Por: Raial Orotu Puri
Março é em muitas coisas o ‘meu’ mês. E talvez neste ano de 2018 tenha sido ainda um pouco mais, devido a ter sido um mês de muitas águas; de navegação, de limpeza, de choro, de partidas e, espero, algum recomeço possível. Quero tentar neste texto sintetizar um pouco sobre essas águas todas...
Começo dizendo que foi um mês intenso, e sua intensidade se fez sentir para mim em muitos âmbitos, e talvez por isso mesmo, a minha resposta a ele tenha sido quase toda feita de silêncio e pensamentos. E. talvez por tanto silenciar, agora falar algo que seja de repente me pareça tão penoso. Mas tentarei.
Pois bem, março, mês de meu aniversário e mês de águas, foi passado quase todo ele em meio a elas, no curso de um rio muito especial para mim, o Bariá, como chamam os Huni Kuin (ou Envira, para os menos íntimos). Mas é claro, não serão apenas destas águas que falarei, ainda que estas em particular tenham guiado muito do que tenho feito. Há, no entanto, outras águas, muitas.
Mas comecemos com o começo, a viagem de 23 dias de viagem ao longo do Henê Bariá. Bem, é certo que aquelas águas já me eram conhecidas. É claro que não quero aqui dizer que as conheço profundamente – quem poderia dizer isso de um rio, ou do que quer que seja?! – mas apenas que já estive lá algumas outras vezes, e que por isso, sabia de antemão que seria intenso, como sempre costuma ser, e ao mesmo tempo teria muito de novidade. Porque ele é assim, o “que se repete, e que nunca é igual”. Pois bem, assim foi mesmo.
Como se sabe, a maioria das aldeias do Acre possui acesso exclusivo através dos rios, e esses rios têm seus cursos diretamente afetados pelo regime de chuvas. O Bariá é um destes rios aonde esta sazonalidade de águas é muito frequente. No inverno amazônico, ele está mais cheio de águas, e é possível singrá-los em grandes batelões. No verão, porém, a navegação só se faz possível em cascos menores, e olhe lá...
Me lembro das águas de março do Jobim... em outras partes do país, elas fecham o verão. No entanto, aqui, no centro do universo, o Acre, para que haja “promessa de vida” no meu coração e na terra, é preciso muitas águas caindo dos céus.
Neste ano em particular, as chuvas chegaram muito mais tarde nas cabeceiras (Pois sim, além de chover, é preciso chover no lugar certo para o rio encher!). Para ser mais precisa, apenas na terça-feira de carnaval é que o Bariá encheu de verdade. Assim, antes da ‘terça-feira gorda’ que engordou as águas, a viagem que já estava sendo preparada desde o início de fevereiro ainda se encontrava incerta, e corria o risco de ser cancelada.
Devido a isto, acabei fazendo a primeira viagem de helicóptero da minha vida. Foi uma experiência nova, e, passado o temor inicial, bastante agradável. Pude ver do alto a floresta a luz do dia, e ter aquele vislumbre da imensidão verde que ainda recobre esta parte do mundo (e do fundo do coração almejar que assim seja sempre!). Pude também ver de perto algo que ouço há muito: a respiração da floresta, os pontos em meio à mata de onde brotam nuvens... Não sei se encontraria palavras para explicar de maneira inteligível este fenômeno, visto que também desconheço se existe forma de fazê-lo compreender para além do olhar. Mas acredito que quem quer que tenha visto aquilo de que falo compreenderá...
Após essa hora e meia de voo, paramos na aldeia Califórnia, para encontrar com o restante da EMSI (Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena) com a qual estaria viajando ao longo do período. Esta particularidade também fez desta viagem uma ‘primeira vez’ para mim, pois foi seguida dentro do curso do cronograma de atividades e rotinas previstas para a realização de atendimentos de saúde.
