quarta-feira, 15 de março de 2017

VENI, VIDI, VICI: sobre estratégias de resistência indígena em meio à sociedade branca cristã Ocidental

Autora: Alice Haibara
Por: Raial Orotu Puri

“Você acha que ele está integrado à sociedade?”

A pergunta foi feita a uma liderança indígena por parte de um Defensor Público, em uma audiência que visava decidir o destino de um jovem indígena envolvido em uma situação de ilícito penal a qual eu assisti alguns dias atrás. De início, a questão não foi plenamente compreendida, razão pela qual o defensor acabou reformulando de uma maneira mais detalhada, para, através disso conseguir que o seu interlocutor respondesse se por acaso aquele rapaz possuía ou não um nível de compreensão necessária do mundo nawa (não-índio) para entender que havia praticado um crime. Apesar de a resposta ter sido dada, ao final desse trecho do diálogo, a equipe empenhada no julgamento acabou por ponderar que uma conclusão precisa para esta dúvida requereria um parecer antropológico.

Não quero aqui adentrar em um debate – até bastante interessante, mas que não me interessa agora – sobre o fato de realmente existir já um entendimento jurídico bastante bem delineado acerca da necessidade do ‘saber antropológico’ no julgamento de querelas judiciais envolvendo indígenas. (E, é claro, o próprio poder atribuído ao antropólogo para definir tais questões é algo que, há tempos, vem sendo alvo de considerações, inclusive por parte dos povos originários, devido às implicações e potenciais problemas daí derivados.) Talvez em algum momento escreva sobre isso... Talvez. Hoje não!


Meu propósito aqui é falar sobre o que aquela pergunta me fez pensar sobre eu mesma, e sobre o contexto de outros parentes que conheço, que, por diferentes razões se veem na necessidade de se aproximar da sociedade não-indígena, e sobre os significados dessa palavra tão complicada, a tal “integração”.
Fonte: Holly Sierra

A ideia da integração é um paradoxo muito curioso. Ocorre que, desde que os invasores aportaram nestas terras, e, no seu típico arroubo de pretensão e soberba convencionaram que eles eram a força civilizatória que chegava para trazer a luz àqueles povos primitivos que até então viviam na escuridão e ignorância. E, por mais arcaica que essa visão possa ser – e é mesmo! – perante os ouvidos de qualquer pessoa minimamente sensata, a verdade é que ela permanece presente no imaginário de um sem número de pessoas, que de fato parecer ter a sincera convicção de que a cultura indígena é uma coisa tão frágil quanto uma casca que ovo, que se quebra à menor pressão, e que, fora da casca protetora, o indígena há de se diluir na massa informe do mundo não indígena, tornando-se apenas mais um, sem identidade, sem individualidade, ou qualquer coisa que o diferencie do todo. Aliás, já que há pouco falei da Antropologia, vale ressaltar que, durante um tempo considerável, essa ciência também se prestou a propagar concepções evolucionistas que pretendiam a ideia de que as culturas originárias estavam fadadas ao desaparecimento. Felizmente, nenhum cientista social que pretenda ser levado a sério na contemporaneidade tem coragem de manifestar tais ideias. Porém, é inegável que mesmo sem qualquer respaldo, esses postulados funestos ainda se mantêm vivos, e volta e meia seus ecos emergem em notícias, declarações, comentários e ‘opiniões’.

E é assim que, apenas para citar um dos exemplos mais prementes do quanto uma ideia ruim pode perdurar, temos na história não tão passada assim, a criação e persistência, por décadas a fio, de um órgão indigenista que foi criado com o singelo nome de “Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais”. O nome em si perdurou apenas entre 1910 e 1918, logo passando a se chamar apenas Serviço de Proteção ao Índio, mas a ideia em si de que o indígena era nada mais do que um estado transitório entre o primitivo e o civilizado permaneceria em voga décadas afora, e mesmo hoje a vemos sendo professada a cada vez que em que vemos alguém ter a pachorra de questionar a identidade de outrem por qualquer bagatela como usar um celular. Aliás, chega a ser até cômico ver alguém formular o pensamento de que, tendo sobrevivido a cinco séculos de massacre violento a identidade indígena vá evaporar-se em pó ao mero contato com um bem tecnológico, não acham?

