segunda-feira, 2 de abril de 2018

VOANDO COM OS PÁSSAROS AZUIS...

Por: Jairo Lima

Olhei pro céu... a lua reinava, afastando para longe as nuvens carregadas da benfazeja chuva.

Uma brilhante fogueira pintava o ambiente de um amarelo dourado-escuro, muito parecido com uma velha peça de ouro, transformando todos ao seu redor em vultos ensombrados com sua cor. Esse efeito se fazia principalmente nas formas disformes que a circundavam.

Eu, que também não era mais que um vulto dourado, olhava fixo para a cena que se desenvolvia à minha frente, sem dela conseguir desprender minha atenção para os outros movimentos ao meu redor, ou, ainda, para os que estavam diretamente ao meu lado e que, por vezes, dirigiam-me algumas palavras que eu não absorvia quase nada. Quanto  à cena, esta era formada por formas femininas que rodopiavam em uma dança exótica e singular, traçando no ar formas com os movimentos de seus grandes lenços, enquanto seus corpos moviam-se em harmonia, deslizando pelo ambiente como se flutuassem.


Olhei pro céu mais uma vez, e aos meus olhos, o brilho de seus diamantes no fundo azul-escuro parecia cadenciar-se no mesmo ritmo das mulheres que, tal qual ondinas encantadas, iam e viam, rodopiando e entrecruzando-se de maneira tão harmoniosa que era difícil acreditar que faziam isso à meia-luz.

A floresta toda pulsava ao redor, enquanto uma música constante e ritmada por violões, vozes e tambor davam o compasso que ora, pelo menos para mim, ritmavam-se com as batidas do coração.

Olhei ao redor e vi uma pequena plateia de formas e vultos que assistiam o mesmo espetáculo encantado. Estavam sentadas num grande círculo e compondo, assim como eu, uma plateia de seres que pareciam vindos de uma outra época, de um outro mundo.

Voltei minha atenção mais uma vez para o centro do círculo, fitando a fogueira. Nisso, uma voz falou-me de algum lugar próximo a mim: - “Txai, você notou que a madeira quase não se consome no fogo? Presta atenção, ela também solta um cheiro bem doce”. - Concordei com a afirmação após concentrar-me alguns segundos.

Novamente a cena cativou-me a atenção, no momento em que as formas femininas transmutavam-se, tomando formas distintas que pareciam se apresentar individualmente, como se mostrassem aos espectadores sua identidade encantada.

Vozes femininas cortavam o ar ao redor, mesclando-se à dos músicos e da floresta, transformando todo o ambiente num estranho, mas belo, teatro encantado…

As horas passaram… a visão desvaneceu-se… tudo ficou mais escuro e as formas passaram a fazer sentido: com penas encimando seus cabelos, mulheres com longas saias e lenços pararam de dançar e com leves sussurros comentavam algo que, certamente, não deveria ser para os ouvidos de todos...

A noite então estava bem escura. O céu já não exibia suas estrelas, mas, sim, a indicação que logo as águas cairiam, refrescando toda a floresta, e propiciando uma noite de paz e conforto a todos...

A cena que descrevi acima não se tratou de um sonho, mas, sim, da ‘festa da tradição’, realizada na noite do Domingo de Ramos, na aldeia Shane Kaya, do Povo Shanenawa. Festa essa onde o Uni* era o anfitrião para os encantos que desenrolavam tanto de olhos cerrados quanto de olhos abertos. A referência ao dia santificado pelos seguidores cristãos passou despercebido por todos, certamente, e, para mim, serviu-me para localizar-me ‘no tempo e espaço’, pois, desde minha chegada a essa aldeia, um dia antes da cena descrita, parecia que um longo tempo havia decorrido desde o início da ‘festa’ que ora participava.
Essa comunidade tem em sua essência a força feminina, tanto em sua origem quanto na condução de sua dinâmica diária, onde filhas e netas do velho patriarca Shanenawa, Shoainê Shanenawa - conhecido também como ‘seu Amaral’ -  tomaram a iniciativa de criar um local onde a cultura tradicional de seu povo pudesse ser preservada e difundida entre as demais aldeias da Terra Indígena onde habitam.

Essa essência e força ficaram claras para mim nesta noite e que, apesar de ter o Uni como combustível, em muito se diferenciava dos rituais feitos com esse vinho sagrado. Pois, apesar da energia e dimensão que essa bebida traz, as canções executadas na língua indígena e a cadência dos ritmos que as conduziam trazia claramente o entendimento do que se desenvolvia.

Fiquei impressionado ao ver somente as mulheres – salvo um momento ou outro – dançando ao redor da fogueira, executando um bailado que, por vezes, desconstruíam totalmente a ‘lógica’ do que eu havia presenciado em todos esses anos de contato com os povos indígenas e com as comunidades que comungam do uso da Bebida Sagrada.

