Por: Raial Orotu Puri
Marabá é um poema publicado em 1851 pelo poeta Gonçalves Dias (1823-1864), no livro Últimos Cantos. Escrito em plena época do Romantismo, o poema tem um viés claramente nacionalista, aonde o indígena é exaltado como símbolo da brasilidade. A índia eu-lírico do poema é uma ‘marabá’, isto é, mestiça. Seu nome não é citado nos 54 versos, que, por outro lado, se dedicam a descrever sua aparência: através deles, descobre-se que ela tem cabelos cacheados, olhos verdes e tez branca. Tais características fazem com que a moça seja rejeitada, posto que ela não possui nenhum dos ideais de beleza que apreciados por seu povo.
Marabá é uma palavra do tupi-guarani que pode ser traduzida como inadequado, defeituoso, impróprio, diferente. É também uma palavra usada para reporta-se aos mestiços, filhos da mistura entre índios e brancos, razão pela qual são considerados imperfeitos ou impuros, desde a perspectiva da cultura indígena.
Antônio Gonçalves Dias foi poeta, advogado, jornalista e teatrólogo brasileiro. Considerado expoente do Romantismo no Brasil, sua obra se consagrou como precursora do ‘indianismo’, aonde a figura indígena é louvada e retratada como o ideal de humanidade. Entre seus poemas mais famosos, estão ‘Canção do Exílio’ e ‘I-Juca Pirama’. Era maranhense, e filho de uma união não oficial entre um comerciante português e uma mestiça. Morreu em 1864, no naufrágio do navio Ville de Boulogne, no qual retornava moribundo da Europa depois de um infrutífero tratamento de saúde.
Recordo-me de ter lido este poema pela primeira vez no ensino médio, e me lembro da tristeza que eles me causaram à época. Era uma tristeza que não estava necessariamente correlacionada à mim, mas ao fato do quanto me pareceu sofrida a existência daquela jovem, condenada ao isolamento por um “crime” do qual não era culpada, isto é, o fato de ser fruto de uma união entre um(a) branco(a) e um(a) indígena.
A Marabá de Gonçalves Dias voltou a ocupar meu pensamento nos últimos tempos, em virtude de um estranho – e tristíssimo – movimento que parece estar se desenhando dentre as fileiras do movimento indígena, e que parte não de fora, de onde os ataques sempre vieram e vem, mas desde o lado de dentro, causando divisão e implodindo nossa capacidade de resistência.
Sei bem que fazer essa reflexão aqui na Amazônia pode parecer algo descolado e pouco profundo. Aqui, de fato, graças a um maior isolamento, e um tempo bem posterior de ‘contato’, os povos originários mantiveram-se relativamente a salvo do horror vivido pelos povos que estavam na linha de frente da invasão, ou na rota das Bandeiras. Relativamente... pois o Norte também tem a sua cota de índias pegas no laço e crianças tiradas do seio da família em tenra idade.
Em todo caso, a realidade do Norte do país é ainda muito diferente daquilo que viveram os povos originários que habitam o litoral do Nordeste e as regiões sul, sudeste e centro-oeste. Embora creia que não seja possível de ser desconhecido, por ser histórico e amplamente documentado, gostaria de gastar algumas linhas deste texto falando deste fato...
Meu povo, assim como muitos outros no país, foi escravizado. As mulheres, minhas ancestrais foram capturadas para gerar filhos de negros escravizados. Através desse subterfúgio, era possível burlar a Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, que impedia o tráfico ultramarino de escravos e a sua entrada no Brasil. Os frutos dessas relações impostas eram ‘negros da terra’, e podiam ser escravizados sem maiores escrúpulos. Como já reportei outras vezes, o Direito é uma ferramenta muito útil e conhece-lo a fundo permite fazer qualquer coisa com ele, e o que essa história demonstra é que o raion (não-índio) sempre foi muito hábil em operar a lei a seu favor, e nunca gastou tempo na reflexão acerca do fato de que o preço dessa habilidade seria a liberdade e a vida de muitos.
Os reflexos desse crime legalmente autorizado estão visíveis na tez e na aparência das gerações atuais de Puri, e também de Xacriabá, Pataxó e vários outros.
E sim, existem belas histórias também... Como a dos Pankararu, Xucuru, Tupinambá, que, exímios conhecedores dos caminhos da mata, deram fuga e abrigo aos negros que fugiam do cativeiro. A partir disto, seus sangues e tradições se misturaram, e os seus descendentes destes povos também possuem em si as marcas disto.