Por uma feliz coincidência, acabei de ver a campanha 2017 elaborada pelo ISA visando o combate ao preconceito contra os povos originários, e que justamente se norteia pela ideia de que não apenas a sociedade indígena mudou muito de 1500 para cá, também a sociedade branca ocidental mudou drasticamente. E, se o branco não deixou de ser branco mesmo tendo mudado tanto, também não existe qualquer sentido em defender-se uma ideia de indígenas deixaram de ser indígenas porque usam celulares, andam vestidos, ou não possuem mais os mesmos traços fenotípicos de outrora.
Fonte: site Pinterest

O Brasil é o país ao qual mais de trezentos diferentes povos ameríndios – os que resistiram – estão vinculados, em face do espaço geográfico que ocupam, e, desde um ponto de vista jurídico, como já disse em um texto anterior, isso em tese faz de todos esses povos cidadãos brasileiros de pleno direito, o que não quer dizer, no entanto, que na prática as coisas aconteçam de maneira tão simples. E não acontece, exatamente por conta da inviabilidade da possibilidade de uma integração, ao menos não sem abrir mão do que se é, em prol de um não-lugar e de um não-ser. Pois, a única opção para um indígena dentro da dita sociedade nacional é o lugar do deixar de ser quem se é primeiro. E, vale ressaltar, mesmo quando isso ocorre, quando uma renúncia acaba por acontecer, uma análise mais profunda revelará que não existe um lugar receptivo à espera desse indígena dentro da sociedade branca: para uma pretensa ideia de fazer parte do mundo raion, exige-se do indígena que abra mão de si mesmo, mas, ao fazer isso, a verdade é que ele não há de tornar-se um igual aos demais.

Mas até que ponto essa diluição é um caminho realizável e, principalmente, desejável? É inegável que, e falando aqui de uma forma bastante generalista, dentro das concepções de mundo ameríndias existe, de fato, uma notável possibilidade de transformação. No mundo indígena, as fronteiras são realmente mais fluídas, e é realmente possível a um humano deixar de o ser, transmutando-se em diversas coisas, animais, minerais, plantas, objetos, espíritos, dentre outros, sendo que a mais equidistante do grau de humanidade, e por isso, a mais perigosa, vem a ser, justamente, a metamorfose em branco.

Nesse diapasão, virar branco é, portanto, o maior perigo, justo pela distância, e pelas dificuldades de retorno. O problema, a meu ver, reside no fato de que essa transformação em branco não chega a ser uma realidade. Não, ao menos, do ponto de vista de haver realmente uma possibilidade de um indígena vir a receber uma equivalência de tratamento, deferência e respeito que o raion (não-índio) devota a seus iguais.
Autora: Clara Piquet

Pois, é claro, que ninguém se iluda, a ideia de assimilação de indígenas pela sociedade branca ainda permanece a mesma: o indígena incorporado à sociedade iria integrá-lo na categoria ‘trabalhador braçal’, nunca em igualdade com os brancos ‘civilizados’! Basta ver o espanto que ainda hoje vemos estampado na cara de alguns quando são apresentados a figuras como Daniel Munduruku e Joaquim Maná. “Nossa, um índio-doutor!!” Porque, obviamente, isso é um fenômeno, um portento, um milagre. E é mesmo, verdade seja dita! Digo, por conhecer de muito perto as dificuldades que passam os parentes que conseguem acessar uma vaga na Universidade. Sei de quantas dificuldades, renúncias, preconceitos e incompreensões constituem essa realidade, e por isso reconheço que esses parentes que estão nessa luta são realmente verdadeiros heróis. A questão é: precisava ser assim? E cabe perguntar também: porque são ainda tão tímidas as inciativas da inserção do ensino intercultural dentro da universidade? É mais do que visível que esta separação tão drástica entre o saber tradicional e acadêmico acaba por contribuir para a incomunicabilidade e criação de fronteiras que findam por dificultar ainda mais a aproximação entre realidades que, por força da entrada de representantes dos povos originários na universidade devem, forçosamente, se comunicar, interagir e serem capazes de construir um solo comum.

