segunda-feira, 6 de junho de 2016

IBÃ HUNI KUĩ: CIPÓ, CANTO E ARTE QUE VIERAM DO YURAIÁ

Prof Ibã na exposição
"Sounds of Ligth", em Paris 
Olhei para o céu. As estrelas brilhavam numa intensidade que para mim era ofuscante. O cricrilar reverberava em diferentes tonalidades facilmente perceptíveis para meus ouvidos de músico. A noite estava fria, mais fria que o normal para aquela época do ano, mas a brisa trazia um aroma de almíscar que parecia emanar da floresta ao redor. Um barulho me chamou a atenção e, quando olhei, nada mais era que um sapo cururu me encarando indiferente a partir do chão úmido e cheio de lodo. Sorri para ele, mas não me deu atenção. Ainda trôpego, voltei para a pequena cabana onde meus dois companheiros me esperavam para continuarmos a jornada mística que só terminaria quando o céu fizesse sua metamorfose sideral, indo do negrume estrelado para o escarlate da aurora que prenunciava um novo renascer para o mundo. O txana Ibã entoou mais uma canção de nixi pae, chamando de volta a pressão do cipó, enquanto o Tene manuseava calmamente uma folhagem cheirosa que vez ou outra passava em volta da minha cabeça, me enlaçando numa espécie de teia etérea e energética. A “pressão” subiu ao ponto de sentir meus tímpanos tampando. O véu se abriu e os encantos saíram da floresta para nos visitar...
É assim que lembro a primeira vez que eu e o Prof Ibã bebemos o huni juntos. Era o ano de 1998 e, apesar de já nos conhecermos a alguns meses, para mim este foi nosso primeiro e verdadeiro “encontro”, e que selaria definitivamente o caminho por onde os ventos sagrados me conduziriam dali por diante.
Esta lembrança me veio enquanto lia a notícia de que ele foi indicado para receber o

prêmio Pipa 2016, um dos mais relevantes prêmios para as artes visuais. Sua indicação é resultado de anos de dedicação e produção de desenhos e pinturas inspiradas em suas crenças tradicionais e pelas visões que a sagrada bebida lhe proporciona.
Depois de anos lecionando, este professor decidiu se dedicar ao seu trabalho artístico. Movimento este que tomou corpo ao longo dos anos e consolidou-se com a criação do coletivo MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuĩ.
Ibã é meu xará, pois meu kena kuĩ (nome verdadeiro), dado em 2002 por ele e pelo saudoso pajé e mestre Inka Muru, é Nawa Ibã.
Gosto e respeito muito este txai, não só pelas inúmeras vezes em que comungamos experiências astrais, explorando a imensidão da aldeia sideral, mas também pelo incentivo, o trabalho e a paciência que ele sempre teve junto aos mais jovens, ensinando e propagando as canções sagradas do nixi pae e explicando seu significado. Poucos sabem, mas muito do que é cantado nas chamadas “rodas de cipó” por este Brasil afora - por vezes embalados por violões - é de autoria ou foi difundido por este professor.
Ibã preparando mural para exposição na Bienal de SP - Foto acervo Ibã
Nesta crônica não vou me ater ao seu trabalho em artes visuais, isto pode ser conferido com muito mais conteúdo e propriedade na página do Prêmio Pipa e no vídeo "O Espírito da Floresta" (clique aqui e aqui), os quais recomendo. Também não vou enumerar e descrever as várias publicações de sua autoria, ou as inúmeras apresentações internacionais ou, ainda, as centenas de textos e artigos em que este professor é citado.
Prof Ibã durante palestra na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
UFBA
Quero me ater ao talento-mor que para mim define sua arte, sua personalidade, o seu “ser”. Este talento é o de ser o melhor txana que eu já tive o prazer de ouvir. Para quem ainda não sabe, txana é como os Huni Kuin (Kaxinawá) designam o cantor que entoa as cantigas de nixi pae, ou seja, as canções sagradas executadas quando se ingere o huni (ayahuasca). Ibã possui uma percepção muito apurada das fases do ritual tradicional, como o momento de chamar a força, de abrir para os “encantos da floresta”, de baixar a força, chamar a força de volta, etc. Tudo isso executado através de um único instrumento: a voz.
