Xilogravura de Ulisses Lociks |
Por: Raial Orotu Puri
Nos primeiros dias de 2017
vivenciei uma situação bastante curiosa, e que me conduziu a uma longa reflexão
acerca das contradições da ‘nossa sociedade’, mais
precisamente aquela parcela dos indivíduos que se relacionam dentro do
microcosmos azul do facebook, e que, em boa parte, espelha os conteúdos
relacionais do mundo externo à virtualidade – acreditem, isso existe! Em sendo um mundo em miniatura, me parece
sempre que ele é como um catalizador dessas relações, que se expressam sempre
de forma mais intensa, embora frequentemente sejam também efêmeras. Ódios,
amores, revoltas... tudo tende a ser tão potente quanto passageiro.
E foi neste mundo virtual, o
qual uso há tempos como ferramenta de trabalho, mobilização e, por que não,
entretenimento, que me vi pela primeira vez protagonizando tanto o fenômeno da
viralização de uma postagem minha, quanto o posterior ‘castigo’ de um bloqueio
de 24 horas, porque o conteúdo postado foi denunciado e considerado impróprio.
Pois bem, a referida
postagem tratava-se de uma matéria acerca de atrocidades cometidas contra os
povos originários, especificamente aquelas que foram investigadas e compiladas
no chamado Relatório Figueiredo, um documento de mais de sete mil páginas, e
recentemente recuperado e divulgado, e que apresenta uma parcela dos crimes da
ditadura militar brasileira que tiveram por vítimas diferentes povos
indígenas.
A matéria era ilustrada por
duas imagens, e tudo leva a crer que foi uma delas que subsidiou a denúncia.
Uma delas eu já conhecia, e inclusive já a havia utilizado em apresentações,
textos e aulas. Trata-se da foto de uma desocupação ocorrida em Manaus no ano
de 2008, na qual aparece uma mulher indígena com uma criança no colo, segurando
sozinha o avanço de uma tropa de choque, e prestes a ser golpeada na cabeça por
um cassetete. Essa fotografia para mim sempre ilustrou tanto a força das
mulheres indígenas, quando a desigualdade dos lados dessa luta, que tantas e
tantas vezes ganha os contorno de um massacre.
Mas certamente foi a
fotomontagem do cabeçalho da matéria que derivou na denúncia e no consequente
bloqueio: Trata-se de uma imagem do filme “Holocausto Canibal” (Ruggero
Deodato), uma produção italiana de 1980, bastante controversa e proibida em
vários países pelas cenas de violência extrema nela contidas.
Uma das imagens, por sinal a
capa do filme, foi editada e inserida como foto de chamada da matéria que eu
compartilhei, o que fez com que ela aparecesse sempre nos compartilhamentos –
exceto se as pessoas usassem a opção de esconder a imagem. E foram nada menos
que 237 compartilhamentos! Confesso que a situação me deixou um pouco
incomodada, por ter sido a primeira ‘viralização’ de uma postagem minha. Me fez
pensar sobre esse fluxo intenso e ao mesmo tempo superficial que tange as redes
sociais e que, as vezes, apenas as vezes, presta-se à divulgação da ‘causa
indígena’.
Grafite de Fabio de Oliveira |
Vale comentar, a propósito, que
a película de Ruggero, até os dias de hoje considerado um dos filmes mais
polêmicos e perturbadores de todos os tempos, tinha como objetivo justamente criticar
o sensacionalismo midiático, que se vale que quaisquer artifícios em busca de audiência.
Vale citar que ao inverter a ação e situar que os verdadeiros atacantes no
enredo não são os ‘selvagens canibais’, mas os brancos, esse filme também serve
de uma boa metáfora para certos ‘críticos dos costumes’, quando o alvo de suas
considerações são as práticas tradicionais de alguns povos originários.
Quando me foi ‘alertado’
sobre o fato de que as imagens que ilustravam a referida matéria não eram
reais, mas extraídas de um filme, não pude deixar de lembrar do famigerado pseudo-documentário
Hakani, que tem por propósito, em
síntese, apresentar os povos indígenas como desumanos e selvagens, e capitanear
um movimento difamatório que dá sustentação a (mais) um projeto de lei que
pretende criminalizar indígenas pela suposta prática do infanticídio. Guarda
certa ironia pensar que no caso do ‘documentário’ que mente sem qualquer
escrúpulo acerca da prática do infanticídio não existem tantas reflexões que
ponderam sobre a ficcionalidade das imagens produzidas, mas quando se trata de
apontar a violência praticada de forma ativa ou omissa por parte do Estado
Brasileiro contra os povos originários, por um período de mais de cinco
séculos, então é preciso relativizar e desmerecer uma matéria jornalística pelo
fato de ser ilustrada por uma imagem ficcional.
