Por: Francisco Apurinã
A dedicação do xamã para se tornar de fato um kusanaty com poderes ilimitados, tanto para praticar o bem quanto o mal, faz dele a pessoa mais importante e mística das aldeias apurinã.
Existem dois tipos de kusanaty: um trabalha somente com a “medicina tradicional”, cuja ervas medicinais encontradas na floresta são utilizadas para banhos, chás e rezas durante rituais de cura; o outro, do qual falarei aqui, opera com poderes xamânicos materializados em pedras introduzidas em seu corpo. São estes os verdadeiros diplomatas do cosmos, aqueles que detêm os conhecimentos tanto para curar, como para causar doenças e até mesmo para matar. São eles que possuem códigos para se comunicar com o mundo dos espíritos da floresta, habitantes de outras terras, e ainda são responsáveis por acontecimentos inusitados que transcendem aquilo que nossos olhos leigos podem ver. Isso ocorre de modo que somente outros pajés com saberes análogos conseguem compreender, como bem ressaltou Katãwyry Apurinã:
O kusanaty é sem dúvida a pessoa mais importante para o bem estar coletivo, pois é detentor de conhecimentos fundamentais que permitem que cure os doentes, adivinhe coisas que ainda não aconteceram e exerça proteção sobre as pessoas de sua e de outras aldeias contra os ataques de outros kusanaty. Isto ocorre tanto no plano material como no imaterial, ou seja, os kusanaty atuam tanto acordados como em sonhos, em forma de gente ou de animal e ainda protegem seu grupo contra as investidas dos “bichos” da mata. O universo místico que envolve os kunasaty é amplo e pessoal. Contam os kywmanety (os anciãos, sábios “troncos velhos”) que os pajés são detentores de poderes capazes de cegar, mutilar ou até matar pessoas apenas com seu olhar.
Meu bisavô Maruky, sentava no terreiro da aldeia à noite e chamava seus netos para mostrar e falar da importância das estrelas para o mundo e também para os Apurinã, ele pedia que nós focássemos nosso olhar numa estrela que estava mais distante das outras no céu, ali todos seguiam suas orientações observando bem a estrela indicada, e por meio do katukano, meu bisavô puxava a estrela e botava em sua mão, o brilho dela era tão ofuscante que não conseguíamos olhar fixamente para ela. Minutos depois, ele soprava devolvendo-a para o seu lugar novamente.
De um tempo para cá, a forte pressão colonizadora atrelada aos inúmeros impactos sociais, ambientais e culturais tem causado sérias mudanças no modo de vida do povo Apurinã, implicando inclusive no enfraquecimento das práticas xamânicas. Essa realidade é constantemente abordada nas aldeias e mostrada em documentos, sobretudo acadêmicos que, dentre outras afirmações, relatam a inexistência ou o desaparecimento dos kusanaty.
É comum ouvir nas comunidades apurinã que já não há “fortes” kusanaty, como afirmam os mais idosos ter havido no passado, por se tratar de um processo de iniciação muito duro, longo e de muitas restrições. Diante de tais limitações, poucos querem ser pajés e muitos dos que curam atualmente não passaram pelo processo completo de iniciação. Veremos que a questão é mais complexa do que esta conclusão deixa transparecer. Para melhor compreendermos essa problemática, é necessário ampliar o conhecimento sobre os Apurinã em vários de seus aspectos socioculturais.
Origem: saída da Terra Sagrada
O povo Apurinã, que também se reconhece como Pupỹkare, fala uma língua do tronco linguístico Aruak. A língua mais próxima seria a do povo Manchineri, o qual habita terras brasileiras às margens do rio Iaco (município de Assis Brasil-AC). Entretanto, alguns Apurinã afirmam que também entendem um pouco da língua do povo Kaxarari, devido à sua saída conjunta da “terra sagrada”, segundo versa a cosmogonia Apurinã.
Quanto à organização social, um dos primeiros assuntos que os Apurinã explicam sobre seu povo é que há uma divisão de metades exogâmicas com funções sociais e políticas, que se definem, sobretudo, pelo direito de consumo ou restrição de certos tipos de alimentos, pelo direito ao casamento e ao comando da nação. Essas metades denominam-se Meetymanete e Xiwapurynyry. A primeira é tradicionalmente representada pela figura de Kiãty (cobra jiboia) e a segunda por Wainhãmary (cobra sucuriju). São também conhecidas como os guerreiros e os pacificadores, respectivamente. Pertence-se sempre à metade do pai.
