Jovem Huni Kui - Foto: Paula Lima |
Por: Jairo Lima
- Pega txai, bebe
aqui esta medicina que eu fiz, é um remédio bom pro estômago! – Disse-me
meu interlocutor entregando-me um frasco escuro. Sinceramente não lembro o nome
dele, pois estávamos em uma reunião com um bocado de gente numa sala. Peguei o
frasco, abri, cheirei tentando reconhecer através do olfato as ervas e demais
ingredientes deste remédio. O aroma me dizia que a base de feitura era
cozimento de huni (ayahuasca), provei
com a ponta da língua o sabor e, sorrindo, devolvi o frasco sem beber seu
conteúdo.
Não tenho uma desconfiança natural, ou seja, não deixo
que meus pré-conceitos (não confundir com preconceito) interfiram nas
possibilidades de ampliar meus conhecimentos, ou cerceiem a possibilidade de
comungar do sagrado com outras pessoas. Acontece que após tantos anos, aprendi
com muitos mestres e com minha experiência pessoal, que a busca por
conhecimentos (ou por mim mesmo), ou a busca pela saúde do meu corpo e mente
não significa necessariamente “topar tudo” ou “experimentar de tudo” logo de
cara. É preciso primeiramente estar necessitando e, em segundo e mais
importante, saber o porquê de estar necessitando.
Acredito que nosso corpo reflete o que se passa em nosso
espírito, de maneira que os desequilíbrios que por vezes nos afetam física e
psicologicamente tem, em parte, sua origem e/ou cura nas “panemas” que nos
desequilibram e desarmonizam nosso yuxin,
nos afastando da relação com a natureza que nos gerou.
Os produtos e medicinas tradicionais dos povos indígenas
do Acre estão cada vez mais ganhando espaço no chamado “mercado do sagrado”,
sendo vendidos nos mais diversos sites, tanto no Brasil quanto no exterior, com
preços, muitas das vezes, exorbitantes. Os produtos mais buscados, sem dúvida
são o rapé, a sananga e o kambô. Este comércio tem feito o pé de meia de muita
gente, infelizmente, poucos destes, são das comunidades de onde se originam os
produtos.
Aldeia Mutum - Foto: Tashka Yawanawá |
A profusão de atravessadores nawa que, como costumam alardear, “tem contato com as comunidades
indígenas” vem crescendo a tal ponto que eu até desconfio se as medicinas e
demais produtos oferecidos por estes são realmente oriundos das comunidades
indígenas acreanas. Certamente muitos não o são.
Particularmente eu tenho ressalvas àqueles que anunciam
produtos que necessitam ser aplicados, em forma de tratamento, como é o caso do
rapé, da sananga e do kambô. Vejo crescer bastante os centros (de iluminação,
de cura, etc etc etc) onde é possível ter acesso a uma miríade de produtos e
tratamentos de comunidades de várias partes da América. Acho isso muito doido,
principalmente quando vejo o perfil dos assim chamados “curadores” destes centros.
É difícil não estabelecer um estereótipo para estas figuras que mesclam uma
panaceia de coisas para melhor agradar e atrair clientes. Para mim, muitos não
passam de charlatões.
Em muitos casos, esses “gurus” organizam retiros e
rituais de limpeza que misturam as oblações dos indígenas andinos com o rapé
dos índios acreanos, embalados pelas canções de ayahuasca dos índios peruanos
tocadas em tambores ritualísticos dos índios norte-americanos. Traçam o mapa
astrológico maia dos participantes enquanto comungam da ayahuasca ouvindo
mantras. Ou seja, de tudo um pouco, que somados, não chegam a lugar nenhum. É
como se estivéssemos caminhando por várias estradas, sendo que cada uma leva a
uma jornada de ensinamentos e vivências, e passássemos de uma a outra após poucos
passos, sem nem chegar a ser uma caminhada. Dessa maneira nunca se chega ao
objetivo ou se experimenta a vivência necessária. Vejam bem, não se pode
confundir “estar em êxtase” após ser submetido a rituais com uso de práticas
extra-sensoriais, com estar “em harmonia” espiritual. São coisas diferentes,
acredite.
Hoje em dia é muito comum adquirirmos produtos via
internet. Produtos estes que nos interessam pelo “que são” e bem menos de “onde
são”. Por exemplo, vi num site a venda de um rapé Yawanawá com huni que, segundo a postagem do
vendedor, traria “boas energias e cura para uma série de males do espírito”.
Legal, o problema é que o referido rapé anunciado não era Yawanawá, além de
que, não especifica que males são estes – estratégia básica para venda de
malogros em força de poções milagrosas. Assim como este produto vi uma série de
outros, como acessórios e produtos que, como pude constatar, somente utilizam o
nome dos povos indígenas que vivem no Acre, mas que em nada possui ligação com
estes. Claro que o comprador não vai pesquisar ou tentar conferir se realmente
o produto é o que diz, ele quer usá-lo e pronto, confiando no que o site expõe.
Ashaninka - Foto: Shãtsy Pinhanta |
Um exemplo de um destes produtos falsos que vi foi um curipe katukina vendido a US$ 25,00 num destes
sites da gringolândia. Segundo o site, este curipe era feito utilizando-se
certas características e matérias-prima. Interessante é que, como bem sei,
depois de mais de quinze anos de contato com os Katukina, este povo não faz
seus curipes (aplicador individual de rapé) conforme descrito no site. Iguais a
estes exemplos tem outros vários.
O que quero mostrar com estas situações é justamente o
uso indiscriminado e criminoso da cultura material e imaterial dos povos
indígenas. E vejo que, em relação aos povos do Acre, parece que estas práticas
chegaram a um nível alarmante. Muitos dos assim chamados “parceiros” ou
“amigos” que vão às comunidades, somente estão em busca de uma nova fonte de
renda ou querem agregar às suas práticas espirituais (sem fundamento)
conhecimentos que possam ser usados em seus centros ou “tratamentos holísticos”
(outro termo para a bichogrilisse do mal, reinante ultimamente). É
impressionante a quantidade de gente negociando produtos indígenas ou que agem
em nome destes.
Uma coisa que vem incomodando bastante as comunidades
indígenas no Acre, que em diversos momentos exteriorizam este incômodo em
nossas reuniões, é quanto a membros destas que são assediados por “pessoas de
fora”, que os iludem e passam a usá-los para acessar os conhecimentos
tradicionais do povo. A quantidade de livros, gravações de áudio e vídeos
feitos no Acre por “parceiros” que não se dão ao trabalho de formalizar estas
parcerias - tanto com a comunidade como um todo quanto às instituições de
controle e afins aos mesmos – é impressionante. Como justificativa disso, estes
parceiros dizem que “falaram com a liderança tal, da aldeia tal”, sem se
importar que esta aldeia faz parte de uma Terra Indígena, onde o conhecimento
ou a decisão cabe a todos, não só a um indivíduo. Desconsideram totalmente o que
é expresso na OIT 169 quanto ao direito de consulta. Pois é, este direito não é
só para presepadas como o Belo Monte não, serve também para outros tipos de coisas
como estas ditas produções culturais.
Uma coisa é certa: os benefícios advindos destas produções,
em grande parte, não retornam para as comunidades, mas com certeza trazem um
belo status e abre muitas portas para seus idealizadores. Para se ter uma ideia
do nível de exploração que vem ocorrendo, cito um processo que estou
acompanhando, onde um certo “parceiro” chegou ao cúmulo de se identificar como
autor de uma obra de autoria de um conhecido artista indígena do juruá, promovendo-se
sob a falsa justificativa de que está “promovendo” o movimento e o referido artista
indígena.
Yawanawá - Foto: Sérgio Vale |
Tenho participado de espaços de discussão com grupos de
lideranças e movimentos indígenas de base, que estão buscando ferramentas de
controle para por ordem nessa desordem reinante, onde só os que não se dão bem
são elas mesmas. Estão cansadas de serem exploradas e rapinadas por pessoas que
não buscam contribuir com a união e o desenvolvimento da comunidade como um
todo, beneficiando somente uns poucos que aceitam abrir as portas sem muito
cuidado, iludidos por “contas e espelhos” da atualidade, que lhes são
oferecidos.
As comunidades precisam de parcerias, claro. Onde possam
negociar seus produtos, fazer seus intercâmbios de divulgação da cultura,
receber visitantes para seus festivais ou vivências, etc. Isso é inegável.
A carapuça não vale para todos. Cabe salientar que
existem muitos projetos e parceiros sérios, que vem apoiando e fomentando
atividades interessantes e importantes para as comunidades indígenas, através
de suas lideranças, pajés, curadores e divulgadores da cultura. São parcerias
claras, devidamente estabelecidas e em consenso com as comunidades com um todo,
bem como com as instituições responsáveis pela salvaguarda destes povos. Esse
proceder valoriza a comunidade como um todo, reconhece e reforça seus direitos.
Tem que se desconstruir a falsa noção de que as instituições “atrapalham” os
projetos, isso é mito.
É preciso que cada vez mais haja uma normatização destas
parcerias, de maneira que traga benefícios mútuos, que vão além do financeiro,
contribuindo com o fortalecimento das comunidades e das causas indígenas. É
preciso afastar estes parasitas que se travestem de parceiros, consultores e
“amigos” e que, no final das contas só buscam se darem bem às custas das
comunidades ou dos indígenas, promovendo seus próprios interesses.
Festa Kuntanawa - Foto: Haru Kuntanawa |
É preciso entender que uma das principais características
das comunidades indígenas é o senso de coletividade. Assim, qualquer projeto,
parceria ou apoio que não leve em conta esta característica e que beneficie ou
agregue somente um pequeno grupo estará contribuindo negativamente com a união
e o desenvolvimento da comunidade. Sempre bato nesta tecla, quando em reunião
com as lideranças indígenas, deixando claro que parceria é como um amigo ou
parente, sempre deve entrar pela porta da frente e nunca, jamais, pela porta
dos fundos, onde não é percebido e não é obrigado a “seguir as regras”.
Boa semana a tod@s!
Bom dia! excelente abordagem, é o cenário atual mesmo. Tive algumas experiências recentemente e a conclusão que cheguei e compartilho aqui é da necessidade que os Povos Indígenas do Acre tem em uma educação mais firme quanto aos seus direitos e defesa, não para igualar ao branco, mas pra se defender. Isso faz recordar a questão da CONFERENCIA AYA e outras.
ResponderExcluirÓtima reflexão, Jairo. É uma temática complexa, infelizmente a atuação desses aproveitadores prejudicam imensamente os povos indígenas em vários aspectos. A comercialização indiscriminada desses produtos não beneficia os verdadeiros detentores dos saberes tradicionais e é um desafio muito grande para as políticas públicas efetivarem práticas de valorização cultural em um ambiente em que cada vez mais há a monetarização dos conhecimentos tradicionais por meio da dissociação de elementos sagrados para os povos indígenas.
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