Sim, este é o tema que me
motivou a produzir um texto referente ao episódio em questão. Se a imagem que
ilustrou a matéria é ‘ficcional’, ela é muito adequada para ilustrar um
editorial acerca do Relatório Figueiredo, que não é nem de longe um documento fictício.
Trata-se de um documento histórico que ficou ‘desaparecido’ por 45 anos, e,
resgatado em 2013, passou a ser divulgado em alguns sítios da internet*. A
investigação levantou casos de tortura, violência e assassinato de comunidades
inteiras em diferentes regiões do país, praticadas principalmente por
latifundiários e seus capangas, bem como por funcionários do extinto Serviço de
Proteção ao Índio (SPI) – impossível não parar para engolir um pouco de fel ao
escrever o nome desta instituição dentro desse contexto.
Pintura a óleo de Simone Hirata |
Vale também comentar que a
investigação trouxe a tona nada mais do que uma ínfima parte dos crimes
cometidos dentro daquele período. Digo isso sem ponderações sobre estar ou não
sendo precisa. E digo isso pelo simples fato de saber que, de todas as vítimas,
e neste mundo existem muitas, os indígenas são os mais invisíveis, aqueles a
respeito dos quais haverá menos comoção, comiseração, compadecimento, empatia,
reação ou revolta. Apenas para ilustrar, no biênio passado, muito se chorou
pelo garotinho sírio afogado, mas bem poucos se comoveram com o caso de Vítor
Kaingang, assassinado nos braços de sua própria mãe em Santa Catarina. De
alguma maneira, parece que o Brasil e conseqüentemente o facebook brasileiro têm mais pendor para se comover com as
tragédias internacionais, de preferência aquelas que se abatem sobre indivíduos
de pele clara, em comparação com o tempo que se dedica às tragédias que ocorrem
aqui mesmo, e que têm por alvo pessoas indígenas ou negras. Não que o pequeno
sírio não merecesse lágrimas e tristeza. Mereceu, sem dúvidas! Mas e Vítor?
Também parece sugerir-nos
que a sociedade tenha mais facilidade de assimilar e se revoltar contra a
barbárie que credita aos próprios indígenas, do que aquela que os têm por
vítimas. É assim que uma farsa da envergadura de Hakani ganha contornos de ‘retrato de realidade’, e uma reportagem
que apresenta uma investigação acurada sobre crimes que realmente aconteceram,
suscita dúvidas e ponderações acerca da sua veracidade.
Importa considerar também,
que quando se fala em crimes cometidos contra os povos originários deste solo,
o buraco é bem mais embaixo: estamos falando de um período de mais de cinco
séculos de violência contínua, e que ao longo do tempo vem assumindo as mais
diferentes formas, e se valendo de métodos diversificados. Curiosamente, como o
texto dessa semana do Jairo Lima muito bem abordou, apesar de toda a extensão
dessas atrocidades, tudo se passa como se tais crimes acontecem em outro país,
velados que são por um muro de incompreensão, preconceitos e
incomunicabilidade.
Pintura a óleo de August Macke |
Vale citar a emblemática
frase proferida por Noel Nutels, em uma entrevista coletiva dada em 11 de
novembro de 1968, tratando dos resultados da investigação do Relatório
Figueiredo: “Nesta hora que estamos conversando aqui alguém deve estar matando
um índio, só que nós só vamos saber muito mais tarde, quando o índio já está
morto. É a cobiça da terra, a cobiça do subsolo e a cobiça das riquezas
naturais". Essa frase, embora tenha sido proferida em uma data específica,
poderia ter sido dita ontem, hoje, e, ao que tudo indica, poderá ser também
dita amanhã e pelo tempo que ainda vem. E, ao contrário do que ela assevera,
muitas vezes, ninguém chegará a saber, exceto aqueles para quem o morto não é
apenas ‘um índio’, mas é alguém, com nome, família e significado. Alguém que é
chorado e lembrado, e cuja dor é acrescida pela constatação atroz de que isso
que nos corta tão fundo na carne, é simplesmente ignorado por tantos.
E é baseado nesse
pressuposto, o da ignorância ou de ignorar, que a minha postagem foi
denunciada. E o facebook, é claro, muito rápido em acatar as denúncias que
ferem a suscetibilidade dos internautas – exceto quando se tratam de situações
de racismo ou preconceito – acatou a denúncia, banindo o conteúdo e me impondo
um bloqueio de 24 horas. Não quero parecer estar aqui tecendo um rosário de
lágrimas acerca do bloqueio em si. Considerando o fato de fazer parte de
coletivos feministas, embora nunca tivesse sido pessoalmente bloqueada, isto
não chega a ser uma situação desconhecida para mim. Sei bem da hipocrisia dos
meios virtuais e, por isso, acredito que o desenrolar da situação fosse
bastante esperada. Mas de outra parte, julgo que é urgente que essa ‘sociedade
brasileira’ não-indígena se dê conta de sua participação conivente nos crimes
que são cometidos na sua própria vizinhança. Pois a omissão intencional, o ato
de recusar-se a ver, a tomar partido é, sem sombra de dúvida, igualmente
criminosa.