Embora eu tenha durante muitos e muitos anos odiado a minha aparência, hoje penso nela com respeito. Sei o preço que foi pago pelas minhas avós. Sei o significado exato das palavras ‘pega no laço’ e ‘acuada de cachorro’. Sei o que isso quer dizer, e o sei mais profundamente por meu povo ser matriarcal, baseado em lideranças femininas, que eram e são guardiãs do conhecimento ancestral.
A propósito disso, quero contar que tempos atrás, conheci uma garota incrível, que me resgatou de uma das piores crises de desesperança que já tive. Na ocasião, ela, que é Krenak, me disse que se sentia inspirada por mim, a garota de tez branca e cabelos loiro anelados, a seguir lutando por sua autoafirmação como indígena. Porque se eu posso dizê-lo, ela certamente também pode – Deve! Eu sei quem sou. Sei também o que não sou, e nem pretendo. E sei principalmente discutir grau de pureza em gente está entre as coisas mais ridículas e deprimentes já inventadas pela mente humana.
Eu olho no fundo do espelho, e vejo esses cabelos, essa pele, esses olhos... e vejo neles refletido tudo o que eu sou, mas vejo mais... Vejo também as dores e as lutas de todos que vieram antes de mim. Sei o que passaram as minhas ancestrais. Sei o que sofreram. Sei das lágrimas e dos gritos. Sei da tristeza. E sei de tudo o que elas lutaram para manter vivo aquilo que tanto tentaram matar em nós.
Não quero dizer aqui que meu povo é melhor ou pior que os demais. Digo apenas que nós resistimos, enquanto outros não conseguiram. Não há mérito ou demérito especial nisso, nem é este um atestado de força. É só uma constatação, como aquela que é feita sobre o personagem central do filme The Shawshank Redemption (Um sonho de liberdade): Ele atravessou um rio de merda para sair limpo do outro lado. Nós também. Um rio tão largo que atravessou séculos.
...Escrevo esta reflexão por todo o cansaço que o assunto me causa. Porque de todas as coisas que poderíamos estar fazendo em prol de uma luta tão séria, precisamos perder nosso tempo com discussões infrutíferas e contraproducentes acerca de quem é ou não indígena com pedigree, ‘legítimo’, ‘puro’, ‘sem mácula’. E, ao contrário de somarmos, nos subtraímos e enfraquecemos, em meio a divisões mesquinhas.
Escrevo também com a tristeza de ter ouvido essa semana de uma liderança notoriamente conhecida no meio que ela estava abandonando o movimento indígena. Motivo? Estava cansada de ter de estar sempre provando que é indígena. E agora ela resolveu se desligar de todo movimento, viver no ostracismo e cuidar de si e de sua família.
Escrevo também a tristeza antecipada de saber que isso ainda será usado como argumento por aqueles que a destratavam, como se o seu cansaço e profunda tristeza servissem de prova para aquilo que contra ela diziam. Mas não, meus caros. A única coisa que isso prova é que palavras podem matar o ânimo tão habilmente quanto armas, e que todos nós temos um limite, para além do qual não podemos ir, não importa quão fortes e conscientes de si que sejamos.
E, infelizmente, este não é nem de longe um caso isolado. Mesmo que fosse, eu julgaria digno de ser mencionado, mas não é. Tenho ouvido também muitos rumores e questionamentos sobre diversos outros expoentes do movimento indígena, tanto contestando suas histórias de vida, quanto suas identidades.
Olhando para todos esses fatos, só posso pensar com tristeza no quanto a impermeabilidade das fronteiras indígenas permitiu que muitos incorporassem o pior do mundo do raion. O racismo foi sem dúvida alguma uma das armas mais funestas usadas contra os povos originários, e também contra os negros. Foi do preconceito étnico que os raion se valeram para escravizar, violentar e exterminar nosso povo, e é por isso tão terrível que esta mesma arma seja usada dentro do próprio meio para duvidar, dividir e causar essa profundidade tão grande de tristeza e cansaço. É terrível seguir lutando, quando quem devia lutar ao seu lado te vê como um usurpador.
