Estava
um velho pajé sentado sob uma árvore. Tristeava, em uma longa noite como esta
que já dura séculos. Densa era a neblina, escura era a noite. Seus olhos ardiam
como fogo perpétuo, triste e só, chorando calado o fim de seu torrão. E, no
choro, o fogo negro de seus olhos recrudescia como terríveis faíscas sobre o
espaço ocupado. E por estar triste e só, é que soube ler o voo do gavião, que
trazia entre suas garras uma serpente enrodilhada, enquanto cortava o ar,
certeiro, seu canto imponente. Sentado estava e ergueu-se... Saiu da morte
lenta das selvas enlutadas, aprendeu o idioma das chamas, conversou com os
silêncios, decifrou o murmúrio do rio, forjou-se como a uma grande lança,
envolveu seu coração com a pele do puro animal que nele habita, tocou as
entranhas feridas de seu solo sagrado, juntou, do mais duro e mais profundo,
cada pedaço agredido, cada vestígio de alma sobrevivente, os olhares e mãos
maltratados, e já não estava só no andar sem ruídos, na presteza segura de cada
movimento. Era todo um continente! A terra, vermelha e liberta, a rubra chama
que a morte não verá extinta. E a noite escura, que antes era eterna, tornou-se
manhã, riso, primavera... Wakau’wã é o gavião em Guarani. Pássaro encantado,
máscara negra, olhos da mesma cor, pintados para a guerra. Olhar certeiro, voa
alto e tudo vê, guardião dos mistérios do pajé. Quando o pajé fala, todos
escutam – O wakau’wã, pássaro primeiro, canta para o pajé escutar... Em longos
rituais, dias inteiros, chuva e sol, vento e noite, as profecias de wakau’wã.
Agora, permanece calado o canto alegre do pássaro combativo, pousado sobre os
galhos altos, de onde olha os seres e os humanos.
.
...........
Uma serpente rasteja por toda a América. Há muito a enrodilha em seu abraço. E não é a Jiboia, Yube, na língua Hãtxa Kuin “língua verdadeira dos Huni Kuin”, não, ela não esteve nas águas profundas com kenewma e kenewsi, não emplumou seu ser com Quetzalcóalt, nem irmanou estrelas na amplidão pampeana como as rubras chamas de mboitatá.
Esta serpente não é daqui, vem de além, de outras lonjuras. Chegou nestas paragens quando era a terra ainda sem amo, sem América, imensa, rica e vegetal. Desembarcou pequenina, cabia mesmo nos porões dos navios em degredo. Chegou com os presentes, as correntes, os espelhos, a gripe, a varíola, a tifo. Trouxe com ela o desviver. Devorou e cresceu. Quanto mais comia, mais fome tinha: gentes, ouro e prata, não saciaram sua fome continental.
Para enganar as memórias, muitas vezes trocou de pele, foi escama de reis fugidos, foi pátria contra os que nem pátria tinham, ditaduras ditando dores em atos, decretos e leis; reptilínea república, partidos fragmentando pessoas, pisando utopias. Mas o vento não tem esquecimentos, faz redemoinhos, parte sílabas geladas, canta e dança e brinca sobre histórias tantas não contadas, tolhidas, negadas. Sobre o grito contido, inconcluso, emudecido.
Para expandir seu corpo e crescer, há pouco trocou de pele mais uma vez – estava a pele antiga demasiado feia e suja – rastejou sobre cinzas e ossos ancestrais devastando árvores, macerou folhas, flores e raízes, pó de estrelas vivas, juntou seiva e sumo em macabro ritual, até aparecerem visíveis escamas verdes esverdeadas. Camuflada está a chaga infecta que cobre o corpo da serpente verde do capital. Adornada rasteja. Para expandir e crescer aprendeu a dizer, sem dizer verdades. Abriu a boca, reptiliou, despalavrando com sua língua bífida. Violentamente impôs uma linguagem lisa, sem manchas, sem sombras, sem rugas, sem corpo. A língua dos deslinguados, uma língua sem outro, uma língua despovoada.