Sobre a exposição da
violência da imagem, não tenho uma reflexão fechada. Particularmente, a mim
também desagradam os compartilhamentos de imagens violentas, ou degradantes de
qualquer tipo. Do mesmo modo que não sou afeita ao compartilhamento irrefletido
de mensagens fofas, proselitistas ou motivacionais, simplesmente por sentir
certo incômodo pela sensação de ausência de pensamento crítico que está contida
nesse comportamento repetitivo de propagar mensagens. Parece-me que esta
prática deriva da superficialidade do mundo virtual, onde tudo se dá depressa
demais, onde as emoções têm todo o peso e a profundidade de 140 caracteres. Por
outro lado, não tenho a ingenuidade de não acreditar que esse mundo cibernético
não esteja se refletindo e espelhando a realidade ‘lá fora’, ainda que não se
possa crer que ele é capaz de conter todas as realidades possíveis para o que
chamam ‘mundo real’. Não se pode, no entanto, se deixar de pensar acerca de
quanta violência não imagética é compartilhada dia a dia nesta mesma rede
social, e sobre como a mesma permanece incólume, visto que o crivo de segurança
restringe-se praticamente apenas às imagens.
Mas ocorre que, em meio aos
237 compartilhamentos, muitos dos quais meramente automáticos e baseados no
sensacionalismo, sei que houve aqueles que buscaram saber mais, e que nessa
busca, foram além do momento da superficialidade, e caíram nas páginas do Relatório
Figueiredo. E, mesmo para aqueles que leram apenas a parte introdutória, terão
visto do que se trata, e talvez, com otimismo, essas pessoas possam quebrar a
crosta de sua ignorância pessoal, e, com mais otimismo ainda, somar-se de
alguma maneira à causa indígena, que necessita tanto de apoio e aliados. Ao
longo da minha vida e vivência no movimento indígena, tenho conhecido alguns
casosde pessoas que caem de paraquedas no meio dessa luta, e que, alguns
choques de realidade depois, acabam se tornando bons parceiros. Óbvio que esta
não é a regra em todos os casos, e existem muitos que juram dar seu sangue por
sua causa para mudar de opinião na postagem seguinte, e haverá sempre aqueles
que permanecem no estado vegetativo-deslumbrado eternamente, e que podem falar
horas sobre a beleza das “vivências” que tiveram junto de uma determinada
comunidade indígena, e ao mesmo tempo seguir não ligando a mínima para os 517
anos de genocídio que os povos originários vêm sofrendo no Brasil.
Pintura a óleo de Cardoso de Oliveira |
Finalizo aqui, este texto
que tanto falou de filmes, com a indicação expressa para que todos assistam um:
Recomendo muito que todos os que lerem este texto assistam “O homem que matou
deus” (2013)*, curta produzido por Noé Vitoux e Wao Xintó Oro, e que, de
maneira algo semelhante ao filme de Ruggero de 1980, também provoca uma interessante
inversão de papéis. Porém, desta vez, a inversão é muito mais intensa e radical.
Esta peça ficcional (ou nem tanto) produz uma excelente reflexão acerca daquilo
que é selvageria, violência, e da enorme desigualdade existente entre o
tratamento dado a indígenas e brancos nas
relações que precisam travar entre si, ou com o sistema judiciário brasileiro. Recomendo
a todos que empreguem 18 minutos de sua vida nesta experiência que muito pode
contribuir para o pensamento acerca da realidade indígena, e principalmente da
necessidade que deixemos de ser apenas meros expectadores, ou compartilhadores
de notícias sobre essas dores. Reafirmo que é necessário, cada vez mais
urgente, que se deixe de lado a ideia de que a ignorância é permitida.
*Link para o assistir “O
homem que matou deus”:
**Link para o Relatório
Figueiredo:
http://www.janetecapiberibe.com.br/component/content/article/33-relatorio-figueiredo/20-relat%C3%B3rio-figueiredo.html
é maravilhosa a sensação que seu texto me causa. É a minha voz. Você me voz, ouvidos, colo e a mão com sua escrita. macapon dieh tsate
ResponderExcluirÓtimo texto tsatê!!! Parabéns!!!
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