Aula de cestaria nos Puyanawa - Foto IFAC |
A conversa fluía na mesma
proporção em que nossa caminhonete chacoalhava na estrada de barro desgastada, onde eram visíveis pequenas nascentes d´água de cor ferrosa aflorando aqui e ali,
mostrando a inconveniente teimosa dos homens que construíram esta vereda sobre
uma região rica em mananciais. Não muito longe, acompanhávamos com olhares
rápidos, o avanço das demais caminhonetes do nosso comboio, que desviavam os obstáculos naturais da estrada num zig zag, em uma dança que parecia coreografada.
Voltávamos da cerimônia de
certificação do Pronatec Indígena, ocorrido na TI Puyanawa, a primeira de um
total de três a ocorrer nesta última semana de maio nas Terras Indígenas
Puyanawa, Kaxinawá da Colônia 27 e Katukina/Kaxinawá. No veículo, levávamos de
carona as colegas do IFAC que nos reportavam o sucesso que esta experiência
estava causando, o que motivou o MEC a enviar um dos coordenadores nacionais do
programa para participar das cerimônias e, também, observar esta experiência.
Esta certificação foi a
parada final de uma caminhada começada ainda no início de 2015 com uma intensa
articulação entre FUNAI, IFAC, OPIAC e AMAAIAC. O que motivou a construção
desta experiência foi a necessidade de adequar este programa à realidade das
comunidades indígenas, interferindo diretamente nos preceitos pedagógicos e
curriculares do “cardápio” de capacitações que estavam sendo oferecidas às
comunidades no Acre.
Esta necessidade, mesmo que
intangível pela maioria, gritava-me aos ouvidos e achincalhava-me os
brios pedagógicos a cada novo relato que lia ou imagem que via destes cursos,
que vieram à esteira da necessidade de fomentar e fortalecer políticas
públicas de produção, gestão ambiental e territorialidade orientadas pelos
Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e, também, contribuir para a
implantação dos projetos de fortalecimento produtivo, como o já finalizado
PROACRE.
Com a experiência acumulada
e devidamente registrada de ações exitosas de formação de profissionais
indígenas no Acre na área de meio ambiente, saúde e educação, ficava claro que
esta capacitação técnica, mesmo que de curta duração e focalizada em um
componente específico, carecia de uma análise e adequação à luz deste acúmulo
curricular e pedagógico existente.
O interessante é que esta
necessidade também foi sentida pela diretoria responsável pelos cursos PRONATEC
na reitoria do IFAC, o que motivou este a procurar parcerias estratégicas para
se discutir este tema, o que fez com que houvesse aproximação com a FUNAI.
Não pretendo divagar por
conceitos pedagógicos ou fazer propaganda “chapa branca”, nem mesmo inflamar
egos, mas acredito ser interessante citar que este movimento do IFAC junto à
FUNAI propiciou o encadeamento de ações que contribuíram, em pouquíssimo tempo,
para o estabelecimento de parcerias estratégicas com organizações indígenas, com a definição e estruturação interna de núcleos do IFAC e construção de
parâmetros curriculares específicos para as comunidades indígenas.
GT interistitucional - Foto Jairo Lima |
A partir deste contato
iniciado pelo IFAC, rapidamente construíram-se pontes de comunicação e articulação
com organizações indígenas como a Associação do Movimento dos Agentes
Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), com a Organização dos Professores
Indígenas do Acre (OPIAC) e com a Associação de Artesãs e Artesãos do Vale do
Juruá (AAIVAJ). O resultado foi a criação de um GT interinstitucional formado
por estas organizações, o IFAC, a FUNAI e a Assessoria de Assuntos
Indígenas do Gabinete do Governador do Acre.
Assim, em uma só tacada, este
GT organizou e construiu propostas curriculares específicas para os cursos do
PRONATEC INDÍGENA, fomentou e pôs pressão para a criação dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros
e Indígenas (NEABI) dos Campi Cruzeiro do Sul e Tarauacá do IFAC e, ainda, deu
um tranco na agenda política do estado quanto à necessidade de se retomar
alguns processos que teimam na dormência a que estão submetidos já há alguns
anos, como os cursos de formação para professores indígenas e o reconhecimento
da categoria profissional dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AAFI).
