Por: Jairo Lima
A vida
da gente é cheia de lembranças, e quanto mais velhos ficamos, mais lembranças
temos. Entre estas lembranças temos aquelas que nos são muito queridas e outras
que são extremamente marcantes. Claro que as lembranças familiares sempre
ocupam o topo destas memórias.
Quanto
as demais temos aquelas que nos deixam marcas profundas e outras que nos levam
às lágrimas. Para mim, entre estas, a mais marcante de todas foi a queda do
muro de Berlin. Queda esta que assisti como testemunha ocular, mesmo morando a
milhares de quilômetros de distancia, facilmente suplantados pela tecnologia
televisiva da época.
Para
quem teve uma infância permeada por filmes e notícias que mostravam em todos os
níveis de bizarrices possíveis os meandros da tal “guerra fria” que ainda
assombrava a existência do planeta, a queda deste muro, simbolizou muita coisa,
pois indicava um novo alvorecer no mundo. Até hoje, quando vejo imagens da
época sinto uma indescritível emoção.
Recentemente
o assunto “muro” voltou aos holofotes mundiais, ocupando espaços em todos os
tipos de mídias, em vista da decisão do alaranjado presidente norte americano,
que decidiu erguer um paredão para “proteger” os interesses nacionais de seu
país. Isso vem gerando muito papo, muita revolta e outros sentimentos diversos
contra esse infame projeto. Interessante que esta iniciativa nada tem de
inédito em nossa contemporaneidade, pois no oriente médio, Israel construiu um
tapume idêntico, onde, sob os holofotes dos dramas humanos, ocorrem as mais
diversas tragédias sociais.
Estes
são os muros concretos que criam outros muros, invisíveis aos olhos, mas
totalmente reais e sensíveis à sociedade. Estes muros invisíveis existem aos
milhares, em todos os países e aglomerados humanos. Temos muros por toda parte.
Aqui no Brasil temos um muro igual, que apesar de não ser tangível, consegue
separar tão bem, ou melhor até, que o muro que o biltre alaranjado pretende
construir. Trata-se do muro que separa os povos indígenas da chamada “sociedade
brasileira”, separando-os e negando-lhes o pleno gozo dos Direitos que, de
direito lhes são garantidos mas que, de fato, são inalcançáveis em grande
parte, localizados “do outro lado do paredão”.
A
questão indígena e seus dramas parece que ocorrem em outro país, irracional e
desumano, capaz das mais atrozes atitudes para garantir o status quo e a manutenção social de uma pequena elite “racial”
ávida de prazeres e riquezas.
Este
muro é tão perfeito em sua essência que até as chamadas “politicas raciais” deixam de fora os povos indígenas,
pois nas campanhas nacionais de combate ao preconceito e ao racismo esquecem-se
do índio. É como se este “não existisse” de fato, ou fosse um estrangeiro que
insiste em invadir nosso país, tirando-nos os direitos e os espaços que nos
pertencem.
As
cenas de autoridades policiais retirando os Guarani de pequenos espaços de
terra ocupadas parecem não tocar o coração desta sociedade, que se revolta ao
ver um animal sendo abandonado pelo dono, ou que vai às lágrimas quando suas
celebridades fazem algum gesto caridoso ou “humano”.
Recentemente
observei uma grande revolta devido a um levantamento sobre alguns bilionários
que detêm mais recursos financeiros que bilhões de humanos juntos. Observei
postagens revoltadas com isso, além de matérias em jornais e blogs, como se
estes mesmos revoltados não contribuíssem para a manutenção da riqueza destes
nababos, comprando e consumindo vorazmente seus produtos. Na mesma semana desta
polêmica que correu o mundo sem nenhum obstáculo, o “muro” evitou que grande
parte da população tupiniquim, entendesse ou tomasse ciência do movimento
ilegal e anticonstitucional que restringiria ainda mais o direito de posse da
terra para os povos indígenas, que ainda lutam por um naco deste chão, ocupado
por plantas transgênicas ou animais cheios de hormônios e destinados à morte.
Este
mesmo muro impede que algumas vozes se levantem em defesa dos povos indígenas
num congresso nacional onde, de maneira geral, luta-se por cargos e poderes
como coisas indispensáveis para a sobrevivência de uns poucos abastados. A
chamada “pauta indígena” não faz parte do vocabulário de nenhum destes
representantes do povo brasileiro, pois esta pauta pouco ou quase nada contribuiria
para a manutenção politica destes representantes que, em grande parte, são
donos ou amigos dos donos de grandes propriedades onde os indígenas lutam por
nacos de terra.
Temos
cotas para mulheres, negros/pardos, portadores de necessidades físicas em concursos
e pleitos diversos, mas para indígenas são raras estas iniciativas que lhes
garantam um espaço específico. Pergunto: porque não temos cotas para candidatos
indígenas? – Creio que não temos, pois o “muro” impede que esta demanda seja
considerada digna de discussão e reconhecimento. Isso sem falar das chamadas
“políticas sociais”
Li e
assisti estupefato sobre as chacinas nos presídios e nas ruas das cidades em
diversas partes do Brasil, e como isso se tornou ponto de pauta em todos os
âmbitos de discussões nas mídias, onde comentaristas dos mais diversos
apontavam falhas e mostravam caminhos para a solução deste imbróglio. No
entanto, assisto há anos o genocídio físico e cultural contra os povos
indígenas brasileiros sem que nenhuma sensibilidade seja afetada “do outro lado
do muro” e torne-se, também, um assunto digno de ser levado às casas de todos,
através dos diversos aparelhos de comunicação e das mídias (que decidem o que é
relevante ser mostrado e repisado várias vezes).
