sexta-feira, 20 de outubro de 2017

CRIANDO O ÓDIO E CULTIVANDO A INDIFERENÇA: algumas reflexões a mais sobre a falta de empatia para com as questões de vida e morte dos povos originários

Por: Raial Orotu Puri


O ódio não vem apenas do medo e da incompreensão do desconhecido e do diferente. Ao longo da história, o ódio também foi uma construção que serve a fins políticos. Construção tão bem feita que passamos a achar que aquilo plantado dentro de nós por terceiros sem que percebêssemos, na verdade, é nosso. (Leonardo Sakamoto)

Recentemente li o artigo do Jornalista Leonardo Sakamoto, do qual extraí o excerto acima, e que trata de como ondas de fundamentalismo, intolerância e moralismo podem ser fomentadas mediante a utilização dos veículos de mídia. Embora abordasse a questão dos recentes casos de ataques à manifestações artísticas, o artigo analisava o uso dos mesmos por políticos interessados em aumentar sua popularidade afim de conquistar votos – especificamente citando o caso de Lorde Farquaad*, o atual prefeito engomadinho de São Paulo.


O artigo aborda de forma muito interessante como determinadas questões tornam-se polêmicas e servem para orientar o potencial de ódio não-pensante sempre latente nas massas, ao mesmo tempo em que também dão poder a certas figuras que se valem destas estratégias para fortalecer-se politicamente. E importa dizer: o que o artigo reporta é como o ódio pode ser manipulado, incitado e até mesmo criado.

Este artigo me fez recordar de algumas leituras e discussões há muito passadas, e que seguem mais ou menos por esta mesma linha de raciocínio.

A primeira lembrança foi o teatro “Os interesses criados” de Júlio Benavente, escrita em 1907. A peça cômica de Benavente, premiada com o Nobel de Literatura de 1922, conta a história de dois larápios que conseguem através de sua lábia se safar de pagar por algumas faltas passadas, bem como arranjar um casamento com a filha de um rico senhor. Toda trama gira em torno de como se faz possível fazer com que alguém contribua para o alcance de um objetivo pessoal despertando (ou criando) nela um interesse que, de início, ela não possuía. A grande artimanha apresentada no caso era fazer a pessoa que estava sendo manipulada não percebesse a manipulação e acreditasse que, desde o início, as iniciativas partiram dela.

A segunda memória que tive referia-se a uma discussão apresentada em uma aula do doutorado, na qual uma professora citou uma reflexão da antropóloga Mary Douglas acerca do casamento ocidental moderno, onde ela procura demonstrar como uma instituição que teoricamente é baseada ‘apenas no amor’ acaba por ser, na realidade, definido e limitado por uma série de questões, padrões, estruturas e limites, os quais direcionam o afeto para um grupo específico de indivíduos. Em síntese, mesmo um sentimento espontâneo como a paixão poderia estar, dentro dessa teoria, limitado por uma série de fatores sociais e culturais. Mary Douglas é a autora de um dos melhores livros que li na vida (Pureza e Perigo, 1966), então sempre me agradam muito as suas análises, mesmo aquelas que frustram algumas de minhas mais caras ilusões românticas.

Bom, isso não foge muito de minha percepção acerca das coisas da vida: como já disse outras vezes, desde uma perspectiva indígena, não vejo os seres que habitam o mundo como imutáveis, posto que a potencialidade de transformação é sempre latente. Da mesma maneira, como já disse outras vezes, acredito que até a condição humana é relativa e construída. Porque então os sentimentos não seriam, pelo menos, influenciados?

Mas acontece que isto que eu digo é sobre o ponto de vista do mundo indígena, e esses textos todos acima citados de forma correlacionada falam do mundo raion. São textos que põe em dúvida a racionalidade e independência da sociedade ocidental e sua empáfia cartesiana de acreditar que pensa, logo existe, e que tudo o que por ela é pensado e por isso real é feito de forma racional e independente, portanto, absolutamente diferente de nós, primitivos e crédulos em superstições.

Por outro lado, sei que o que estou dizendo aqui pode ser lido como uma contradição com meu texto da semana passada, no qual eu lamentava a minha total frustração de saber que não é possível ensinar às pessoas a sentir empatia por questões tais como a violência pela qual passam os povos originários constantemente neste país e mundo afora.

Bem, conforme eu já disse em outro lugar e momento, ser contraditória faz parte da minha natureza, da minha perspectiva de mundo, e ela não me preocupa. Em todo o caso, minha intenção neste texto não é refutar o que disse anteriormente; pelo contrário, gostaria apenas de ressaltar o meu argumento, acrescentando alguns pontos ao já dito, pois para mim a grande e insuperável contradição que eu vejo entre os raion é bem pior e mais problemática do que aquela que eventualmente possa ser encontrada em meus textos. Principalmente porque certamente a emoção seletiva e direcionada dos brancos há de ser culpada de muito mais mortes do que a mutabilidade daquilo que eu escrevo...

Porque, ‘veja bem’, aquilo que todos os textos que eu citei acima alinham é, na verdade, algo que não chega a ser surpreendentemente novo: qualquer pessoa que tenha estudado publicidade e matérias afins sabe como o marketing constantemente se vale de ferramentas para criar necessidades e estimular o consumo de determinados bens. E sim, isso é bastante trágico e funesto, sobretudo se levarmos a discussão para questões como padrões de beleza, por exemplo.

