Por: Raial Orotu Puri
Um tempo desses atrás uma amiga fez um comentário sobre uma foto minha de que gosto muito. A questão me voltou à memória, devido a uma parte de uma conversa muito bela e produtiva que tive na data de ontem. O comentário de minha amiga falava que sempre que via a minha foto, ela pensava em ‘caminho’, caminho esse que a chamava a ser trilhado.
À época da conversa, esclareci à minha amiga que, de fato, a imagem era de uma ponte que atravessava de um lado a outro sobre uma espécie de lago, que, por um fato específico ocorrido naquela Terra Indígena, com o povo que ali habita, pode ser entendido como um espaço sagrado. E o é realmente. Quando se visita aquele espaço, é possível sentir a sacralidade do local. É claro que este Sagrado tem certas características, que obedecem à lógica específica inerente ao mundo indígena e, por isso, entendo que nem sempre esse sagrado seja o tipo de sagrado esperado por olhares externos, e é sobre isto que gostaria de discorrer ao longo dessas linhas – espero concluir com algum sucesso.
A questão voltou-me à memória devido ao comentário feito por outra amiga de longo tempo, que, por força de muitos compromissos e desencontros, somente recentemente vim a conhecer. Ela então observou que era uma das primeiras vezes que me via de frente, já que estava habituada a ver uma fotografia minha no whats no qual apareço de costas. Lembrei-me destas duas fotos, e de mais algumas que tenho usado em meu perfil: estou nelas de costas, voltada para uma mata, as vezes observando, as vezes caminhando em direção a ela... Gosto dessas fotografias, seja por terem sido tiradas por pessoas que me são queridas, seja porque não gosto muito de mostrar meu rosto, seja porque elas apontam para a direção para a qual minhas aspirações sempre me conduziram: a profundidade das florestas.
Bem, devo adiantar que este tema é para mim um pouco delicado, por razões diversas, algumas das quais já comentei em outros momentos, mas há uma específica que gostaria de abordar de forma mais detalhada aqui. Esta reporta-se à perspectiva que se tem da espiritualidade como um caminho específico a ser trilhado, uma rota separada de todo o resto... algo que para mim não se processa necessariamente desta forma.
Devido ao fato de eu estar residindo atualmente no Acre, que, para muitos se apresenta como uma espécie de ‘Meca’, é muito comum que algumas pessoas me interpelem com perguntas acerca de aonde me encontro em termos de minha escala evolutiva espiritual. E por vezes acontece certa decepção da parte dos meus interlocutores que entendem que, por eu não estar necessariamente preocupada em me aprofundar em demasia nestas vertentes, eu pareço estar desperdiçando o meu tempo.
Acontece que eu entendo que, antes de tudo, o caminho da espiritualidade é uma parte de um percurso muito maior, e sinto que estou inserida nele independentemente de estar ‘em busca’, visto que ele é inerente à minha vida, e à vida de qualquer pessoa que entenda que o Sagrado, sobretudo aquele conectado com a percepção indígena, não é separado do todo. Eu estou neste caminho, porque estou viva, assim como está a terra embaixo de meus pés. Assim como é também Sagrada a luta para manter-me viva, e para guardar a vida da Terra, e os segredos a mim confiados.
Voltemos ao lago: O lago a que me refiro, localizado na TI Puyanawa, é sim sagrado. E o é em todo o tempo, inclusive quando usado para atividades corriqueiras tais como tomar banho e lavar roupas. É. Isso mesmo. Já disse isso outras vezes, e repito: Algumas coisas de nosso sagrado têm essa característica de são ser separados, à lá ‘Santo dos Santos’ cristão. Ele é acessível, e tem a ver com uma condição específica de se colocar no mundo e estar vivo.
Este detalhe é também o que me parece diferenciar e causar algum estranhamento ou decepção da parte de quem trava contato com as práticas indígenas, e vêm até elas com ideias pré-concebidas sobre o que pretende encontrar em uma aldeia. Acredito que, sobretudo para aqueles que, antes de aqui chegados, tenham tido contato com os indígenas em rituais realizados nas cidades, pode ser que a Aldeia pareça um pouco diferente, e talvez esta decepção cause uma cegueira temporária, que impeça de ver a beleza do que há por ser visto.
Como já dito em outras ocasiões por mim e outros cronistas deste blog, as cerimônias citadinas têm bem pouca relação com os processos tradicionais de cura e aprendizado indígenas, e isto ocorre justamente por serem coisas de outra ordem. Acontece que o curar-se e o aprender constante são em essência, Sagrados.
Digo isto, como comentado, após visitar amigos muito especiais, que, dentre outras coisas, me ajudaram a iniciar um tratamento de um problema de saúde que tem me acompanhado quase desde meu nascimento. Senti-me extremamente grata por este encontro, e por tudo que ali ocorreu, e entendo que aquele momento, sem música, sem ritualística, mas com sabedoria, generosidade e cuidado, foi para mim tão ou mais Sagrado que quaisquer outras experiências que já tive.
Após finalizado aquele atendimento, a noite findou com um delicioso jantar de peixe moqueado e farofa de mani (banana) pisada, e uma conversa melhor ainda, que tratou do percurso de uma viagem que esses amigos começam a empreender em direção às terras do sul. Visto que parte deste trajeto visa também o contato com o famoso Caminho do Peabiru, meus amigos me demandaram algumas informações a respeito dele.