Fala-se
em segurança e politicas de combate ao tráfico e demais violências nas cidades
e seus respectivos espaços, o que pode acarretar perigos e que somente são
devidamente assistidos quando estes perigos rondam os muros de uns poucos que
detêm as rédeas do poder, e que rapidamente dispensam esforços dos mais
variados tipos e com participação dos mais variados níveis sociais e
institucionais para combater estes perigos e “acabar com o problema na raiz”.
Infelizmente, o “muro” impede que esta mesma preocupação se estenda às terras
indígenas, constantemente assaltadas e assoladas por madeireiros, garimpeiros,
grileiros, caçadores, etc. Sendo sua segurança confiada somente a alguns poucos
profissionais de instituições totalmente desprovidas de recursos para garantir
esta segurança.
Eu
poderia escrever muitos parágrafos descrevendo exemplos onde temos sempre um
muro invisível aos olhos da sociedade, mas totalmente tangíveis às comunidades
indígenas que ficam relegadas, em grande parte, à sorte dos humores políticos e
sociais do “povo que mora do outro lado do muro”, ou seja, de nossa sociedade
envolvente (e sufocante) e de nossos representantes.
Acho
muita pequenez a preocupação com os caminhos e humores do bonachão laranja em
sua jornada mequetrefe, enquanto vivemos aqui na Pindorama em constante estado
de negação para com a nossa jornada e com o que ocorre ao nosso redor. Como,
por exemplo, a decisão do mesmo de revogar os acordos climáticos, enquanto no
Brasil nossos políticos querem cada vez mais afrouxar as leis ambientais para
propiciar menos obstáculos para o “desenvolvimento”.
O país
parece estar em convulsão, como se fosse algo que somente agora está ocorrendo.
Não! Nada disso. O que está ocorrendo no momento é algo bem mais simples de
entendimento: o que estamos vendo, somente, é a construção de um novo muro, que
está nos colocando, enquanto sociedade de níveis médio e baixa, “do outro
lado”, afastados por uma barreira que nos silencia e como nos eleva à categoria
exótica de “estrangeiros sociais”. Nisso tem-se a ironia filosófica que dá um
tempero todo especial a este drama social que grande parte da população
brasileira está vivendo: os povos indígenas vivenciam isso desde que tiveram o
primeiro contato.
Temos
que transpor este muro. Melhor, temos que destruí-lo pedra por pedra, assim
como fisicamente e psicologicamente foi destruído o de Berlin. É preciso sair
da pequenez e dessa cultura pobre, onde não se pode reclamar e, devido a isso,
morre-se devagar seguindo uma vida que parece normal, mas que está estritamente
seguindo à risca um manual, onde, como bem diz a letra de uma canção*, 'sua
vontade nada mais é que um comercial e onde suas preocupações nada mais são do
que as mostradas na programação'.
Este
muro impede a muitos de ver a beleza que há não só “do outro lado”, mas também
ao redor. É um muro perigoso e de difícil demolição, pois está totalmente
inserido na mente e na alma do ser, impedindo que apreciar o colorido e a
riqueza pluricultural que rodeia este país tão belo e tão grande.
Enquanto
persistir em manter este muro viveremos num estado de “monocor” existencial,
rodeado de paredes invisíveis que nos prendem aos ódios cordiais do dia-a-dia,
e à passividade social e política.
É
preciso abraçar a simplicidade e a vivacidade da existência material e espiritual,
à moda dos nossos antepassados e das culturas tradicionais – como as indígenas
- que nos alertam constantemente para abrirmos os “olhos da alma” e da mente.
Temos que romper com esta visão liquida da sociedade que, à cada dia, afasta-se
em seus egoísmos e particularidades, perdendo o sentido social de existir, que
é a coletividade.
No
fundo, no âmago do ser todos nós somos “indígenas”, pois, um dia nossos
antepassados vestiram-se de peles, usaram penas e cantaram para os espíritos da
floresta e das águas, ouviram as vozes do céu e sonharam com a aldeia dos
antepassados. Onde e em que momento perdemos esta lembrança?
Passando
um overview em tudo que rolou neste
mês, e no significado mesmo, sou obrigado a concordar que este Ianuarius**, definitivamente nada mais é
que uma extensão de dezembro de 2016. No entanto, olhando pra frente, assim
como o muro berlinense caiu, os demais cairão, assim como seus idealizadores.
Boa
semana a tod@s
*Música
Horário Nobre – Rodox
** Nome
em latim para Janeiro, décimo-primeiro mês do calendário de Numa Pompílio, o
qual era uma homenagem a Jano, deus do começo na mitologia romana, que tinha
duas faces, uma olhando para trás, o passado e outra olhando para a frente, o
futuro.
Todas
as imagens são do artista Fabio de Oliveira Parnaiba, mais conhecido como
Cranio, é um dos nomes mais importantes do grafite brasileiro, especialmente
por trabalhar com elementos típicos da nossa cultura brasileira.
Maravilhoso seu post.
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