E, também convém pensar sobre o depois, o percurso após todo o processo árduo de conquistar um título acadêmico no mundo raion. E aí? O que fazer? Voltar para a comunidade para trabalhar junto deles é o caminho esperado, e o mais óbvio. E, aliás, quero deixar claro que não vejo qualquer problema a esse respeito. Mas certa vez li um texto bem interessante de um antropólogo africano sobre uma questão que, cedo ou tarde, acredito que chegará às terras tupiniquins. Esse antropólogo observou que, enquanto os brancos podem fazer suas pesquisas etnográficas acerca de quaisquer povos, em qualquer parte do mundo, do antropólogo negro africano espera-se, exclusivamente que pesquise a respeito de seu próprio povo. Sequer lhe será permitida a prerrogativa de escolher outro povo qualquer da África. De forma taxativa, a ele está reservado como único lugar possível o falar de si próprio e dos seus. Gostaria de frisar que, em nenhum momento estou aqui me propondo a dizer que há algo de errado em ser ‘o antropólogo do seu povo’, o ‘advogado do seu povo’, ‘o biólogo do seu povo’, ‘o contador do seu povo’, ‘o administrador do seu povo’, ‘o arqueólogo do seu povo’, ‘o médico do seu povo’ ou qualquer outra profissão que eventualmente o indígena pretenda seguir como sua, e também não quero também dizer que isso não se dê por conta da própria forma de organização de cada grupo. Mas gostaria de frisar que existe sim algo que estranho e paradoxal no fato de ser essa praticamente a única posição possível para o profissional indígena ocupar, enquanto que para o profissional branco, não existem restrições.

Vale citar, sobre o assunto, a magistral obra ficcional Maíra, escrita por Darci Ribeiro, que narra as desventuras de um jovem seminarista indígena que decide largar o hábito quando se dá conta de que o processo violento por ele enfrentado para assumir os votos como padre não foi capaz de apagar sua identidade indígena, ao mesmo tempo em que nasce nele a indelével certeza de que nunca haverá um branco disposto a confiar a absolvição de seus pecados a um índio padre, até porque, o personagem concluirá, a única função de um indígena vir a proferir os votos como sacerdote, seria a de retornar para junto do seu povo e catequizá-lo.
Autor: Petterson Clayton da Silva

Note-se que esta obra ficcional é inspirada em parte na trajetória real de Tiago Marques Aipobureu, o jovem Bororo cuja vida trágica foi marcada pela incapacidade tanto de se inserir no mundo branco, quanto no de retornar ao convívio pleno com seu povo, acabando por se tornar um ‘indivíduo marginal’ que, no extremo do desespero por não conseguir ‘encaixar-se, acaba por suicidar-se. Talvez citar este caso seja extremo demais, mas talvez não! Decididamente, a experiência prática não me deu até hoje um único exemplo onde um indígena esteja de fato e efetivamente inserido no meio social branco, sendo realmente tratado como um ‘igual’. Ao contrário, perde-se a conta da quantidade de situações em que os indígenas são vistos e tratados como alegorias, figuras caricatas de um passado que insiste ainda em se fazer presente. Também não são raras as intimações para que voltemos, para a floresta, para ‘a tribo’, ou para o túmulo, tanto faz, conquanto não permaneçamos por aqui, pela cidade bela, limpa e branca, atrapalhando o ir e vir dos ‘cidadãos civilizados’. Quem pensar por um só momento que eu estou exagerando, convido a um pequeno trabalho de choque de realidade: visite o Mato Grosso do Sul por alguns dias e acompanhe a realidade de qualquer uma das dezenas de comunidades que permanecem há décadas abrigados à margem das rodovias, encurralados entre a cerca das fazendas, o veneno nos riachos, as balas de jagunços e as rodas dos carros. Depois de cumprido esse exercício etnográfico, a gente conversa, beleza?

Pois sim, não posso deixar de comentar o quanto tem me irritado cada vez mais os discursos ufanistas e vazios acerca do extremo respeito dedicado à cultura dos povos originários, assim como as declarações de total apoio e engajamento à causa indígena que ouço da boca de certos indivíduos. Sabem, é revoltante perceber que a maior parte desse tal ‘orgulho/respeito/engajamento’ só volta seu olhar para a parte mais lucrativa da cultura indígena, aquela ligada à expressão artística, ritual e às medicinas ancestrais. E, enquanto isso, enquanto bolsas raion se enchem de dinheiro, movidas à inocência e generosidade de parentes que temerariamente acabam por abrir as portas do Sagrado para ser avistado por olhos espúrios, aqui do lado de fora do castelo tem gente morrendo todos os dias! E, a respeito disso, eu nunca vou deixar de repetir: os omissos são tão culpados quanto os que tomam parte ativa nesses assassinatos, e esses todos que têm a indecência de dizerem-se ‘amantes da cultura indígena’, ‘filhos por adoção de determinado povo indígena’, ‘pessoas que se descobriram indígenas a partir da participação em determinados rituais’, ‘guardiões protetores do povo tal’ são ainda piores e mais culpados do que aqueles que preconceituosamente simplesmente ignoram a causa indígena como um todo!

Já caminhando para o desfecho desta reflexão, gostaria de propor ainda uma última questão, essa em grande medida voltada para pensar a ocorrência de tantos indígenas que, como eu, por força de tantas questões, são obrigados a viver nas cidades, mas que também como eu, se sentem incapazes de esquecer a força de uma ancestralidade que grita em altos brados, chamando sempre a nossa atenção para saber quem se é, algo que nunca, jamais, nem mesmo a morte pode nos tirar: ser indígena é algo que está na essência, na certeza de saber-se sempre quem se é, da onde se vem, para onde se vai, e porque se vai. Ser indígena, é saber-se nunca assimilado e jamais integrado à sociedade. Porque a verdade é que ninguém é louco de admitir a hipótese de diluir-se, de ser um com uma sociedade que pretende apenas roubar dos povos indígenas aquilo que pode ser monetarizado, jogando fora todo o resto que considera supérfluo – o ser, a vida, a essência e a existência. Estar na cidade, estar em meio à sociedade branca deve (no sentido de dever mesmo!) ser para o indígena uma espécie de estágio temporário, uma forma de aprender e apreender ferramentas úteis para ser capaz de conviver, lutar e as vezes dialogar, mas não mais que isso.
Fonte: site Pinterest

Gostaria de finalizar este texto com uma frase que considerei sublime, dita por meu amigo Ninawa, em meio a uma reunião, e que acho que serve de chave de ouro para tudo que esta crônica tentou trazer:  Eu esses tempos fui entrevistado, e a pessoa me veio com uma pergunta sobre o que eu achava dos isolados.
Eu peguei e falei assim: Como assim isolados? Isolados do quê? Isolados de quem?’ - aí a pessoa veio me explicar que eram aqueles grupos lá na fronteira, que vivem isolados da sociedade, aí eu respondi:
- Olha, isolado vivo eu, meu amigo, aqui nesta cidade, longe dos meus parentes, longe dos mais velhos, sem escutar as cantorias e as histórias deles para aprender e lembrar, longe do rio pra pescar e da terra que dá para fazer um roçado. Isolado vivo eu aqui que tenho de trabalhar para conseguir botar um pedaço de pão na boca. Esses parentes que estão lá na mata, longe disso aqui, eles são é livres. Quem dera eu e meu povo ainda pudéssemos viver assim.



Nota 1:    Veja aqui o vídeo da campanha do ISA:
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/se-tudo-mudou-em-500-anos-porque-nao-podemos-mudar-e-continuar-a-ser-indio

Nota 2: Para quem, ao contrário de mim, não se importa em ler em PDF, o livro na íntegra pode ser baixado no link a seguir: ... Para quem prefira os livros e suas possibilidades de amor táctil, aviso que o exemplar novo e em capa dura é encontrável em livrarias pela bagatela de R$ 20,00.

Nota 03:   ‘Tiago Marques Apoibureu: um bororo marginal’ é o nome do artigo escrito por Florestan Fernandes em 1945, publicado em 2007 na revista Scielo: Para quem se interessar em ler:
https://www.skoob.com.br/maira-3006ed3889.html





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