Pouco tenho a dizer neste momento desta rotina, tão diferente da que estou acostumada a vivenciar em minhas anteriores estadas nas aldeias do Acre. Posso dizer apenas que elas me fizeram muito pensar sobre minha condição de estranha e estrangeira aqui, e sobre esta singular e nada ortodoxa missão de ser um peixe que as vezes precisa mediar um improvável diálogo entre o pescador e os cardumes. (É, na falta de melhor analogia, foi esta que encontrei para expressar o que sinto enquanto indígena e antropóloga...)
O que tenho a dizer destes dias é que testemunhei muitos encontros entre mundos distintos, unidos pela necessidade. Nestes encontros, vi tentativas de diálogo, tanto quanto vi opções deliberadas pela incompreensão. Vi também com esperança profissionais tentando ao máximo fazer o melhor possível em condições mínimas. E vi também necessidades extremas, e me entristeci diante de limites e limitações.
Vi também orgulho, força, altivez e grandeza. Vi a beleza da floresta e de seus povos, sua diversidade de língua e cultura. E tanto me alegrei quanto me entristeci em alguns momentos. Nestes encontros todos, participei de atendimentos, tomei parte em rodas de conversa, tomei notas, fiz prontuários, medi com réguas humanas, e tentei alcançar algumas medidas imensuráveis, gravei falas, busquei interpretações, respostas, e encontrei mil novas perguntas; teorizei bastante, mas, acima de tudo, observei. Ou seja, tentei fazer o que se esperava de mim: uma tal de antropologia!
Entre os Madijá, vi grandes necessidades, mas também um tipo especial e único de resistir, de recriar a floresta, e guiar-se por ela; de conhecer segredos imensos e dominar perigos extremos. Vi a troca (manako) como regra de vida. Vi o ser frágil e o mais forte. Vi a mais bela expressão de cuidado maternal: em um das casas que visitamos, foi preciso que duas mães de neonatos caminhassem conosco um largo tempo, até mais próximo da beira, para serem feitos em seus bebês os famosos ‘testes do pezinho’. Acontece que em meio à caminhada, começou a serenar. A preocupação com a saúde dos pequenos foi sanada pelas duas mães, que usaram grandes folhas de Taioba à guisa de sombrinhas. Desta bela imagem, lamento apenas não ter conseguido capturar a tempo em uma câmera, mas guardei-a de memória e coração, como um exemplo muito salutar e singelo de maternagem indígena.
Entre os Ashaninka, vi a altivez personificada em povo. Vi a beleza de seu lugar de morada, cujo nome lhe cabe totalmente: Alto Bonito. (Mais que bonito, belíssimo!) Vi os modos soberanos dos filhos de Pawa, em seus trajes únicos, em suas pinturas esmeradas e cambiantes, diuturnamente refeitas em novidade, em seu jeito tão particular de olhar a vida.
Vi uma dezena de vezes o Sol se pondo e tingindo o Bariá de belas cores, e vi também o mar de estrelas que naquela distância aparece em sua imensidão imperturbável pela ausência das luzes da cidade. Como sempre, me vi esmagada por sua grandeza, e chorei diante desta beleza toda, inalcançável e ao mesmo tempo tão próxima. Renovei, assim, uma vez mais, meus votos de eterno amor por este único dentre meus amores que eu sei que jamais decepcionará minhas expectativas...
Revi também o corpo ainda grandioso da Samaúma que não mais sustenta o céu da Terra Indígena Hene Bariá Namakia, abatida que foi pelo machado e a incompreensão do ‘nawa’, e mais uma vez me afligi diante de sua ausência absurda e que sempre hei de sentir... O que me tranquilizou foi ver que aquela aldeia ainda se encontra sustentada por uma outra Samaúma, menor em estatura, ainda que de grandeza insondável: dona Parã, aquela que é possivelmente na atualidade ‘a mulher mais idosa do mundo’. Ainda que haja dúvidas a respeito desse recorde, eu não tenho dúvida alguma de que ela é certamente uma das mais incríveis shanu do mundo, e conhecê-la é um dos maiores privilégios que eu experimentei.
