com a simplicidade com que são feitas ou
nos são dadas.
Temos ainda as terapias exóticas, tratamentos, vivências
e peregrinações que prometem nos conectar com os espíritos, energias e nos
equilibrar com o cosmos.
Infelizmente, para acessá-las, em muitos dos casos, é necessário, além do
passaporte, dispor de recursos financeiros suficientes. Afinal, ir ao Tibete,
fazer o Caminho de Santiago, ir à China ou ao Japão não são para qualquer um.
Até mesmo para experiências conhecidas em nosso próprio continente
sul-americano, como o nosso “Tibete Inca” (Andes) não é tão acessível assim.
- Certo, então
quais seriam essas dietas mágicas dos índios? Mostra onde compro! - Calma,
também não é assim que a coisa funciona.
Já escrevi em outro momento que não se deve buscar algo,
principalmente tratamentos, seja espiritual, seja material, quando não se tem
necessidade. É como citei: o vaso cheio
demais transborda, e se cai, quebra. Assim é o ser humano.
Temos uma riqueza enorme de conhecimentos indígenas
ligados a tratamentos e terapias. Conhecimentos estes que vem, em certo grau,
sendo buscados cada vez mais por pessoas que sentem a necessidade de “algo a
mais” que as terapias biomédicas ou ditas “holísticas” que nossa sociedade
dispõe.
Vejo crescer a circulação de pessoas pelas aldeias daqui
do Juruá, sendo atendidas pelos curadores, fazendo algumas dietas e
tratamentos. Infelizmente, como este processo ainda não está devidamente
valorizado e organizado junto com as instituições de controle e apoio, além dos
enfermos e peregrinos, vem junto aqueles que querem se apropriar destes
conhecimentos e divulgar irresponsavelmente ou, ainda, procurar obter lucro.
Cada povo indígena tem o seu compêndio de regras
alimentares e comportamentais para diferentes finalidades. Este é um
conhecimento secular, passado de geração a geração que precisa ser devidamente
reconhecido, valorizado, estudado e disponibilizado para conhecimento geral e
acessível a quem precisa.
Claro que, neste processo, há de se assegurar os direitos
e valorização dos seus detentores originários, para que tal conhecimento não se
torne mais um objeto de mercado ou da biomedicina, rapinado pelo yura (não-índio).
Outro fator de preocupação para a proteção destes
conhecimentos é a necessidade de se discutir esses temas junto aos órgãos,
unidades e profissionais de atendimento biomédico, pois, muitas vezes,
consideram as práticas tradicionais de cura e tratamento como processos inúteis
ou prejudiciais aos “pacientes”.
Existem muitos estudos sobre as práticas tradicionais de
dieta e terapias dos povos indígenas. Infelizmente, em sua quase totalidade,
são estudos guardados, ou esquecidos, em dissertações, teses, ensaios e artigos
localizados em alguma prateleira virtual ou física de bibliotecas universitárias,
que em nada são atrativas ou devidamente valorizadas na macro-sociedade, suscitando interesse somente em grupos de estudos
ou graduações específicas. Sem contar que, em quase sua totalidade, estes
materiais são um tanto quanto enfadonhos ou difíceis de “digerir” para os que
não dominam o linguajar acadêmico.
Recentemente, alguns livros mais alternativos vêm sendo
construídos nas comunidades indígenas, tentando mostrar a riqueza das plantas e
suas aplicabilidades para as diferentes enfermidades e panemas. Posso citar como exemplo o ricamente ilustrado e didático
livro Una Isi Kayawa: Livro da Cura do
Povo Huni Kui do Jordão. Obra feita através de uma parceria entre o Jardim
Botânico do Rio de Janeiro e as comunidades indígenas localizadas no Rio Jordão.
Até materiais como este são pouco conhecidos, e divulgados somente em um
circuito muito pequeno e fechado de interessados.
Ressalto, no entanto, que não adianta só ter materiais de
leituras e descritivos com as “receitas” destas dietas e tratamentos, pois, como
venho tentando expor neste texto, a essência deste tipo de conhecimento vai
além da “substância”, compreendendo, também em seu processo, o “conteúdo”. Ou
trocando em miúdos: nem todas as dietas ou tratamentos tratam-se só de fazer um
chá ou aplicar algo no corpo, é preciso também, harmonizar a matéria com o yuxin do corpo e os yuxin da natureza.
A afirmação acima pode até parecer bem estranha, assim
como este papo como um todo, mas, acredite, faz sentido para um bocado de
gente. E, para as comunidades indígenas, eu não estou falando mais que o óbvio,
algo totalmente crível e embasado em séculos de conhecimento.
No cotidiano caótico e em que vivemos nas cidades, cada
vez mais somos impelidos a paliativos artificiais de “sobrevivência”, condicionadas
em cápsulas ou vendidas em diferentes sites. Temos tudo devidamente embalado
para ficarmos felizes, calmos, com sono, magro, gordo, forte, ou com tesão.
Temos gurus midiáticos e estrelas do bom viver que sempre nos dizem para “substituir isso por aquilo”. No entanto,
ainda assim, vemos crescer cada vez mais os problemas existenciais dos
citadinos, seja no plano físico, seja no mental/espiritual (substância e
conteúdo do ser).