Mandibularmente, a serpente mente. Friamente, ela mente, e essa mentira sibilante em sua boca chama-se IIRSA. Mas o que é? Que significado tem? Com que princípios e propósitos instalou-se tal absurdo? Que projetos ela traz nos dentes? Com que argumentos sedutores promove suas especulações? Sob que máscaras esconde suas más intenções e destila seu veneno? Quem, hipócrita de pança opulenta, prega submissões democráticas à fome dos ventres opados?
Seu vocabulário escamífero é uma memória mutilada de autoelogios, de vaidades nulas e jactanciosas. Palavra empobrecida, mas rica em eficiência, pois chama-se ordem e não deseja senão a obediência num rito de atenção e silêncio - como um espelho: multiplica as deformações do mundo original, deforma a realidade, recria um mundo invertido e de pernas para o ar. Em seu mundo ao avesso, a injustiça é lei natural, as verdades são mentiras com amnésia, esquecidas de si; o fuzil mais importante que a flor e a flor mais importante que a semente. Sorrateira forja consensos, voraz devoradora de corpos e almas. Encontra longe e perto sibilantes ecos, acenos, sorrisos – pequeninas cobrinhas com aspirações à boiúna.
Mas a serpente fala carregando mortos entre os dentes e chama de Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana o continuado processo de Pilhagem, Exploração e Destruição Cultural dos Povos e Territórios ancestrais.
A estrutura do poder traduz o real em uma linguagem falseadora. Os corpos materiais diluem-se em corpos de signos e desaparecem na nova representação. Chama-se desenvolvimento regional a inserção subordinada ao capitalismo mundial, e sustentabilidade o mundo das planuras esfomeadas. As palavras perdem o sentido, enquanto as florestas perdem suas árvores.
Lá, onde os discursos são iguais e nenhum se parece, devastadores propagam o “desenvolvimento regional sustentável”, oprimidos e espoliados viram povos da floresta, camponeses despojados e anônimos em um mesmo espaço. Devastam-se as florestas com o mesmo discurso que deveria defendê-las.
...........
Uma serpente rasteja por toda a América. Há muito a enrodilha em seu abraço. E não é a Jiboia, Yube, na língua Hãtxa Kuin “língua verdadeira dos Huni Kuin”, não, ela não esteve nas águas profundas com kenewma e kenewsi, não emplumou seu ser com Quetzalcóalt, nem irmanou estrelas na amplidão pampeana como as rubras chamas de mboitatá.
Esta serpente não é daqui, vem de além, de outras lonjuras. Chegou nestas paragens quando era a terra ainda sem amo, sem América, imensa, rica e vegetal. Desembarcou pequenina, cabia mesmo nos porões dos navios em degredo. Chegou com os presentes, as correntes, os espelhos, a gripe, a varíola, a tifo. Trouxe com ela o desviver. Devorou e cresceu. Quanto mais comia, mais fome tinha: gentes, ouro e prata, não saciaram sua fome continental.
Para enganar as memórias, muitas vezes trocou de pele, foi escama de reis fugidos, foi pátria contra os que nem pátria tinham, ditaduras ditando dores em atos, decretos e leis; reptilínea república, partidos fragmentando pessoas, pisando utopias. Mas o vento não tem esquecimentos, faz redemoinhos, parte sílabas geladas, canta e dança e brinca sobre histórias tantas não contadas, tolhidas, negadas. Sobre o grito contido, inconcluso, emudecido.
