Por: Jairo Lima
“Passa-se um ano, novembro de 2017, numa roda de conversa entre sertanejos, sob o céu estrelado de Quiserademim, sertão do Ceará, seu Ariano Suçuarana, sábio ancião daquela comunidade camponesa, com seu afiado canivete corta troços de rapadura e distribui para os amigos em volta poderem degustar do doce alimento. E comenta: — Que povo diferente esses cientistas nacionais e estrangeiros. Pra conhecer o sabor da Rapadura, não basta provar?”O excerto acima é o arremate do texto publicado pelo professor Juarez Duarte no Jornal Grande Bahia, sob o título ‘1ª Conferência Indígena da Ayahuasca. Ayahuasca e rapadura’*, além de bastante cômico, foi de uma genialidade ímpar ao aludir os contrastes entre a busca acadêmica/científica por explicações e o apreço/conhecimento derivado do simples fato de apreciar e ‘provar o sabor’ daquilo que se propôs a estudar/pesquisar.
Muita água passou por baixo da ponte nessas duas semanas que se passaram, desde que publiquei o último texto, cedendo lugar à querida Dedê Maia, que nos apresentou seu documentário Xinã Bena Beisikit Xarabu, que estreou em Rio Branco no último dia 19 de novembro e tem sua premiére indígena marcada para ocorrer durante a Conferência Indígena sobre ayahuasca, entre 13 e 17 de dezembro.
A principal preocupação no processo de organização da 1a Yubaká Hayrá é, sem dúvidas, garantir uma boa hospedagem e alimentação para todos os presentes. Afinal, nosso ‘centro de convenções’ é o mais adequado para se discutir o tema: uma aldeia indígena. Trata-se da ‘arena’, espaço de reuniões, da terra do Povo Puyanawa.
Mensagens ‘inbox’ no Facebook, ‘torpedos’ e mensagens de ‘zap zap’ chegam aos montes, vindas de txais que confirmam suas participações. Da mesma forma, acrescidos os emails, outros tantos de pesquisadores e interessados no tema inscrevem-se em busca de uma das vinte vagas disponíveis para observadores.
Uma grande liderança, que por motivos da discrição necessária para certos assuntos omito o nome, mandou-me uma mensagem de voz que resume bem o espírito desse encontro:
- Jairo… que legal, cara, essa conferência da ayahuasca dos povos indígenas. Isso vai ser bom para discutirmos nossas histórias, pois é preciso termos uma conversa interna entre nós, para depois a gente ter uma participação mais global, pois aquela história que rolou ali em Rio Branco, o encontro mundial da ayahuasca foi uma Torre de Babel, onde não se aproveitou quase nada dentro de um evento tão importante quanto esse, e muito interessante. Esse nosso encontro é isso: uma discussão do futuro.
Então é isso: nós estamos fazendo um encontro da nossa medicina, da medicina
mais importante de nossa história, de onde vem nossos cantos, de onde vem nossa cura, de onde vem toda nossa sabedoria e nossa ancestralidade indígena(...).
Perfeito! É isso mesmo: um papo mais interno para se entender essa neura mundial em buscar ‘patentear’, através de vários dispositivos formais e normativos, o direito de usar (em todas suas formas) e circular com esse ‘chá’ que, para alguns, é uma droga de tratamento e, para outros (maioria), é a porta do mundo espiritual.
Se pararmos para observar, pesquisar e analisar todo o universo atual em que a ayahuasca atua, servindo a diferentes objetivos e interesses (do financeiro ao altruísmo), podemos facilmente ver que a beberagem ritualística outrora relegada a espaços específicos da mística indígena, hoje ocupa um lugar de protagonismo em diferentes espaços. Por mais incrível que possa parecer, de tão apreciada e buscada, a profusão de ‘pajés’, curadores xamãs, terapeutas e o escambau a quatro surgido nos últimos quinze anos é de assombrar.
Terapias, rituais, cultos, dietas, vivências, tratamentos e outra miríade de termos são usados por pessoas e comunidades sérias – e por um bocado de charlatões-, para designar algo que, de maneira natural e sem muitos dogmas já era de uso dos povos originais. O ruim nessa farofa toda é que a coisa tende a tomar, por vezes, caminhos desagradáveis e verdadeiras bizarrices disfarçadas de ‘esoterismo’ ou ‘alternativo’.
Até mesmo a feitura e consumo da ayahausca tomou rumos totalmente adversos e, se voltássemos uns cinquenta anos atrás e falássemos para um velho pajé, ou mesmo um padrinho (de verdade, não esses monte de fakes que tem por aí) que em poucos anos adiante teríamos ayahuasca em gel, em comprimidos, em forma de rapé, utilizados por ‘terapeutas espirituais’ e que, ainda, um bocado de gente se ‘fantasiaria’ de índio para melhor ser aceito pelas comunidades espirituais, certamente, essas ilustres personagens de nosso passado recente achariam que, no mínimo, teríamos fumado ‘algo’ estragado ou, ainda, comido algo estragado que nos fez ter alucinações.