Quanto à organização social, um dos primeiros assuntos que os Apurinã explicam sobre seu povo é que há uma divisão de metades exogâmicas com funções sociais e políticas, que se definem, sobretudo, pelo direito de consumo ou restrição de certos tipos de alimentos, pelo direito ao casamento e ao comando da nação. Essas metades denominam-se Meetymanete e Xiwapurynyry. A primeira é tradicionalmente representada pela figura de Kiãty (cobra jiboia) e a segunda por Wainhãmary (cobra sucuriju). São também conhecidas como os guerreiros e os pacificadores, respectivamente. Pertence-se sempre à metade do pai.
Os Apurinã ocupavam tradicionalmente as margens do médio Rio Purus e seus afluentes, desde o Sepatini até o Hyacu (Iaco), além dos rios Aquiri (Acre) e Ituxi. Segundo as narrativas históricas, seu lugar de origem está situado no rio Ituxi, na divisão dos estados do Amazonas e Rondônia. Num dos mitos de origem, lá existe o Kairiko, a “casa de pedra” de onde os Apurinã surgiram. As constantes migrações dos Apurinã, assim como suas locações em outros lugares, ocorreram, principalmente, devido às brigas e desentendimentos dentro do próprio povo, além de casamentos ou de conflitos entre kusanaty.
Com relação ao lugar de origem dos Apurinã, vale a pena conhecer o que narrou Zé Cesar Kaxarari durante uma atividade de fiscalização em sua terra indígena, executada pela Coordenação Regional Alto Purus (FUNAI/RBR), a qual eu coordenei:
Perto do rio Ituxi tem um lugar chamado muxalauê que é tido por nós Kaxarari, especialmente pelos mais velhos, como sendo um local sagrado e de fundamental relevância ancestral, onde se constituiu a primeira aldeia do nosso povo. Ali tudo é diferente e sagrado, e nada pode ser destruído ou alterado, porque, afinal de contas, foi criado desde a época de Tsura. Quem conhece, sabe disso e também confirma ter presenciado acontecimentos muito difíceis de ser explicados. Foi lá o primeiro encontro dos Kaxarari com os Apurinã e também a briga entre Ykapatã (Satanás) e Tsura (Deus). A casa fica localizada a mais ou menos oito horas distante daqui da aldeia Pedreira, ela continua do mesmo jeito até hoje. Depois que Tsura criou o primeiro mundo e deu nome a todas as coisas que existem sobre a terra, ele passou a morar na “casa de pedra”.
Naquela época já havia rivalidade entre Tsura e Ykapatã, esse último era muito duro de morrer. Nos dias que antecederam o grande conflito, ele mandava recado para Tsura dizendo que iria matá-lo quando o encontrasse. Num determinado dia, quando Ykpatã e seus seguidores foram atacar a “casa de pedra” para matar Tsura, a inambu preta, capanga [amiga] do criador, percebendo o plano do inimigo, tratou logo de avisá-lo, e em seguida disparou inúmeras flechas na direção de Ykapatã, mas não o acertava. Naquele instante, o socó [ave geralmente encontrada nas margens de rios e igarapés] se transformou em ser humano e passou a lutar a favor de Tsura, mas ninguém conseguia atingir Ykapatã, ele era muito rápido e poderoso, facilmente se desviava das flechas. Quando, finalmente, Ykapatã avistou Tsura, imediatamente usou a borduna que carregava na mão direita para acertar em cheio seu inimigo, achando, inclusive, que o havia matado. Mas Tsura revidou, utilizando seus poderes sobrenaturais, causando naquele momento uma forte tempestade, jogando Ykapatã e seus amigos contra inúmeras árvores de pupunha e tucumã (palmeiras que possuem enormes espinhos em suas hastes e folhas).
Em seguida, Tsura pegou a gordura de Ykapatã, fritou e comeu para ter a certeza que tinha acabado com seu inimigo, mas ainda assim, ele tentou matar Tsura por meio de uma forte dor de barriga (diarreia). Sabendo que ele estava lhe causando aquelas dores, Tsura logo cuidou de defecar, expelindo toda a coisa ruim que estava dentro dele, transformando a bosta (fezes) em diamante e, finalmente, acabou de vez com Ykapatã (José Cesar, TI Kaxarari, 2013).