Para expandir seu corpo e crescer, há pouco trocou de pele mais uma vez – estava a pele antiga demasiado feia e suja – rastejou sobre cinzas e ossos ancestrais devastando árvores, macerou folhas, flores e raízes, pó de estrelas vivas, juntou seiva e sumo em macabro ritual, até aparecerem visíveis escamas verdes esverdeadas. Camuflada está a chaga infecta que cobre o corpo da serpente verde do capital. Adornada rasteja. Para expandir e crescer aprendeu a dizer, sem dizer verdades. Abriu a boca, reptiliou, despalavrando com sua língua bífida. Violentamente impôs uma linguagem lisa, sem manchas, sem sombras, sem rugas, sem corpo. A língua dos deslinguados, uma língua sem outro, uma língua despovoada.
Mandibularmente, a serpente mente. Friamente, ela mente, e essa mentira sibilante em sua boca chama-se IIRSA. Mas o que é? Que significado tem? Com que princípios e propósitos instalou-se tal absurdo? Que projetos ela traz nos dentes? Com que argumentos sedutores promove suas especulações? Sob que máscaras esconde suas más intenções e destila seu veneno? Quem, hipócrita de pança opulenta, prega submissões democráticas à fome dos ventres opados?
Seu vocabulário escamífero é uma memória mutilada de autoelogios, de vaidades nulas e jactanciosas. Palavra empobrecida, mas rica em eficiência, pois chama-se ordem e não deseja senão a obediência num rito de atenção e silêncio - como um espelho: multiplica as deformações do mundo original, deforma a realidade, recria um mundo invertido e de pernas para o ar. Em seu mundo ao avesso, a injustiça é lei natural, as verdades são mentiras com amnésia, esquecidas de si; o fuzil mais importante que a flor e a flor mais importante que a semente. Sorrateira forja consensos, voraz devoradora de corpos e almas. Encontra longe e perto sibilantes ecos, acenos, sorrisos – pequeninas cobrinhas com aspirações à boiúna.
Mas a serpente fala carregando mortos entre os dentes e chama de Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana o continuado processo de Pilhagem, Exploração e Destruição Cultural dos Povos e Territórios ancestrais.
A estrutura do poder traduz o real em uma linguagem falseadora. Os corpos materiais diluem-se em corpos de signos e desaparecem na nova representação. Chama-se desenvolvimento regional a inserção subordinada ao capitalismo mundial, e sustentabilidade o mundo das planuras esfomeadas. As palavras perdem o sentido, enquanto as florestas perdem suas árvores.
Lá, onde os discursos são iguais e nenhum se parece, devastadores propagam o “desenvolvimento regional sustentável”, oprimidos e espoliados viram povos da floresta, camponeses despojados e anônimos em um mesmo espaço. Devastam-se as florestas com o mesmo discurso que deveria defendê-las.
A
serpente do capitalismo mundial estrangula diuturnamente a América Latina,
saqueia seus recursos naturais a preço de sangue. No sangue dos camponeses, dos
garimpeiros, dos operários, dos favelados, dos indígenas, dos seringueiros
desarmados - as Corporações decidem os rumos do Desenvolvimento da sociedade
ocidental.
Cinco
séculos não foram o bastante para alimentar o brilho de suas escamas carenadas.
Seguimos
governados pela ditadura invisível dos grandes senhores da guerra, os xerifes e
os banqueiros. O Poder dos donos do mundo é totalmente independente de qualquer
território, uma economia de arquipélagos que a economia da globalização criou.
As organizações mercenárias do capital invisível mundial convertem-nos em
escravos de uma dívida que elas mesmas contraíram.
Os
organismos financeiros, que governam os que nos governam, são bem conhecidos, e
seu capitalismo verde tem linguagem própria na enciclopédia da opressão (FMI,
OMC, BIRD, BID). O Fundo Monetário chama-se Internacional, assim como o Banco
chama-se Mundial, porém, vivem, cobram e decidem suas políticas de
des-envolvimento, o dia e a hora da chuva, em Washington. Vendem a guerra e a
paz nos mercados do pânico e cobram juros – a guerra é o motor das instituições
e da ordem; a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra.