Mas o ‘hoje’, que nada mais é que o ‘futuro de ontem’, é ainda mais interessante e bizarro do que poderia imaginar a mente de qualquer um que tenha memória para voltar tantos anos ao passado. E o que me me chama mais a atenção nessa miscelânea toda é o espaço ‘mitológico’ , caricato, fantasioso e por vezes estereotipado ocupado pelos povos indígenas. Creio que isso seja em decorrência de imagens construídas por leitores de Carlos Castañeda que, ou se tornaram escritores, ou resolveram trilhar algum caminho espiritual, vindo a tornar-se referência ou fundadores de alguma linha de desenvolvimento espiritual.
Presente em hinos, pontos de umbanda e de ‘umbandaime’, canções de ayahuasca e outras tantas variantes, o indígena por vezes parece algo vindo de outro plano sideral ou anímico onde difere das demais ‘feras da natureza’ somente por algumas características. Logicamente, que, fugindo totalmente da seara espiritual e indo diretamente para lógica festiva de massa expressas nas diferentes festividades Pindorama afora, como a festa dos Bois de Parintins, o indígena nada mais é que uma figura mitológica cheia de luxúria e ‘sabedoria primitiva’.
Até mesmo nesse circuito xamânico que, por vezes, alguns indígenas aventuram-se como difusores da cultura de seus povos, fugir do estereótipo idealizado pela cultura dominante. É visível que, apesar de ainda bem discreto, o espaço dos povos indígenas vem a cada ano crescendo e ocupando um lugar de destaque.
Nos últimos anos, vem crescendo a necessidade de se discutir sobre esse ‘vetor’ gerador de todo esse ‘bum’ místico, terapêutico e, porque não assinalar, químico, representado pelo aumento do interesse e, por conseguinte, do consumo de ayahuasca em todo o mundo. Claro que esse aumento incide também sobre as comunidades indígenas, principalmente no Peru e no Acre, com o aumento exponencial do chamado ‘turismo xamânico’ e, também, por produtos complementares ao uso ritualístico de seu uso, no caso, as chamadas ‘medicinas’ indígenas como rapé, sananga, kambo e outros (juro que não deixo de achar interessante ver hoje em dia o rapé sendo usado de maneira tão constante e irresponsável).
Como indiquei no texto passado, um encontro como esse que irá ocorrer em dezembro é importante para estabelecer a pedra fundamental de um processo que certamente irá consolidar-se nos anos que virão: o estabelecimento do espaço indígena de discussão sobre o tema. Certamente que não se prevê esticar isso para os espaços paradisíacos e lisérgicos de Ibiza ou, ainda, exóticos, como Japão e países do oriente distante.
Daiara Tukano, em uma de nossas conversas, cutucou-me, dizendo que às vezes parece que o Acre é o ‘centro do mundo’. Repliquei a cutucada dizendo que, em minha opinião o Acre é o centro do mundo - claro que isso no que concerne à raiz e ao berço das chamadas culturas ayahuasqueiras. Por isso, vejo com naturalidade esse processo iniciado pelas organizações e comunidades indígenas para realizar essa primeira conferência sobre ayahuasca.
Será um sucesso? - Claro que, só pelo fato de ter sobre o mesmo teto, em uma comunidade, figuras como Benki Ashaninka, Biraci Brasil, Shayna Puyanawa, Ixã Huni Kuin, Isaka Huni Kuin, Nixiwaka Yawanawá e outros ‘figurões’ discutindo juntamente com suas comunidades temas tão importantes quanto os que estão sendo propostos, é, de longe, um sucesso total.
Inicialmente o evento previa oitenta participantes e foi com grande surpresa que vimos esse número chegar a duzentos. Surpresa? - Claro! Desespero? - Nunca! - Afinal, quando nesta semana começaram a chegar notícias de que teríamos muitos mais indígenas e visitantes do que planejado, e, em dado momento, um dos organizadores perguntou: - Mas, como daremos conta? - A resposta do querido amigo, liderança (e meu chefe) Luiz Valdenir Nukini foi perfeita: Se vier mais gente o que faremos? Simples poremos mais farinha na farofa, água no feijão e no caldo de peixe; Poremos mais uns pregos para caber mais redes; poremos mais troncos para o povo sentar. O importante é que todos são bem vindos, que todos cabem nessa casa, que sua presença é importante.
!!!
Perfeito, não?
O que sei, caros leitores, é que eu já organizei meu equipamento e acamparei em qualquer pé de árvore que couber. Não perderia de jeito nenhum um evento desses, afinal, como bem cita o magnífico texto do professor Juarez: a rapadura é doce mas não é mole…
Boa semana a tod@s!
Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.
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Créditos das imagens: Imagem 1 - Mardilson Torres; Imagem 2 - Diana 'Yaka' Paris; Imagem 3 - Edilene Sales Huni Kuin; Imagem 4 - Hushahu Yawanawá.
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