E, a propósito, usurpador do que mesmo? Eu não sei vocês, mas até onde me consta, ser indígena no Brasil e assim se reivindicar é algo que requer acima de tudo muita coragem, até porque, sabemos bem, ‘vantagem’ não há nenhuma. Ninguém que assume lutar deste lado está aqui em busca de obter vantagens... Quem se assume indígena em um país que nos mata todos os dias, que nos trata como sub-humanos, sem alma, impróprios, incapazes, ignorantes e tantos outros adjetivos pejorativos, o faz ciente de que está colocando em sua testa um alvo. Mas ainda assim o faz, porque sabe que não existe nenhum outro lugar possível para estar, para ser, para existir.
Gostaria de expressar o quão contraproducente é esse tipo de conflito interno, o quanto deixamos de avançar na luta quando nos perdemos nestas discussões. Enquanto isso, os raion se unem e se fortalecem, apesar de todas as suas diferenças. E fazem isso porque sabem relativizar e deixar de lado aquilo que os desune para agir em bloco e se fortalecer em busca de objetivos comuns.
Sei bem que somos nações diferentes, sei que temos costumes e culturas diversas, e que alguns são inimigos históricos. Mas sei também que temos uma luta que é comum, e não deixar de lado as diferenças e as mesquinharias nos distancia e fragmenta nossas fileiras, em uma batalha que só pode ser vencida pela união. E sei principalmente que a diferença entre ganhar e perder é de vida ou morte.
Eu olho para tais coisas com tristeza. 517 anos de tristeza. Olho para essas coisas como filha de um povo que foi massacrado de todas as formas possíveis. Que sofreu, que foi assassinado, que teve suas terras roubadas, que foi declarado extinto, e que agora tem até mesmo sua existência contestada.
Olho para isso, mas lembro de minhas avós. Lembro-me daquela que “precisou de 10 homens para ser contida”, em sua dor por ter visto todos os seus parentes serem mortos, do alto das árvores aonde se escondeu. Penso na sua captura, no estupro, na vida que ela precisou viver depois, e, mesmo assim, guardando consigo tudo o que restava de seu povo para nos ensinar depois, para que não morrêssemos, para que ainda houvessem os Puri.
Penso nisso. E por isso, sei que não há força na terra que me demoveria da convicção de ser Puri, nem mesmo o fato da minha pele ou dos meus cabelos.
Mas é de qualquer maneira tristíssimo que estejamos vendo dentro do meio indígena tantas conversões a uma filosofia nazista lombrosiana* de fenótipos ideais e corretos, em detrimento daqueles que não são. É tristíssimo que o poema de Gonçalves Dias seja uma prática cotidiana que ignora contexto e história. E é tristíssimo que mesmo o reconhecimento da parte do próprio povo acerca de alguém seja alvo de contestação de ‘especialistas’, que exigem provas acerca do que é inquestionável.
Nem de longe estou aqui para defender uma teoria de que ‘todo mundo é indígena no Brasil’, nem pretendo, como já disse em outras ocasiões, que todos assim se façam, por conta de terem também em suas famílias avós 'pegas no laço’. Não... não é disso que se trata. Nunca foi. Sei que nem todos são indígenas. Sei também que em nosso meio aparecem às vezes alguns embusteiros, e não é a eles que me refiro.
Falo daqueles que tem sofrido perseguição em nosso meio, e o tem sido, apesar de tudo o que já fizeram pela luta, e por todas as contribuições que trouxeram para visibilizar a causa indígena. Falo de quem sofreu muito para poder se manter consciente de quem era, lá em meio aos brancos, que exigiam que ele se esquecesse de tudo, que não falasse a língua, que esquecesse seus pais, que se convertesse a outro deus, que não falasse, que não fosse, que matasse nele tudo o que tinha de indígena e que virasse um arremedo de branco. Falo de tudo o que precisaram negociar e manter escondido no mais profundo de si, esperando, esperando, às vezes uma vida toda para então trazer de volta a luz...
E quando finalmente isso despertou, o que se viu foi que não existe força na terra capaz de matar o poder da raiz viva do pertencimento.
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).
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** Todas as imagens são de autoria da artista pernambucana Angel Pedrosa
____________________________________Para quem quiser apreciar os versos de Marabá, segue o link:
http://franciscalucilene.blogspot.com.br/2015/06/maraba-goncalves-dias.html
* Lombroso: é considerado o precursor da ciência criminal, para ele o crime é uma circunstância natural por ser de caráter primariamente hereditário, porém inaceitável socialmente e acabou por se mostrar favorável à pena de morte e prisão perpétua. Uma de suas mais famosas e controversas teorias é a de que existiria um fenótipo básico do criminoso, a qual, não por acaso, remete às faces de negros, asiáticos e indígenas.
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