Prof Ibã na exposição "Sounds of Ligth", em Paris |
Olhei
para o céu. As estrelas brilhavam numa intensidade que para mim era ofuscante.
O cricrilar reverberava em diferentes tonalidades facilmente perceptíveis para
meus ouvidos de músico. A noite estava fria, mais fria que o normal para aquela
época do ano, mas a brisa trazia um aroma de almíscar que parecia emanar da
floresta ao redor. Um barulho me chamou a atenção e, quando olhei, nada mais
era que um sapo cururu me encarando indiferente a partir do chão úmido e cheio
de lodo. Sorri para ele, mas não me deu atenção. Ainda trôpego, voltei para a
pequena cabana onde meus dois companheiros me esperavam para continuarmos a
jornada mística que só terminaria quando o céu fizesse sua metamorfose sideral,
indo do negrume estrelado para o escarlate da aurora que prenunciava um novo
renascer para o mundo. O txana Ibã
entoou mais uma canção de nixi pae, chamando
de volta a pressão do cipó, enquanto o Tene
manuseava calmamente uma folhagem cheirosa que vez ou outra passava em volta da
minha cabeça, me enlaçando numa espécie de teia etérea e energética. A “pressão”
subiu ao ponto de sentir meus tímpanos tampando. O véu se abriu e os encantos
saíram da floresta para nos visitar...
É
assim que lembro a primeira vez que eu e o Prof Ibã bebemos o huni juntos. Era o ano de 1998 e, apesar
de já nos conhecermos a alguns meses, para mim este foi nosso primeiro e
verdadeiro “encontro”, e que selaria definitivamente o caminho por onde os
ventos sagrados me conduziriam dali por diante.
Esta
lembrança me veio enquanto lia a notícia de que ele foi indicado para receber o
prêmio Pipa 2016, um dos mais relevantes prêmios para as artes visuais. Sua
indicação é resultado de anos de dedicação e produção de desenhos e pinturas inspiradas
em suas crenças tradicionais e pelas visões que a sagrada bebida lhe
proporciona.
Depois
de anos lecionando, este professor decidiu se dedicar ao seu trabalho
artístico. Movimento este que tomou corpo ao longo dos anos e consolidou-se com
a criação do coletivo MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuĩ.
Ibã
é meu xará, pois meu kena kuĩ (nome
verdadeiro), dado em 2002 por ele e pelo saudoso pajé e mestre Inka Muru, é
Nawa Ibã.
Gosto
e respeito muito este txai, não só pelas inúmeras vezes em que comungamos
experiências astrais, explorando a imensidão da aldeia sideral, mas também pelo
incentivo, o trabalho e a paciência que ele sempre teve junto aos mais jovens,
ensinando e propagando as canções sagradas do nixi pae e explicando seu significado. Poucos sabem, mas muito do
que é cantado nas chamadas “rodas de cipó” por este Brasil afora - por vezes
embalados por violões - é de autoria ou foi difundido por este professor.
Ibã preparando mural para exposição na Bienal de SP - Foto acervo Ibã |
Nesta
crônica não vou me ater ao seu trabalho em artes visuais, isto pode ser
conferido com muito mais conteúdo e propriedade na página do Prêmio Pipa e no vídeo "O Espírito da Floresta" (clique aqui e aqui), os quais recomendo. Também não vou enumerar e descrever
as várias publicações de sua autoria, ou as inúmeras apresentações
internacionais ou, ainda, as centenas de textos e artigos em que este professor
é citado.
Prof Ibã durante palestra na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas UFBA |
Quero
me ater ao talento-mor que para mim define sua arte, sua personalidade, o seu
“ser”. Este talento é o de ser o melhor txana
que eu já tive o prazer de ouvir. Para quem ainda não sabe, txana é como os Huni Kuin (Kaxinawá) designam
o cantor que entoa as cantigas de nixi
pae, ou seja, as canções sagradas executadas quando se ingere o huni (ayahuasca). Ibã possui uma
percepção muito apurada das fases do ritual tradicional, como o momento de
chamar a força, de abrir para os “encantos da floresta”, de baixar a força,
chamar a força de volta, etc. Tudo isso executado através de um único
instrumento: a voz.