Formadora Amanda Kaxinawá ensinando arte em miçanga para os homens Foto Assis Kaxinawá |
Vale destacar que durante o
processo de construção deste projeto piloto do PRONATEC INDÍGENA ficou clara a necessidade de se
agregar ao programa a possibilidade de participação de profissionais indígenas
que possuíssem formação e expertises que os
credenciassem como formadores.
Entre estes se destacaram os AAFI que já possuem formação completa, os
professores e os artesãos indígenas com experiência comprovada. Essa iniciativa,
além de potencializar o fator didático-pedagógico da formação, também veio ao
encontro da necessidade em reconhecer e valorizar estes profissionais e
mestres, de maneira a fortalecer a participação e o reconhecimento dos mesmos
nos projetos e no desenvolvimento da comunidade, diminuindo assim a visão do
“nawa que sabe tudo”. Alia-se esta participação de formadores indígenas com a
definição de que estes cursos - com exceção do de cooperativismo e associativismo - ocorreriam
dentro das próprias comunidades.
Turma Katukina, de agrofloresta - Foto IFAC |
Aula de cerâmica - Foto Assis Kaxinawá |
Uma vantagem que propiciou a
construção das propostas curriculares dos cursos foi o fato de que no Acre há
referências e materiais pedagógicos consolidados a partir das
experiências vivenciadas nos últimos vinte anos, através de projetos inovadores
como o Projeto de Autoria dos Índios do
Acre e o Projeto Pedagógico de
Formação de Agentes Agroflorestais Indígenas, ambos da Comissão Pró-Índio do
Acre (CPIAC); o saudoso Programa de
Formação de Lideranças, do Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA) e; das
experiências inovadoras como as desenvolvidas pela EMBRAPA nas TI’s Kaxinawá do
Nova Olinda e Puyanawa. Junte-se a estas experiências uma variedade de
materiais de apoio específicos produzidos junto às comunidades indígenas e
extrativistas acreanas.
Ao final dos trabalhos do GT
(que durou dois meses) estavam definidas as propostas de formação dos cursos:
agricultura familiar; piscicultura; agricultor orgânico; técnico em agrofloresta;
cooperativismo e associativismo; fruticultura e; artesão de artigos indígenas. Também foram
construídas as minutas de editais que possibilitaram a participação de
formadores indígenas e indigenistas com proficiência nos temas propostos. E por
fim, definida e disponibilizada toda a referência bibliográfica necessária para
os cursos.
Outras inovações foram: a
definição de que as capacitações não seria somente para os indígenas aldeados,
de forma a ser disponibilizada uma destas para aqueles que morassem em
ambiente urbano, sendo a escolhida a capacitação em cooperativismo e associativismo e;
o cronograma das aulas seriam construídos pelas comunidades participantes da
experiência, considerando suas especificidades.
Turma Shanenawa, de agricultura orgânica com equipe do IFAC - Foto IFAC |
Desde o início o projeto foi
muito bem aceito pelas comunidades escolhidas, que viram com bons olhos o fato
de que boa parte dos temas seriam trabalhados por seus próprios profissionais e
que esta formação seria na comunidade, evitando-se assim, além de gastos com
hospedagem e alimentação na cidade, a possibilidade de haver alto índice de
desistência dos cursos.
Assim, entre fevereiro e
abril de 2016, foram executadas as capacitações e felizmente,
apesar de desafios
que se mostraram na experiência – e não foram poucos – logrou-se êxito
esperado, superando mesmo as expectativas iniciais. Foi um tiro certeiro
dividir com as comunidades todo este processo. E foi possível observar o
desenvolvimento dos cursos através das matérias veiculadas e pelas inúmeras
imagens compartilhadas pelos alunos e professores nas redes sociais.