Mas acredito que a questão aqui pontuada é muito mais radical, porque não se trata da criação de necessidades para fomentar à aquisição de bens; trata-se do estímulo à intolerância e ao ódio. E, como ninguém ignora, ódio e intolerância matam todos os dias no mundo real. Pois sim, por mais que se negue, a verdade é que o mesmo ódio circula entre os ataques às exposições de arte que retratam a diversidade sexual e de gênero,  e os assassinatos de mulheres trans nos quais o Brasil se consagra há muitos anos como campeão. E qualquer relativização desta verdade é hipócrita, para dizer o mínimo.

E, para além da criação/estímulo ao ódio, há nesse mundo um outro sentimento, ou não-sentimento, ou sentimento seletivo que também tem feito um inumerável número de vítimas. Eu costumo entende-lo como indiferença, mas talvez esta não seja exatamente uma forma exata de precisar o fenômeno da omissão para com o que tem sido lutar pela vida em um
mundo que considera que tudo o que não é branco faria melhor se morresse.

Conforme temos visto no desenrolar das fogueiras semanais da internet, a comoção do brasileiro é muito específica e sempre direcionada para questões específicas. Ela não é abrangente, nem é capaz de sofrer por dores de não-brancos. (Apenas para citar o exemplo da semana, basta notar como são vistas poucas ondulações nas calmas águas azuis do Facebook no tocante ao massacre que está ocorrendo na Somália.)

Ocorre que, como já assinalei em outros textos, para além das pessoas que conduzem a comoção das massas para as exposições artísticas, e daqueles que nutrem ódios de nascença à diferença, existem também os curiosos grupos humanos que são extremamente engajados em causas várias que, teoricamente, estariam conectadas com visões de mundo mais abertas e preconceituosas, mas que ao mesmo tempo são também tão fechadas e fundamentalistas em certos pressupostos que podem até mesmo se aliar a essas massas não-pensantes colocando em alvo a possibilidade de existência de diversas minorias: indígenas, negros, mulheres trans, homoafetivos, professantes de religiões de matriz africana, dentre outros.

Exemplos disso eu já citei em outros textos: as defensoras do parto natural, do sagrado feminino, feministas radicais e adeptos do “sagrado indígena” que não se dão conta do contexto de violência, ameaças e perda de direitos a que os povos originários estão sendo constantemente submetidos. Quero aqui acrescentar mais um exemplo à lista: os veganos. Cito-os precisamente por estarmos vivendo uma onda extremamente séria de violência contra as religiões de matriz africana, protagonizada, sem dúvida por grupos religiosos, mas que tem também tem em parte sido compartilhada por aqueles que condenam ‘o sacrifício de animais’, e que curiosamente não levantam um dedinho sequer de acusação contra as JBS da vida.

E faço notar este fato precisamente porque coisas como ‘as JBS da vida’ são também responsáveis por um sem número de atrocidades que têm sido vivenciadas pelos povos originários. Porque se é tão trágico comer um bife na hora do almoço, este fato em si deveria ser mais trágico, porque dessa carne pinga sangue indígena, e porque o boi da onde vem essa carne foi alimentado com soja, a mesma soja que cobre os túmulos e expulsa os parentes Kaiowá de seus Tekohá.

E, no entanto, isso passa subsumido de todos os discursos em defesa da vida de todos os seres. E eu só gostaria que houvesse um porque para tudo isso. Um por que, uma explicação qualquer, mesmo que fosse mentirosa e falsa. Mas que apesar de tanta falsidade, fosse capaz de aplacar meu ódio por essa indiferença toda, por essa hedionda omissão conivente, e por essa abominável seletividade emotiva que se abraça com o ódio e fomenta tantas mortes, as físicas e aquelas tácitas, decretadas a canetadas no Congresso.

Pois que, no fundo, o que mais me entristece com a condução dessa reflexão é que, realmente, os raion não parecem no final das contas incapazes de sentimentos. Sentem amor, sentem ódio, sentem repulsa, sentem intolerância, sentem engajamento, se revoltam, sentem empatia, sentem consternação, sentem medo, sentem várias coisas...
... Eles só parecem ser incapazes de sentir qualquer coisa a respeito dos milhões de indígenas mortos nesses cinco séculos de invasão, simplesmente porque esses mortos todos não são brancos e cristãos como eles.




Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).


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* Para quem não se recorda Lord Farquaad é o governante da cidade de Dunloq, na animação Shreck, e acho que quem quer que tenha assistido o filme entende a minha analogia.
Referências do texto:
“Como os Políticos fomentam a intolerância e o moralismo em busca do poder”, por Leonardo Sakamoto:
https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/10/01/como-politicos-fomentam-a-intolerancia-e-o-moralismo-em-busca-de-poder/

Notícia da BBC sobre o ataque terrorista na Somália, que já fez cerca de 370 vítimas:  http://www.bbc.com/portuguese/internacional-41633872


- Todas as imagens são de autoria do pintor Alexandre Segrégio

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