Acredito que, em vez de só “substituir isso por aquilo”,
ou buscar o alívio imediato encapsulado dentro de caixinhas, devemos buscar
algo que não só nos mantenha saudáveis de corpo, mas, também, equilibrados com
o ying-yang, nessa breve existência material que dispomos.
Quando, em meu cotidiano na cidade, me deparo com as
circunstâncias que envolvem saúde ou algum “inferno astral”, o que vivi, vi e
aprendi com estes povos faz com que uma resposta pronta venha logo à mente e,
por vezes à boca: tô precisando fazer uma
dieta, “tomar um sapo”, uma sananga, um cipó ou rapé...acho que tenho que ir
para a aldeia o mais rápido possível.
* Reimoso - termo regional para indicar que determinado alimento pode agravar a enfermidade ou inutilizar seu tratamento.
Imagens: Anouk Garcia: http://www.anoukgarcia.com/
Todas as imagens utilizadas neste texto foram cedidas pela fotógrafa Anouk Garcia, que gentilmente cedeu as imagens para uso exclusivo nos textos deste que vos escreve.
Registro aqui o comentário feito no facebook, da Raial Orotu Puri sobre este assunto> Acho interessante e complementar ao assunto:
ResponderExcluirComo já de costume, um ótimo texto, que compartilho e recomendo extremamente a leitura!
A crônica da semana fala muito a mim, pois a minha percepção de doenças é exatamente essa que aqui foi sintetizada: uma situação de desequilíbrio. E daí também advém meu veto à possibilidade de um remédio raion ser capaz de 'curar', visto que eles não só não são capazes de restaurar o equilíbrio, como muitas vezes são causa direta de desequilíbrio. (Né Tuschahi)
Aliás, como a crônica também contempla, não apenas os remédios raion, mas o mundo raion como um todo se caracteriza por um desequilíbrio constante, que atinge tanto os próprios raion, como os indígenas que muitas vezes se acham na necessidade de estar em contexto urbano. Na minha percepção, aquilo que torna esse mundo suportável são os instantes em que conseguimos nos religar de alguma forma com a Essência do que somos. Isso se faz possível através da medicina, das dietas, dos cantos ancestrais... Mas ao mesmo tempo penso que fica sempre essa ânsia de retornar efetivamente à floresta, à nossa casa verdadeira.
Para o mundo raion, penso que este conhecimento de dietas é sobremaneira importante também, visto que também oferece uma resposta para esse mundo de desequilíbrio que é fonte de tão grande sofrimento. Resta, no entanto, a dificuldade do raion compreender a riqueza que isso representa. Riqueza não de caráter financeiro, mas de uma possibilidade de existência. (Lamentavelmente, nem sempre ou quase nunca o valor imaterial é atraente em si mesmo para o raion).
Enfim... Uma das melhores coisas desses textos é que eles fazem-nos pensar muito... E eu só tenho a agradecer muitíssimo por essa oportunidade de construir um território específico de pensamento, sobre temas tão relevantes. Obrigada, Jairo!
Comentário que retirei da postagem que a querida Dede Maia fez em relação ao meu texto:
ResponderExcluirTexto bom a gente relê Jairo Lima!
E agora comentando com mais profundidade, como profundo é esse conteúdo que tu maravilhosamente nos apresenta. E essa publicação na Xapuri está linda!
Mais uma das tuas pérolas encantadas em tua memória gigante, que guarda lembranças relevantes, e que me toca profundamente.
Esse especificamente aborda um tema que está bem presente na minha vida, e bem nesses dias atuais. Especificamente, nos meus “pensamentandos...”
Além de expressar tua visão, que também é a minha, sobre saúde e doenças, pois acredito que nossa saúde (física e espiritual) depende do equilíbrio “...da substância e do conteúdo do ser”,também nos fala sobre algumas de tuas experiências com tratamento e “cura”, nas andanças entre os Povos Originários, e com as quais me identifico. Quero saber mais! Troquemos essas experiências!
Não é a toa que tenho verdadeira aversão aos remédios alopatas. Durante muitos anos me cuido através da homeopatia, como me entrego aos cuidados dos meus “cuidadores” doutores da floresta, muito embora já tenha feito e ainda faço o uso desses “maleditos” em casos extremos, como um antibiótico quando recentemente tive uma pneumonia. Maleditos porque curam uma coisa e destrói outra. E na maioria das vezes são os responsáveis pelo desequilíbrio da “substância e do conteúdo do nosso ser.
Com teu olhar amplo em direção ao horizonte mais amplo ainda desse assunto, nos aponta o “modo de vida” ocidental, hoje no ápice do desequilíbrio (em todos os sentidos), e o quanto esse desequilíbrio trás malefícios a todos os habitantes desse planeta.
Aqui dou um viva as nossas “sincronicidências” absurdas!
Assim como tuas experiências no tratamento de tuas enfermidades entre os doutores da floresta nunca tiveram o caráter de pesquisa acadêmica científico, as minhas também não. Desde a primeira vez foram exclusivamente pela necessidade da entrega no contexto em que me encontrava, e que sempre me pareceu muito familiar. Minha ancestralidade explica.
Não estou entre aqueles que apenas “respeitam” a cultura dos que acreditam que “certa formiga na floresta vira pau”. Eu acredito que a formiga vira pau.
Obrigado Jairo Lima por mais essa pérola povoando os meus “pensamentandos”!