Capazes de traduzir em dólares a vida e a morte, lavam sua imagem repetindo a
palavra ecologia em letras garrafais, e em seus planos de “desenvolvimento”,
as palavras “respeito às normas ambientais” são o salvo-conduto
para os desterros e massacres que têm sua data e seus heróis de horror. Para as
cidades incendiadas, para as terras devastadas, as pilhagens, os roubos, os
genocídios e as alagações.
O
poder escreve seu discurso, elogia-o como se fosse a única verdade, mas em tudo
quanto diz mente; em sua língua do bem e do mal, tudo nele é falso. A escola do
mundo ao revés, ensina-nos a aceitar a pior das heranças coloniais como se
fosse nossa sorte de destino, impõe-nos a cultura da impotência, faz-nos crer
que não somos capazes de mudar nada, nem de mudarmo-nos, e por uma sorte de
“complacência benevolente”, a Iniciativa para a Integração Regional Sul
Americana (IIRSA) é gerida pelos países do Norte. Será a nossa incapacidade de
conduzir nossos próprios destinos? Um sistema que nos treina para o egoísmo e
nos proíbe a solidariedade ensina-nos um mundo onde a sociedade civil, cada vez
mais servil, valida a retórica de legitimação do mercado, do capital
transnacional, da ciência, da tecnologia, das noções ocidentais de progresso e
de (pós) modernidade.
Nos
primeiros anos da colonização o “irmão europeu” dizimou mais da metade do
continente americano, antes mesmo do primeiro contato. E quando trouxe seu deus
para nos salvar ou destruir o mundo, o nosso mundo, com seu egoísmo e sua
estupidez, o massacre ditou as normas daquilo que seria uma constante nas
relações entre os “civilizados” e os “homens brabos”. Em 1499, Pisón tocou a
foz do rio Amazonas e raptou os primeiros 36 “índios” para vendê-los
como escravos nos mercados europeus, inaugurando o primeiro contato com a
região, o primeiro saque (de que se tem notícia) sobre ela. Muito tempo passou
desde então, e hoje, as flores do republicanismo e da filantropia, ao
construírem as hidrelétricas de Belo Monte, de Santo Antônio e Jirau (isso só
para citar as principais), ditam as normas de etiqueta cobrindo de águas as
terras dos “índios brabos”, que por alí perambulam, cada dia mais e mais
acossados, perseguidos e encurralados - antes mesmo do primeiro contato - e os
ecologistas não têm nada a dizer, contanto que sejam respeitadas as normas
ambientais.
Sob
esta lógica, o imperialismo insiste que a salvaguarda do sistema capitalista
deve continuar sendo possível, descarregando sob a região sul-americana um último
ataque às formidáveis riquezas em águas, selvas, pampas, montanhas, minerais,
madeiras, populações originárias – reduzindo toda diversidade natural a
“recursos naturais” e os seres humanos a “recursos humanos”. Superando e
removendo, a qualquer preço, todo tipo de “obstáculos e barreiras” físicas,
naturais, culturais - que possam interferir no trato da diversidade como único
“espaço econômico” global do capital. Esta é a quarta estratégia de invasão,
conquista e colonização que alberga soerguer o capitalismo em sua fase senil,
uma reedição da acumulação originária, desde a primeira invasão europeia à
América. A serpente verde do capital, em sua lenta digestão, pouco a pouco, mas
também muito a muito, esmaga a dignidade e a vida.
Mas
há uma árvore de torturadas ramagens, onde o pássaro combativo, que é todo um
continente, espreita os seres e os humanos...
Inundaram-me
as palavras...
E
não peço mais nada, a não ser um instante.
Um
instante de silêncio e pólvora. Wakau’wã ergue-se para voar. Seu peito
já prepara novo canto.
Ouçamos!
Ergamo-nos!
Daniel Iberê M'bya Guarani é indígena, sociólogo e professor universitário. Radicado em Rio Branco, desenvolveu e defendeu sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob o título "IIRSA - A Serpente do Capital.
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