Comandadas pela Cacique da aldeia, Mukani Shanenawa, as mulheres bailavam com uma leveza e presença que dava a sensação de que seus pés não tocavam o chão. Tal como pássaros, por vezes, ao completarem mais uma volta em redor da fogueira que centrava o terreiro de festas da comunidade, estas meio que ‘soltavam-se’ do grupo, e deixando a força do cipó agir sobre suas performances e corpos, numa harmonia incrível, onde cruzavam uma com as outras em movimentos leves e graciosos. Aos meus olhos eram como se estas tivessem asas e plumas multicolores, voando entre os presentes e mostrando seus encantos e belezas. Realmente incrível e difícil de descrever.

As canções eram ‘puxadas’ por um pequeno grupo de homens e contavam com o coro feminino para dar ritmo e beleza às músicas. Canções lindas e marcantes, executadas com uma simplicidade e fluidez maravilhosas.

Esse ritual foi realmente uma experiência única, algo que me surpreendeu, pois achava que, após mais de duas décadas participando de rituais, eu ‘já tinha visto de tudo’.

Mas... o que eu estava fazendo nessa aldeia e qual o motivo dessa festa? Bem, explico: eu estava participando da gravação e registro das canções Shanenawa, muitas destas de conhecimento do patriarca da comunidade, Shoainê Shanenawa, o “Seu Amaral”, ancião de 97 anos de idade e que, para este povo, representa um dos últimos grandes conhecedores de sua tradição, depois da passagem de seu seu irmão, Bruno Vakainu Shanenawa ‘encantou-se’ recentemente, aos cento e sete anos de idade.

Após meses de convite, insistentes e graciosos de uma de suas lideranças, Edna Shanenawa, finalmente consegui um espaço na agenda caótica e complicada que toma conta de minha vida profissional e, por vezes, pessoal, já que envolvo-me - ou sou envolvido - em diversos projetos. Assim, aproveitando essa ‘brecha’ (confesso: aberta a fórceps, acreditem) pirulitei-me para a aldeia, enfrentando a esburacada e esquecida BR 364, em direção a Feijó, município onde se localiza esta aldeia. No caminho, entre o tédio dos desvios intermináveis do carro desviando os buracos, desprendia-me aos poucos da tensão e preocupações tão comuns no dia-a-dia de nossos afazeres. Cada quilômetro vencido era um pouco de ‘nhacas’, estresses e penduricalhos mentais que eu ia jogando pela janela do carro.

Nessa viagem tive a divertida e reconfortante presença de minha família, o que me deu mais tranquilidade, exceto, claro, pelo fato de não ter podido levar a Graviola, nossa cadela, mas, mesmo assim, essa tranquilidade não se abalou, pois sabia que a mesma estava em segurança e bem tratada.

Vencida a BR, e seu serpentário de buracos, era hora de vencer o ramal que liga a rodovia à aldeia. Com a ajuda de um carro de boi, e alguns txai enviados para nos ajudar a carregar todo o equipamento, nossa procissão foi vencendo, entre escorregões na lama e subidas intermináveis, a distância final para nosso objetivo.

E lá cheguei…

Local lindo, com suas casinhas - e ‘casonas’ - espalhadas pelo terreno ao redor, umas nos pequenos morros que circundam a aldeia, como se quisessem estar mais perto do céu: - Ei txai, tú mora tão alto que certamente deve ser vizinho do Dono do Céu, né? - Foi minha pergunta ao visitar uma das casas, a do querido amigo Naynawa, que sorridente me recebeu para um breve repasto de bananas e um papo. Essa visita às casas foi parte do tour que nossa comitiva (de oito pessoas) fez, ciceroneada pela Cacique da aldeia Mukani, que ia explicando quem morava em cada casa, bem como ia nos mostrando as benfeitorias realizadas na aldeia, que foi fundada há cerca de quatro anos.

Terminado esse primeiro contato abanquei-me na casa da Edna Shanenawa, em sua grande varanda e quartos fizemos nosso acampamento…

Foram dias de muita alegria, diversão, trabalho e emoções…

O que rolou? Bem… isso aí já é ‘outra história’, mesmo que dentro da ‘mesma história’, que certamente contarei em outro momento.

E assim fecho esta crônica, deixando-me levar pelas lembranças encantadas de uma noite maravilhosa, onde olhei pro céu, e nisso me toquei que seus encantos e belezas se revelavam bem ‘ali’, à minha frente, ao redor de uma fogueira com cheiro doce e onde a madeira não se consumia… enquanto pássaros azuis voavam à minha frente, mostrando-me seus mistérios e dando-me as boas vindas ao seu ‘ninho’.

Boa semana a tod@s...


Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.

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