Ao
escrever a sentença acima garanto que posso até “ouvir”, ou seria “ver” o
protesto mudo de algumas mentes que estão lendo este texto ou ainda que ouviram
de alguém o que aqui afirmei. Escuto até as perguntas inevitáveis: e porque você acha isso? Os que usam
instrumentos não são txana?
Ibã de "uniforme" e pintura tradicional |
Para
mim, que pela mercê divina fui agraciado e pude desenvolver o dom da música, e
tive a oportunidade de ouvir muitos txana,
destes muitos que já partiram para outra dimensão, responder esta indagação não
é tão complicado. O timbre de voz, a respiração, os tempos, a síncope, os
contratempos, são perfeitamente usados pelo Ibã. Pude passar muitas horas
estudando as gravações de suas performances, além, é claro, de ter sido
conduzido muitas vezes por ele ao cosmos ou às profundezas da floresta sideral
através de suas cantorias.
Quando
“chega a força”, descortinam-se à nossa frente as cenas encantadas com as
pinturas tradicionais saltando-nos aos olhos como abertura dos mistérios que se
anunciam. Após um silêncio total, nossos sentidos se abrem para a natureza,
mesclando e separando ao mesmo tempo todos os sons ao redor onde o cricrilar se
sobressai. É neste momento que uma voz vem surgindo como se viesse de todos os
lugares, preenchendo o ambiente e nos fazendo respirar em sua cadência. Nosso
espírito se liberta e, então, nós e nossas “mirações” passam a se mover no
embalo e no compasso cósmico destas canções, tendo somente a voz como guia. Os seres
encantados e os gênios da natureza então nos visitam através da névoa que se
dissipa, sempre sob o comando da voz que, em dado momento, nos dá a impressão
de estar saindo de dentro de nós. Estes encantados, em forma de animais e seres
desconhecidos, vem e vão, ora nos “falando algo”, ora nos dando intuições que
tudo nos dizem. De repente, a voz para e ouve-se a saudação HAUX! Shóóóó... Sobressaltamo-nos
como se fôssemos uma pequena folha soprada sobre um lago de ondas sonoras...o
silêncio...e novamente aquela voz, ora mais baixa, ora mais alta reaparece, em
uma nova forma transmutada em uma nova canção entoada, abrindo novas cenas, nos
levando mais alto e mais longe... hayra hayra hê hê...
No
ritual tradicional Huni Kuĩ - assim
como em qualquer ritual sério - as canções não são
entoadas a esmo por serem
mais agradáveis harmonicamente. Cada canção é executada de acordo com o
“mistério” ao qual o ritual se destina e também ao tipo de huni utilizado. É importante citar que cada povo indígena tem
diferentes tipos de ayahuasca, resultado
de diferentes tipos de preparação e ingredientes agregados ao cipó e à folha,
que são a base de cozimento da bebida. Posso aqui citar rapidamente alguns
tipos mais conhecidos entre os Huni Kuĩ (Kaxinawá) e que pude aprender e
experimentar: baka huni (cipó do
peixe); shawã huni (cipó da arara); shane huni (cipó do “passarinho cor azul”)
e o ni huni (cipó da floresta). Todos
estes tem diferentes “graus”, ou seja, são mais ou menos potentes e específicos
para certos tipos de rituais.
Na aldeia, espaço de aprendizagem |
É
isso: cipó, voz e floresta! Sem timbres de violão ou de rufar de tambores, que
continuam ecoando em nossos sentidos mesmo depois de cessarem suas execuções e
acordes, nos dando a impressão de estarmos “dentro de algo” fechado e por vezes
nos deixando só, ao final da canção, nos soltando sem muita preparação para o
mundo e os sons ao redor.