Ao escrever a sentença acima garanto que posso até “ouvir”, ou seria “ver” o protesto mudo de algumas mentes que estão lendo este texto ou ainda que ouviram de alguém o que aqui afirmei. Escuto até as perguntas inevitáveis: e porque você acha isso? Os que usam instrumentos não são txana?
Ibã de "uniforme" e pintura tradicional
Para mim, que pela mercê divina fui agraciado e pude desenvolver o dom da música, e tive a oportunidade de ouvir muitos txana, destes muitos que já partiram para outra dimensão, responder esta indagação não é tão complicado. O timbre de voz, a respiração, os tempos, a síncope, os contratempos, são perfeitamente usados pelo Ibã. Pude passar muitas horas estudando as gravações de suas performances, além, é claro, de ter sido conduzido muitas vezes por ele ao cosmos ou às profundezas da floresta sideral através de suas cantorias.
Quando “chega a força”, descortinam-se à nossa frente as cenas encantadas com as pinturas tradicionais saltando-nos aos olhos como abertura dos mistérios que se anunciam. Após um silêncio total, nossos sentidos se abrem para a natureza, mesclando e separando ao mesmo tempo todos os sons ao redor onde o cricrilar se sobressai. É neste momento que uma voz vem surgindo como se viesse de todos os lugares, preenchendo o ambiente e nos fazendo respirar em sua cadência. Nosso espírito se liberta e, então, nós e nossas “mirações” passam a se mover no embalo e no compasso cósmico destas canções, tendo somente a voz como guia. Os seres encantados e os gênios da natureza então nos visitam através da névoa que se dissipa, sempre sob o comando da voz que, em dado momento, nos dá a impressão de estar saindo de dentro de nós. Estes encantados, em forma de animais e seres desconhecidos, vem e vão, ora nos “falando algo”, ora nos dando intuições que tudo nos dizem. De repente, a voz para e ouve-se a saudação HAUX! Shóóóó... Sobressaltamo-nos como se fôssemos uma pequena folha soprada sobre um lago de ondas sonoras...o silêncio...e novamente aquela voz, ora mais baixa, ora mais alta reaparece, em uma nova forma transmutada em uma nova canção entoada, abrindo novas cenas, nos levando mais alto e mais longe... hayra hayra hê hê...
No ritual tradicional Huni Kuĩ  - assim como em qualquer ritual sério - as canções não são
Na aldeia, espaço de aprendizagem
entoadas a esmo por serem mais agradáveis harmonicamente. Cada canção é executada de acordo com o “mistério” ao qual o ritual se destina e também ao tipo de huni utilizado. É importante citar que cada povo indígena tem diferentes tipos de ayahuasca, resultado de diferentes tipos de preparação e ingredientes agregados ao cipó e à folha, que são a base de cozimento da bebida. Posso aqui citar rapidamente alguns tipos mais conhecidos entre os Huni Ku
ĩ  (Kaxinawá) e que pude aprender e experimentar: baka huni (cipó do peixe); shawã huni (cipó da arara); shane huni (cipó do “passarinho cor azul”) e o ni huni (cipó da floresta). Todos estes tem diferentes “graus”, ou seja, são mais ou menos potentes e específicos para certos tipos de rituais.
É isso: cipó, voz e floresta! Sem timbres de violão ou de rufar de tambores, que continuam ecoando em nossos sentidos mesmo depois de cessarem suas execuções e acordes, nos dando a impressão de estarmos “dentro de algo” fechado e por vezes nos deixando só, ao final da canção, nos soltando sem muita preparação para o mundo e os sons ao redor.
Claro que as canções embaladas por instrumentos são lindas e tem seu “mistério” e suas encantarias. Eu também gosto muito e passei outro bocado de tempo, ao longo dos anos, tocando e estudando as origens do ritmo e dos sincretismos usados pelos ayahuasqueiros e trovadores indígenas (a nova geração de txana). Tive a oportunidade de tocar, cantar e navegar nos mistérios junto com grandes mestres nessa arte de cantoria e sobre os quais escreverei no futuro, pois também merecem.