Solenidade da TI Colônia 27 - Foto Assis Kaxinawá |
O momento das certificações
também foi um evento que rompeu com as formalidades frias e protocolares tão
comuns em nossos “rituais de passagem”, onde gastamos um bom tempo de nossas
vidas na escolha das roupas que usaremos e somos obrigados a respirar o ar
carregado de perfumes exóticos doces e inebriantes, que sobrecarregam e
impregnam todo o ar viciado que sai dos aparelhos de ar condicionado. Dos
discursos monocórdios das autoridades em roupas cintadas. Do azucrinante
“click” do fotógrafo que sonha com o provento que virá com as imagens e que
para isso nos rouba a alma nas mais variadas poses e expressões.
As cerimônias ocorreram nas
comunidades, onde todos estavam à vontade e puderam extrapolar o conceito de
socialização, mesclando-se no balanço, pisadas e trejeitos das danças
tradicionais, onde todos de braços dados ou apoiando-se em ombros gentis, expressavam
uma alegria comum e despojada.
A sedução do ambiente e o
clima descontraído propiciaram interações muito positivas com alguns convidados
experimentando o rapé aplicado pelos caciques, que não levaram em conta – até
porque isso não importa – a “patente” do convidado. E foi assim.... FUUUUU! Com
o rapé saindo do curipe e entrando pelas narinas, aprumando a mente, limpando o
corpo e sintonizando as ideias.
Cantando para os yuxin - Foto IFAC |
A culminância destas
solenidades foi a inauguração da sede própria do IFAC Campus Tarauacá, onde todos os
parceiros e a comunidade indígena concluíram esta semana de forma
brilhante e onde, além dos discursos, foram entoadas canções indígenas para que
os yuxin sagrados abençoassem o local.
E assim passou a semana...
Nos Puyanawa todos se misturaram... - Foto Jairo Lima |
Um dos resultados imediatos
do programa foi a procura de outras terras indígenas que demandaram cursos do PRONATEC à FUNAI e
ao IFAC. Outro resultado positivo foi o início de novas
articulações visando a implantação de novos projetos que irão contribuir para a
ampliação e fortalecimento desta parceria institucional e comunitária. Um
exemplo desta ampliação vem tomando corpo na forma de três novos projetos:
registro da musicalidade indígena; extensão e pesquisa nas terras indígenas e;
o centro de idioma Hãtxa Kuin, que contará com a batuta de nosso querido
Prof.Dr Joaquim Maná Kaxinawá.
Para mim foi especial estar
numa destas certificações exatamente no dia em que os
Cantoria de aniversário nos Puyanawa - Foto Rainizia |
planetas completavam o
giro astrológico e zodiacal de minha chegada a este mundo, me propiciando uma
emoção ímpar ao ouvir uma linda canção e receber vários abraços apertados que,
além do verdadeiro sentimento fraternal, exalavam o doce aroma do jenipapo com
urucum, tão conhecido e apreciado por mim desde a primeira vez que o senti há vinte anos.
Retorno à minha rotina
revigorado e feliz, com uma sensação boa e entendendo perfeitamente a mensagem
de um lindo adágio Ashaninka: Irooperori
aseiki kametha!!! (O melhor da sorte é estar feliz).
Jairo Lima
*Xinã bena = ideia nova
Nossa que trabalho excelente e acredito que com essas parcerias, todos os envolvidos tivereram ótimas experiências e troca de conhecimento, proporcionando aos educados envolvidos um excelente aprendizado. Espero que essa parceria e o trabalho pedagógico desenvolvido se propague por outras comunidades do mundo indígena. E realmente...o melhor da sorte é estar feliz...linda frase.Boa semana!
ResponderExcluirNossa que maravilha! Esse envolvimento de todos para que a cultura indígena não tenha fronteiras para aprendizagem e conhecimento. Parabéns Jairo, realmente essa felicidade, tenho certeza, está na sua alma!
ResponderExcluirBjs amigo! Que Deus te abençoe grandemente, pois seu coração é maior que nossa floresta!
Muito obrigado, fico feliz e incentivado pelos comentários de vocês.
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