Uma história importante que retrata o começo do universo, contada pelos mais velhos para explicar melhor a existência hoje do povo Apurinã, é a da “terra sagrada” e dos Otsãmanery (Jaburu). No mundo passado que acabou em água, os Apurinã eram imortais e moravam em uma terra onde nada adoecia, estragava ou morria. Vinham com os Otsãmanery, migrando dessa terra para outra também de imortalidade e no caminho que percorriam tinham a companhia dos outros povos que seguiam à sua frente, guiados por uma ave denominada puturucu (chefe do uru), que ia abrindo o caminho.
Durante o percurso, os Apurinã, seguindo o exemplo do povo Kaxarari, se encantaram em demasia com as coisas da terra em que vivemos hoje, e sempre que encontravam um pé de fruta, paravam para coletar e comer. Com isso, ficaram para trás, se separando dos outros povos, resultando em sua permanência aqui. Essa dispersão se reflete no fato de que o povo Apurinã, atualmente, está espalhado em diferentes aldeias e cidades.
Esses relatos indicam que atrás de outros povos viriam os Kaxarari, Apurinã e Otsãmanery, de modo que estes últimos exerciam nessa jornada o papel de pajés, responsáveis pela condução dos demais durante o trajeto. Eles vinham tentando incentivar os Kaxarari – que teriam se encantado primeiro com as coisas desta terra – e, em seguida, os Apurinã, a continuar caminhando rumo à terra que Tsura destinara a todos. Os Otsãmanery conscientemente teriam seguido viagem após muita insistência, sem sucesso, em levar consigo esses dois povos juntos.
Tsura, o criador
Tsura, a quem nós, Apurinã, nos referimos em português como nosso Deus (por analogia ao Deus cristão), pode ser descrito como um deus ou herói criador, um demiurgo, que foi o responsável pela criação do mundo e de tudo que nele existe, incluindo os indígenas e não indígenas. A longa história de Tsura, narrada em mais de uma versão por nós, que nos descreve o começo do mundo, o início de tudo, sempre traz como ponto inicial a destruição do primeiro mundo para, posteriormente, falar de uma nova terra.
A história contada pelos kiwmanety (“troncos velhos”) fala de um primeiro mundo habitado apenas por três irmãs: Kataty, Mũnhate e Yakunero, que saíram sem rumo, após terem recebido uma ordem vinda de cima para deixar aquele lugar, visto que choveria bastante até cobrir toda a terra de água. Sem paradeiro e sem saber como fazer para escapar, iniciaram uma caminhada sem direção. Para sorte delas, se depararam com a musa (coruja), que lhes fez importantes recomendações: “para não morrerem, vocês deverão retirar duas palhas de kỹnhary (buriti) e outra de tsaperyky (açaí), em seguida devem subir no pé de jenipapo e sempre que a água se aproximar de vocês, batam com a palha da primeira árvore, que o pé do jenipapo vai crescer e a água não vai alcançá-las. Mas, quando a chuva cessar, vocês devem bater no jenipapeiro com a palha da segunda árvore para que ele diminua até chegar ao seu tamanho normal, assim poderão descer sem problemas”.
As três irmãs seguiram corretamente as instruções da coruja. Depois de pouco mais de um mês chovendo sem parar, o Atukaty (sol), finalmente, apareceu e elas puderam pisar novamente na terra, mas, desta vez, numa “nova terra”, denominada posteriormente por Tsura como “segundo mundo”. Logo que as irmãs começaram a caminhar novamente, a coruja apareceu e disse o seguinte: “vão por esse caminho, depois de algumas horas de caminhada encontrarão uma velha que vai fazer de tudo para que vocês casem com os filhos dela, mas não aceitem de maneira alguma, e fujam o mais breve possível, pois se aceitarem, eles as matarão”.
Tudo ocorreu da maneira como a coruja previa e, finalmente, as irmãs conseguiram fugir da casa da velha. Quando voltaram a caminhar, encontraram uma bifurcação e, sem saber que caminho seguir, elas resolveram parar e em comum acordo decidirem por onde ir. Naquele instante, e de maneira inusitada, a superlativa coruja apareceu mais uma vez para ajudá-las, dizendo: “sigam o caminho da direita, este vai vos levar até a terra sagrada, local em que o céu e a terra se encostam e se afastam; fecha e abre em poucos segundos”.
No entanto, para chegar até lá, deveriam seguir as seguintes orientações: “depois de algumas horas de caminhada, vocês vão encontrar um mãnẽ (lago) e perto da margem estará um perutsa (libélula). Ele estará lavando a bunda na água: vocês não devem passar pela frente do referido inseto, e sim por trás dele”.
As irmãs Kataty e Mũnhaty seguiram as orientações, mas Yakunero desobedeceu, e naquele momento, foi engravidada. Entretanto, sem saber o que havia acontecido, continuou andando e, quando finalmente chegaram ao “fim do mundo”, local em que o céu e a terra se encontram, as duas primeiras irmãs, num movimento “rápido”, conseguiram passar sem nenhum problema para o outro lado (terra sagrada), ao contrário de Yakunero que, ao tentar a proeza, foi morta e cortada ao meio pelo encontro do céu e da terra. Da cintura para cima, seu corpo se transformou em kãmery (arara vermelha), e a parte de baixo continuou sendo kãkyty (gente/ser humano), ou seja, continuou sendo ela mesma. Para esclarecer, ela não conseguiu passar para o outro lado em razão de sua gravidez, consequência de sua desobediência, pois por ali só passavam pessoas sem “pecados”.
Resignada com a situação, Yakunero refez o percurso de volta e novamente foi encontrada pela velha que, sabendo do que havia acontecido, tratou de escondê-la de seus filhos, os hãkyty (onças), mas não demorou muito para que eles a descobrissem e a matassem. Depois do feito, as onças jogaram tudo que havia dentro da barriga dela no pé de algodoeiro. Minutos depois, algo inusitado sucedeu, e as vísceras de Yakunero foram se transformando em criaturas: a placenta virou Eruta, o sangue, Yerẽka, e o cordão umbilical, Yxirõky, e, por último, surgiu Tsura, o menor e o mais feio – seu corpo era todo tomado por feridas.
Para entender melhor a criação e a nomeação de tudo que atualmente há na terra, vale ressaltar que, já no final de sua trajetória, enquanto fazia uma cobra (um brinquedo) de palha de kỹnhary (buriti), Tsura foi engolido por este brinquedo, que se transformou numa grande kotory (cobra coral). Naquela ocasião, seus irmãos reuniram todos os animais para tentar furar a barriga da cobra, façanha conseguida somente por uma pequena ave que chamamos de paratxary (martim-pescador). Depois de adultos, Tsura e seus irmãos souberam o que tinha ocorrido com sua mãe. Insatisfeitos, fizeram armadilhas para vingar sua morte, e assim mataram o grupo inteiro de onças.
Portanto, a origem de tudo que existe hoje se deu a partir da saída da barriga da cobra. Tsura, com todos os seus predicados, criou os indígenas e não indígenas com seus diferentes aspectos e características. Fez com eles vários testes, nos quais nós, Apurinã, sempre apresentávamos resultados inferiores frente aos demais povos indígenas e aos não indígenas. Em seguida, ele foi embora para o “céu” por meio de um cipó semelhante a uma escada, que conhecemos como ãpytsa. O mau resultado nos testes repercute negativamente até os dias atuais, mas isto não será tratado aqui.
Os conflitos e as vinganças, que se refletem até os dias atuais entre aldeias Apurinã, se originaram no começo do mundo.
Continua…
* Este texto é excerto editado, com autorização do autor, do artigo: O MUNDO XAMÂNICO DOS APURINÃ: UM DESAFIO DE INTERPRETAÇÕES, publicado originalmente na “Série Antropológica do Departamento de Antropologia da UNB”, em 2017.
** Todas as imagens são do artista indígena Jaider Esbell Macuxi, vencedor do Prêmio PIPA On Line, categoria do Prêmio PIPA, e foram autorizadas pelo mesmo em sua utilização neste blog.
Francisco Apurinã é doutorando em antropologia pela Universidade de Brasília (UNB). Possui uma trajetória de trabalhos junto aos povos indígenas no Acre e Noroeste do Amazonas, tendo atuado tanto pelo Governo do Acre quanto pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Atualmente encontra-se atuando profissionalmente em Santa Inês - MA, trabalhando no subprograma Fortalecimento Cultural, no âmbito do Plano Básico Ambiental (PBACI) dos povos Guajajara, Awá Guajá e Kapó.
Super parabéns!
ResponderExcluirMaravilhoso !!! E que lindo ficou a arte de Jaider Esbell inserida nesse texto..sou uma amiga e admiradora do artista que é fantástico! Parabéns Crônicas Indigenistas !
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