Trabalhando na tela txain puke dua
Mas voltando ao prof. Ibã, ressalto uma característica que para mim é sua maior virtude: a humildade. Este professor não se considera um “pajé”, não se apresenta como “guardião” disso ou daquilo. Ele sempre se apresentou como um artista, professor e txana, e ponto! Sempre fez o possível para que o reconhecessem como tal, sem aumentá-lo ou diminuí-lo perante as demais pessoas. É uma pessoa acessível, de conversa leve e agradável que recebe o visitante em sua casa, não fazendo distinção social ou cultural, ou seja, como ele mesmo me disse uma vez: todo mundo é parente!
Para mim, conhecê-lo foi, é e será sempre um motivo de alegria e credito a ele e ao “yuxiã” Tene boa parte de minha decisão de ter escolhido o caminho do indigenismo. Fico saudoso com a lembrança de uma noitada de cipó na aldeia Cachoeira, na terra indígena Alto Rio Jordão no ano de 2005, quando estive, juntamente com estas duas figuras, explorando a imensidão do infinito, guiados pela “voz em que tudo está”, deitado em nossas redes com a luz bruxuleante da lamparina refletindo nas paredes de paxiubão e no teto de palha da pequena casinha às margens do sagrado Yuraiá (rio Jordão). O som dos animais e insetos noturnos completando a trilha sonora encantada e a luz da lua e das estrelas entrando pela porta e janelas.
Jan Silbert na casa do Ibã, em Tarauacá
Todo este sentimento e todas estas lembranças coincidem com a notícia que li sobre a premiação e por um telefonema recente que ele me fez, antes de iniciar mais uma viagem para suas agendas pelo Brasil e pelo mundo. Como sempre, prometi ir visitá-lo em sua casa na cidade de Tarauacá e quem sabe, tomarmos um cipó.
Com o Sri Prem Baba
Poderia aqui escrever várias páginas sobre nossas “explorações” místicas, as aulas que o
vi ministrando a jovens txana ou sobre todas as nuances e desempenho musical que me fazem crer ser este o txana mais bem preparado entre seus pares. No entanto, acredito que estas poucas linhas já são por si só um registro precioso desta figura que merece todos os elogios, que deve ser mais respeitado e honrado por seus pares e que muito poderia contribuir com o meio acadêmico acreano. Vale citar que na cidade onde o Ibã mora, a comunidade dos “nawa” não faz ideia de quem é aquele índio que vive desenhando e recebendo gringos, artistas como o pintor Jan Siebert e outras pessoas "estranhas" em casa.
Olho sua timeline hoje e me deparo com uma foto sua sorrindo e apresentando um certo Sri Prem Baba que ele visitou há alguns dias atrás quando passou por Brasília. Sem perceber, um sorriso se forma em meu rosto ao imaginar este guru sendo apresentado à grande yube (jiboia) encantada saindo das palavras místicas entoadas em forma de canção pelo
Eu e Ibã, 1998
Ibã. Olho na foto seguinte e o vejo na sessão de gravação no estúdio do grupo Mawaca.
Para os interessados que estiverem em São Paulo, o professor Ibã estará dando uma palestra no MASP no dia 07 de junho. Vale a pena ir, ouvir e aprender um pouco. Quem sabe a energia deste txana toque seus corações e vocês venham a trilhar este caminho pelo qual enveredei e que não me arrependo.
Termino aqui esta postagem, aproveitando para esclarecer alguns termos citados no texto. Para os Huni Kuĩ são três os “dons” que a pessoa pode desenvolver e que estão relacionados ao uso não só do cipó, mas, também das demais “medicinas” e tratamentos tradicionais. O indivíduo pode se tornar um txana (cantor de nixi pae), um dauya (que utiliza a medicina da floresta) ou um yuxiã (que conversa com espírito).
Muda não txai! Fica pra sempre assim viu? Que a saúde e prosperidade continuem a cruzar teu caminho. Parabéns pelo prêmio, você merece este e muito mais.
Boa semana a tod@s!
Jairo Lima

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