Entre os Huni Kuin, revi muitos amigos e conhecidos. Vi e revisitei a expressão de alegria única deste povo, as suas cores, os seus desenhos. Vi também a cura de um caro e recém-feito amigo. Em suas terras recebi abraços sufocantes e revigorantes, e fui alvo de honrarias, tais como o delicioso almoço na casa da amiga Shãkuany, na Aldeia Yskuya Yuxibu, e a de conhecer o espaço sagrado da Aldeia Formoso, aonde fui conduzida para uma reunião especial e reservada com os Dawiá que preparavam o nixi pae da cerimônia que ocorria ao fim do dia. Ali ouvi palavras sábias, bela música e me foi soprado rapé.
Naquela distância toda, estive certo dia – 28 de fevereiro – em real crise de desespero pela necessidade de contato com o mundo exterior, para enviar à minha filha, peixinha como eu, as felicitações pelo seu aniversário. Depois de um milhão de tentativas, felizmente, consegui que ela soubesse que eu me lembrei sim, daquilo que eu jamais esqueceria! (O feliz dia em que ela chegou a este mundo, dez anos atrás!) Resolvida esta urgência, voltei-me à tranquilidade da viagem, que poderia ter durado outros mil dias, mas acabou findando no dia 11 de março, quando aportamos em Feijó.
Tão logo chegada ao alcance das notícias, me deparei com algumas felicidades, e alguns espantos e horrores. Voltar da civilização à barbárie não é mesmo nada fácil!
Pude também fazer uma visita de um dia à Aldeia Shane Kaya, e conversar com os parentes sobre alguns dos resultados colhidos na viagem e participar dos debates e proposições acerca de medidas muito necessárias à melhoria das condições de vida e saúde da população indígena em Feijó.
A título de curiosidade, esta reunião aconteceu em 20 de março, data que na tradição do meu povo é o Ano Novo, a época da ‘enchente das goiabas’, época de semeadura e de honrarias aos Ancestrais. E que ocasião mais propícia que esta para traçar planos e semear o novo? E eis que assim, uma vez mais, meu ano se iniciou. E de novo, no Acre.
Assim, somando os dias da viagem, com aqueles passados em Feijó, cheguei à marca de um mês inteiro distante deste local que atualmente designo ‘minha casa’, hoje sediada em Cruzeiro do Sul. E, nestes dias após o regresso, tenho me dedicado a escrever relatórios e pareceres, mas não pude deixar de reservar algum tempo para escrever este texto dedicado às águas que banharam este mês.
E, já que falo de águas, é preciso falar de lágrimas e partidas. No espaço de quatro dias, três Grandes se foram. O seu baque retumbou sobre a terra, tal como o que se fez ouvir no dia em que a Samaúma foi cortada. No dia 27, se foi Alexandrina, matriarca do povo Karipuna. No dia seguinte, 28, Yawarany aos 106 anos resolveu que era tempo de se juntar a Tata em sua Aldeia Ancestral. E na noite de ontem, partiu Aru Sompré, jovem líder do povo Xerente, esportista e atacante do primeiro time de futebol indígena no Brasil, o Gavião Kyikatejê, vítima de um acidente de carro fatal...
Pouco sou capaz de dizer sobre essas ausências que ficam, exceto a impressão de que estamos ficando um pouco mais órfãos a cada um que se vai. Ao mesmo tempo, sinto que há – espero que haja! – algum sentido... talvez, algum chamamento. Talvez seja preciso.
Talvez eles estejam sendo esperados junto dos Ancestrais para um grande Conselho, para somar forças à luta que recrudesce na terra, e só pode ser vencida através de uma dimensão que está para além de qualquer poder do raion. Talvez o choro que derramamos por sua partida possa fazer acender o arco-íris que simboliza vida que se renova... talvez...
Talvez... ou talvez seja só a minha forma patética de tentar encontrar explicação e consolo...
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC) e como antropóloga do DSEI-ARJ.
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Imagens: Imagem 1 - Moara Brasil ; Imagem 2 - Maurício Negro; Imagem 3 - Letícia Abelha;
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