Para aqueles que desconhecem, o Peabiru está entre as maiores obras de engenharia da antiguidade na América do Sul, seja por sua magnitude, seja por aquilo que representou, sobretudo por terem sido os indígenas os únicos que até hoje conseguiram o que diversos outros em tempos mais modernos tentaram sem sucesso: uma rota transcontinental que estabelece uma ligação terrestre entre as duas costas, do Atlântico e do Pacífico.
A rota principal inicia-se nas terras que hoje pertencem a São Paulo, em Cananéia, atravessa o Paraná, o chaco Paraguaio, a Bolívia, atravessa a Cordilheira dos Andes e alcança o Pacífico no Peru, na cidade de Iquitos.
Além do tronco principal, existem diversos ramais menores, que no Brasil estabelecem ligação com santa Catarina e o Rio Grande do Sul. E, aqui, destaco outra vez que a grandeza está imbricada de simplicidade, posto que o que permite que até hoje este caminho seja possível de ser identificado é o fato de que em seu leito, com 40 cm de profundidade aproximadamente, ter sido recoberto de um tipo de gramínea que evitava a erosão e também impedia o crescimento de ervas daninhas.
Nada de trilhos, cimento ou grandes maquinários, nada de assassinatos em massa, de
deslocamento de populações, escravização ou mortes; mas um conhecimento ancestral da natureza circundante, capaz de estabelecer uma rota que é bem mais do que aquela que será palmilhada pelos pés: O Peabibu foi aberta pelos Guarani em tempos primevos, servia de rota comercial, mas era também conectado aos seus conhecimentos astrológicos, aos seus lugares sagrados e o seu migrar constante em busca do retorno à sua Terra Sem Males. Em pontos especiais, há marcos de pedra que permitiam aos caminhantes situar-se de onde estavam, e para onde iam, tais como se fossem placas, mas que só podem ser lidas por quem tem conhecimento para tanto.
Enquanto escrevo, percebo a conexão deste texto com o outro que escrevi outro dia, sobre o grande valor que é dado às reminiscências arqueológicas do passado. E, por isso mesmo, convido àqueles que queiram conhecer a grandeza do Peabiru, a fazê-lo sim, e aproveitar também para passar ao longo deste caminho por puxar um dedo de proza e quem sabe tomar um mate em uma das muitas Tekoha, Guarani, seja às margens dos Peabiru ou das estradas de asfalto no Mato Grosso do Sul. Creio que é um percurso válido, e um comparativo necessário, entre delicadeza – e grandeza – do passo leve Guarani sobre a terra, em contraste com as linhas frias e cruéis dos raion que ceifam o solo e as vidas de tantos de nós.
A lição maior do Peabiru em minha opinião é a sua simplicidade. Uma simplicidade que convida a ser aprendida. Para trilhá-lo, claro está, não se pode ir de carro: é preciso ir à pé, seguir, caminhar, despojar-se de certos confortos. E sim, é um caminho real, que proporcionará certamente bolhas nos pés e suor na pele. Mas é Sagrado sim. E muito, tanto quanto é a vida nas Tekohá dos Guarani, ou em quaisquer Aldeias de qualquer povo indígena que tem sobrevivido a este mundo. Mas aviso: é simples, muito simples.
Na atualidade, sei que existem alguns grupos que têm percorrido alguns trechos do Peabiru ou dos seus ramais, tal como se fossem percursos espirituais. E desses, conheço alguns que dizem terem encontrado nesses caminhos aquilo que buscavam enquanto iluminação. Acho muito válido, da mesma forma que acho válida qualquer outra forma de busca, inclusive aquela que se faz mediante o uso das bebidas Sagradas indígenas, dentre as quais a ‘ayahuasca’ se coloca como uma das mais conhecidas.
E quando entendo a ‘ayahuasca’ como um caminho, entendo que ela é assim como o Peabiru mesmo: uma rota de troca, de passagem, que te leva a algum lugar, mesmo que não necessariamente seja a um ponto final. Porque, como tenho tentando dizer, esta bebida está relacionada à cura e aprendizado, e, dentro da perspectiva indígena, este aprender e curar-se é uma constante, inerente a nosso percurso de vida.
Nesse sentido, entendo também que, seja qual for o caminho, mesmo que ele seja feito na companhia de outros, ele é individual e se volta para dentro. Resta saber a cada um que deseja percorrer tais caminhos, se tem o interior é capaz de ser assim tão vasto a ponto de abarcar tais grandezas simples, e o seu caminhar é feito de passo leve, respeito e simplicidade, para não perturbar a paz nem pisotear a grama.
Acima de tudo, o que penso que tanto o Peabiru quanto o a bebida sagrada ensina, é que ela só pode existir em sua totalidade quando não afastada de suas características originais: eis o porquê de não ser possível encontrar o ritual da cidade na aldeia, de não se poder percorrer de carro o Peabiru, e do lago na TI Puyanawa não ser uma catedral aonde qualquer um que quiser entrar precise se purificar. Qualquer uma dessas coisas destruiria o que de sagrado elas contém; seria apenas um arremedo falho ou um espelho torto.
Não tenho necessariamente para este texto conclusão, visto que nele não pretendo defender tese alguma. Foi apenas um percurso que os que chegaram até aqui percorreram comigo... Não serve de placa indicativa de nada, nem se propõe a nada ensinar... Espero que não tenha causado bolhas nos pés ou suor a ninguém.
Abraços e bom final de semana!
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).
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- Todas as imagens são pinturas de autoria do pintor panamenho Lucio López Kansuet
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