Claro
que as canções embaladas por instrumentos são lindas e tem seu “mistério” e
suas encantarias. Eu também gosto muito e passei outro bocado de tempo, ao
longo dos anos, tocando e estudando as origens do ritmo e dos sincretismos usados
pelos ayahuasqueiros e trovadores indígenas (a nova geração de txana). Tive a oportunidade de tocar,
cantar e navegar nos mistérios junto com grandes mestres nessa arte de cantoria
e sobre os quais escreverei no futuro, pois também merecem.
Trabalhando na tela txain puke dua |
Mas
voltando ao prof. Ibã, ressalto uma característica que para mim é sua maior
virtude: a humildade. Este professor não se considera um “pajé”, não se
apresenta como “guardião” disso ou daquilo. Ele sempre se apresentou como um
artista, professor e txana, e ponto! Sempre
fez o possível para que o reconhecessem como tal, sem aumentá-lo ou diminuí-lo
perante as demais pessoas. É uma pessoa acessível, de conversa leve e agradável
que recebe o visitante em sua casa, não fazendo distinção social ou cultural,
ou seja, como ele mesmo me disse uma vez: todo mundo é parente!
Para
mim, conhecê-lo foi, é e será sempre um motivo de alegria e credito a ele e ao “yuxiã” Tene boa parte de minha decisão
de ter escolhido o caminho do indigenismo. Fico saudoso com a lembrança de uma
noitada de cipó na aldeia Cachoeira, na terra indígena Alto Rio Jordão no ano
de 2005, quando estive, juntamente com estas duas figuras, explorando a
imensidão do infinito, guiados pela “voz em que tudo está”, deitado em nossas
redes com a luz bruxuleante da lamparina refletindo nas paredes de paxiubão e
no teto de palha da pequena casinha às margens do sagrado Yuraiá (rio Jordão).
O som dos animais e insetos noturnos completando a trilha sonora encantada e a
luz da lua e das estrelas entrando pela porta e janelas.
Jan Silbert na casa do Ibã, em Tarauacá |
Todo
este sentimento e todas estas lembranças coincidem com a notícia que li sobre a
premiação e por um telefonema recente que ele me fez, antes de iniciar mais uma
viagem para suas agendas pelo Brasil e pelo mundo. Como sempre, prometi ir
visitá-lo em sua casa na cidade de Tarauacá e quem sabe, tomarmos um cipó.
Com o Sri Prem Baba |
Poderia
aqui escrever várias páginas sobre nossas “explorações” místicas, as aulas que
o
Olho
sua timeline hoje e me deparo com uma foto sua sorrindo e apresentando um certo
Sri Prem Baba que ele visitou há alguns dias atrás quando passou por Brasília.
Sem perceber, um sorriso se forma em meu rosto ao imaginar este guru sendo
apresentado à grande yube (jiboia) encantada saindo das palavras místicas
entoadas em forma de canção pelo
Ibã. Olho na foto seguinte e o vejo na sessão
de gravação no estúdio do grupo Mawaca.
Eu e Ibã, 1998 |
Para
os interessados que estiverem em São Paulo, o professor Ibã estará dando uma
palestra no MASP no dia 07 de junho. Vale a pena ir, ouvir e aprender um pouco.
Quem sabe a energia deste txana toque seus corações e vocês venham a trilhar
este caminho pelo qual enveredei e que não me arrependo.
Termino
aqui esta postagem, aproveitando para esclarecer alguns termos citados no
texto. Para os Huni Kuĩ são três os “dons” que a pessoa pode desenvolver e que
estão relacionados ao uso não só do cipó, mas, também das demais “medicinas” e
tratamentos tradicionais. O indivíduo pode se tornar um txana (cantor de nixi pae), um dauya
(que utiliza a medicina da floresta) ou um yuxiã
(que conversa com espírito).
Muda
não txai! Fica pra sempre assim viu? Que a saúde e prosperidade continuem a
cruzar teu caminho. Parabéns pelo prêmio, você merece este e muito mais.
Boa semana a tod@s!
Boa semana a tod@s!
Jairo Lima
Realmente, uma pessoa maravilhosa esse grande homem. Ótimo texto!
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