domingo, 3 de novembro de 2019

NOTAS SOBRE A 3ª CONFERÊNCIA INDÍGENA DA AYAHUASCA

Por: Jairo Lima

Digo pra vocês: Viajar de monomotor sobre a floresta é algo único, mas ao mesmo tempo, assustador. Tenho medo sim, não nego. No entanto, a outra alternativa para minha ida à cidade de Marechal Thaumaturgo seria uma viagem de quatorze horas de barco que, apesar de achar a experiência um ótimo exercício para concentrar-se no lado ‘zen’ da existência, não estava muito animado a encarar.

Assim, de bom grado fui sacolejando no espaço aéreo entre Cruzeiro do Sul e essa pitoresca cidadezinha no extremo ocidental acreano, tendo como companhia figuras queridas, entre estes a querida Nanë Putanny Yawanawá, Biraci Brasil Nixiwaka Yawanawá e Biraci Iskukua Yawanawá. Nosso destino: Instituto Yorenka Tasorentsi. Local onde seria realizada a 3ª Conferência Indígena da Ayahuasca.

Dessa vez o anfitrião seria o txai Benki Ashaninka que construiu todo o espaço central para o evento em (pasmem) três meses. Uma estrutura linda que se destaca em meio à paisagem quando sobrevoamos a região. Apesar de ser uma instituição privada, o Instituo Yorenka Tasorentsi, capitaneado pelo Benki, tem uma ligação estreita com sua comunidade, Apiwtxa, o que ficou bastante claro ao chegarmos ao local e nos deparamos com muitos Ashaninka caminhando por todos os lados.

O fluxo de aeronaves fretadas era constante nos céus de Mal. Thaumaturgo, assim como os barcos fretados que trouxeram todos os convidados para o evento, totalizando duzentos e cinquenta participantes entre indígenas e não-indígenas. Uma mescla de empolgação e expectativa estava clara no rosto de todos que chegavam.

O resultado do evento foi além das expectativas, mesmo para mim que, por fazer parte do grupo de organização do mesmo, busco sempre injetar aquela positividade salvadora nas horas em que parece que ‘a coisa não vai’ e, digo a vocês que faltando alguns dias para o início da conferência nem comprimido para dormir fazia efeito em mim.


Terminado o evento, como puderam notar, num primeiro momento não escrevi sobre os rituais. Não escrevi sobre as palestras. Não escrevi sobre os povos presentes. Não escrevi sobre a pluridiversidade colorida e rica de opiniões, vozes, línguas e pessoas presentes. Não escrevi sobre as autoridades indígenas e não-indígenas presentes. Não escrevi sobre minha milionésima tentativa de ‘seguir o ritmo do Benki’, o que sempre prometo e, até este evento, nunca havia conseguido (ficar acordado todo o evento, bebendo cipó e interagindo sem parar). Não, nada escrito sobre isso.

Dessa vez fiquei só apreciando textos e manifestações e demais postagens de amigos queridos, como meu ‘novo-velho amigo’ Edson Lodi com seu lindo poema (clique aqui); imagens diversas postadas por pessoas como Jefferson Amaro, Náiber Pontes, Bruno Valentim (clique aqui), entre outros.

Fiquei dedicado à organização dos produtos do evento, como por exemplo, alguns vídeos com canções e imagens que trazem um pouco da energia e alegria destes dias (clique aqui e aqui) e a Carta Aberta da 3ª Conferência Indígena da Ayahuasca (clique aqui). E, também, noutros materiais que em breve estarão disponíveis.

E eu estava quietinho no meu canto, como meus poucos leitores notaram, até a repercussão, no Facebook, causada por uma matéria bem interessante que saiu em um dos jornais acreanos, que me chamou a atenção (clique aqui). Claro que me refiro aos comentários, aquele espaço igual a uma arena romana nos velhos e nada saudosos períodos dos césares. Acredito que esse espaço nos traz o suprassumo da percepção geral de qualquer assunto, e nesse em particular fiquei impressionado – e em alguns momentos enojado - com o que li. Impressionante como tem gente justificando as ‘pajelantrias’* e apropriações culturais como parte de uma nova consciência. Uma espécie de novo despertar com ‘xamãs-brancos’ (duas palavras totalmente desconexas uma da outra), padrinhos, terapeutas e o diabo-a-quatro transformando o mundo num grande Hauxstock*, mas, onde as estrelas não são os txai indígenas, mas, sim, essa canalhada toda. Atenção: não estou me referindo aos que usam a Ayahuasca em suas doutrinas ou centros, pois sei que, em grande parte, tratam com seriedade o uso da mesma. Me refiro especificamente àqueles que a carapuça do que está na carta da 3ª Conferência serviu, e que, de pronto, ‘siricotiaram’ igual a lagartixas andando na areia quente. Foi interessante de ver (ler) e, em vez de me sentir incomodado, fiquei foi alegre, afinal, isso demonstra que a ‘mensagem’ está chegando em todos os grotões e colinas desse mundão pirado e carente que vivemos.

Essa iniciativa está crescendo e se consolidando como calendário imperdível para quem realmente se identifica com o assunto. Eu me identifico.

Passei os cinco dias ‘ligado’ na conferência, usufruindo de uma vivência que a cada ano se mostra única e cheia de significados, que apura e ressignifica a cada momento meu pensamento e meu ser. Não vejo esse evento como algo político ou mobilizante, pelo contrário, o vejo como um corpo que vai tomando forma a cada novo encontro.

Passado o evento, após meu sacolejo aéreo de retorno à cidade de Cruzeiro do Sul, no meu glorioso estado do Acre, atentei para o fato de não ter ligado o celular em nenhum momento (no local tinha acesso a sinal de celular). Não fez falta e, para ser sincero senti uma vontade gigante de jogar o aparelho no lixo, quando este enlouquecidamente começou a ‘apitar’ com a quantidade estratosférica de mensagens de ‘zap’ e e-mails represados em alguma nuvem virtual maluca nesse mundo conectado de hoje em dia. Também não fizeram falta as atualizações que as mídias virtuais me traziam, com as peripécias do circo político e nonsense de nossa Pindorama, mas que rapidamente passei a vista para saber se realmente eu tinha voltado para o mundo caótico de sempre, e infelizmente constatei que realmente havia retornado.

Certamente escreverei em algum momento sobre as noites mágicas, as palavras profundas, e todo o ‘universo’ que foi mais essa conferência. Ou não, afinal, vejo muitas penas hábeis vindo somar nesse universo indígena, que, felizmente, está a anos luz do entendimento de algumas figuras que, por vezes, tentam infestar esse ambiente.

Pronto! Havia prometido a mim mesmo que não xingaria nem espezinharia... enfim. Viram? Deveria ter ficado quieto né? Me acode aí Domingos Bueno...

Boa semana a tod@s!

* Palavras criadas pelo amigo Domingos Bueno. Não poderia deixar de citar o autor desses novos verbetes, que já se incorporaram ao dicionário informal ayahuasqueiro.


Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, na região do Juruá, Acre.

* Conheça a página do Crônicas Indigenistas no Facebook (clique aqui). Lá encontrará, além de nossos textos, várias e diversificadas informações. Também temos o canal do YouTube: Crônicas Indigenistas - Música Indígena (clique aqui).
Imagem da capa do texto: Bruno Valentim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário