A dança das eras, no jardim das castanheiras - Foto: Cristiane De Bortoli |
O grande
espírito, em forma de cobra emplumada, enrolava-se em uma dança espiral mágica e
multicolor, espalhando pelo recinto suas cores e fragrâncias encantadas. Seu
movimento era como uma dança, ritmada e firme, seguindo a cadência da cantiga
encantada, entoada por muitas vozes que, vez ou outra, fundiam-se numa só, como
se somente uma pessoa estivesse a cantar.
A cada giro
dessa estranha dança, histórias eram apresentadas, remontando séculos de
memórias. Vozes eram ouvidas contando coisas que, a princípio, eram
ininteligíveis, mas que, aos poucos, iam se fazendo entender. Eram histórias
mostradas e cantadas sobre feitos fantásticos de lutas, vitórias e derrotas,
sobre dias de luzes e um longo período de trevas.
A linda
serpente emplumada continuava a mostrar suas memórias. Mostrou como acabou o
grande período de trevas e esquecimento, quando quase todo seu encanto se
apagou. Mostrou como, nos últimos suspiros e palpitar do coração humano, ela
renasceu forte e sábia.
Eu estava ali
e a tudo isso assistia, como testemunha silenciosa e encantada pelo que se
apresentava à minha frente.
- Txai Jairo? - Alguém me chamou, acordando-me
do sonho encantado que estava tendo, fazendo com que desaparecesse a estranha
cena que se apresentava. A serpente havia partido e, em seu lugar, surgiu a
verdadeira “realidade” do que se passava: um grande grupo de homens, mulheres e
crianças pintadas de jenipapo, ostentando plumas, cantando e dançando de braços
enlaçados em torno de uma grande quantidade de caiçuma, acondicionada em
barris.
E assim,
acordei de minha visão encantada, e lembrei que eu me encontrava na maloca de
festas do querido povo Puyanawa.
Dá pra notar
que comecei esta crônica pulando diretamente para o meio da narrativa. Assim,
para este texto fazer sentido, terei de retornar algumas horas antes da
estranha e encantada cena descrita acima.
...
Ao prenúncio
do fim do fôlego desta semana que se passou, onde as certezas da noite
transformavam-se em dúvidas ao raiar do dia, tornei-me cicerone de um pequeno
grupo de colegas da Justiça Federal que, em companhia da juíza federal da
comarca de Cruzeiro do Sul, foram convidados a conhecer a Terra Indígena
Puyanawa e prestigiar o primeiro “Festival da Atsa do Povo Puyanawa”.
Foto: Jairo Lima |
Mesmo me
considerando um incentivador de atividades para que os povos indígenas
expressem cada vez mais sua cultura, confesso que não sou o mais ardoroso fã dos
festivais, preferindo os momentos de paz e tranquilidade do cotidiano e da
dinâmica diária das comunidades.
Mas não
podendo me escusar de aceitar um convite feito de maneira pessoal e presente
pelo querido amigo Puwe Puyanawa, e tendo que atender a uma atividade institucional
formal que exigia a minha presença, resolvi “desencantar“ e me comprometi a
estar lá, pelo menos para a abertura do evento.
Assim, um
tanto alquebrado pelo odioso resfriado que me acometia, juntamente com os
péssimos humores das notícias que me chegaram do Planalto Central, arrumei
minha mochila e segui, juntamente com o grupo, em direção ao extremo oeste
acreano, vencendo, além do sufocante calor do mês de julho, o desnível da
rodovia 364 e as possíveis surpresas que poderiam advir da jornada.
A recepção de
chegada à terra dos Puyanawa vakevu não
poderia ser melhor: ao longe se via uma fumaça baixa, azulada, que trazia até
nossos veículos o aroma, forte e característico, da feitura de uma das melhores
iguarias desta parte do Juruá, a famosa farinha de Cruzeiro do Sul.
É tempo das
“farinhadas”, e os Puyanawa, como principais fornecedores deste produto para os
mercados da região, estão com sua produção a pleno vapor. Entramos numa das
casas de farinha e, olhando a labuta dos feitores, matutei: será que os consumidores desta farinha têm
ideia de que este precioso produto do cardápio acreano tem o tempero e a “magia”
deste povo indígena?
Após a
incursão, onde se tentou ensinar à excelentíssima juíza a arte de rachar lenha
e peneirar a farinha, seguimos para a Arena, local onde são celebradas as
manifestações culturais da comunidade.
Há anos
visito esta terra indígena e digo que não deixo de me surpreender com a
evolução e o nível de organização das atividades da comunidade, e com as
prendas que são capazes de nos propiciar.
Ao largo das
duas malocas da Arena, várias barraquinhas apresentavam aos visitantes seus
produtos (comidas, remédios, artesanatos etc). Sou sincero o suficiente para
admitir que, mesmo após quase duas décadas de indigenismo, não imaginava que
ainda me surpreenderia com algum produto feito a partir da preciosa raiz. E, em
algumas das barracas, admito que fiquei muito surpreso.
Rapidamente
deparei-me com os cineastas do projeto Nokum
Txai, que estavam na comunidade já há alguns dias, gravando um dos
episódios da série e que fariam todo o registro da festividade.
Ouvindo as orientação de Shainay - Foto: Jairo Lima |
Enquanto
apresentava o local para meus “ciceroneados”, fui revendo e apertando mãos ou
abraçando os queridos parentes
Puyanawa, além de alguns parceiros de outras instituições, até chegar aos líderes
da terra, os respeitáveis Shainay e Puwe, que, devidamente paramentados, davam
instruções aos presentes, exortando-os a beberem caiçuma e orientando-os sobre
as atividades que se seguiriam.
Vi um grupo
de visitantes, oriundos das colocações e vilas do entorno da terra. Também
havia chegado um grande grupo de Cruzeiro do Sul e da cidade de Mâncio Lima.
Segundo me informaram, estava prevista a chegada de alguns convidados
estrangeiros e de outras cidades, mas estes seriam poucos, já que a festa era
voltada para a comunidade, seus vizinhos e parceiros locais.
A abertura do
evento seguia o esperado atraso, quando senti que os remédios que me mantinham
alerta e invisível ao resfriado estavam perdendo seu efeito. Contrariado,
sentei-me resignado para apreciar o movimento e explicar aos meus companheiros
alguns detalhes sobre a festa e a comunidade quando, a um olhar rápido,
deparei-me com o olhar brilhante do amigo Puwe que, de maneira discreta e com
um rápido beberico, havia acabado de ingerir a bebida sagrada, o Uni. Olhou-me, e com seu sorriso
característico fez-me sinal para que me aproximasse, servindo-me não mais que
um pequeno gole desse sagrado vinho.
Sentei-me,
agora mais tranquilo, e passei a apreciar o movimento cada vez mais acelerado,
que prenunciava o início das festividades. O consumo de caiçuma aumentou e todos
começaram a se colocar em círculo, com suas vestes e plumas, demonstrando a
majestade de suas pessoas e a alegria colorida que estava por vir.
Ao microfone,
Puwe avisava aos presentes que somente após a chegada do convidado principal é
que seguiriam com a abertura do evento, onde seriam feitas as palestras dos
convidados e as atividades previstas. No entanto, iriam começar a cantar umas
canções para “esquentar” o ambiente. Rapidamente se organizaram e começaram a
dançar e cantar, com as saias de palha seguindo a cadência de pernas fortes e
pintadas com os desenhos tradicionais. Nisso, a força e os encantos da bebida
sagrada que ingeri chegaram...
...
Cheguei ao
“meio” do texto. Agora retomo a partir daqui à cena descrita no início do texto,
e sigo a partir dela.
...
- Txai Jairo?
– a voz ao meu lado me chamou e me disse animadamente que eu ficasse à vontade,
pois estava em casa.
Sorri,
agradecendo a consideração. Nisso, lembrei-me dos meus ciceroneados. Percorri o
ambiente com os olhos, encontrando-os totalmente misturados, de braços dados na
grande roda e bailando ao ritmo da canção. Fiquei feliz, “missão cumprida”,
pensei.
Todo mundo junto e misturado - Foto: Jairo Lima |
Continuei
olhando a cena e admirando a beleza gerada pela junção de tudo o que estava
ocorrendo naquele momento. Era o conhecido “tudo
e todo mundo misturado agora”, tão comum nas festas indígenas, e de um
significado importantíssimo que, geralmente, passa desapercebido aos olhos dos nawa (não-índio): trata-se da mescla de
tudo o que está ocorrendo com todos que estão presentes e o que está sendo
feito por cada um destes, como se tudo fosse uma coisa só, interagindo em
perfeita sinergia temporal e espiritual, ligadas por invisíveis e etéreas
linhas que vão formando uma verdadeira rede, um verdadeiro kene (desenho tradicional).
Eram indígenas
misturados com não-índios, de braços dados dançando; o grupo de filmagem indo e
vindo, numa dinâmica que a olhos leigos como os meus era caótica; pessoas
sentadas dentro da maloca, conversando ou somente olhando; crianças comendo
coisas; outros cantando, enquanto batiam palmas. Isso tudo formava o que
descrevi acima.
De repente a
cantoria cessou. Os braços desenlaçaram-se e outra movimentação tomou conta do
ambiente. Era nítida a energia que circulava naquele momento, algo estava
prestes a ocorrer, pois todos ficaram parados, olhando para a entrada da
maloca. Nisso, o esperado convidado principal da festa chegou, escoltado pelo
cacique tradicional Mário Puyanawa e pelo chefe da FUNAI em Cruzeiro do Sul,
Luiz Valdenir. O convidado tão querido e esperado era ninguém menos que o Txai
Antonio Macedo.
Confesso que
toda esta cena foi forte e iluminada aos meus olhos.
Anunciado ao
microfone, o querido Txai entrou e logo foi cercado por todos os Puyanawa que,
como crianças que reencontraram o pai depois de muito tempo, passaram a abraçá-lo
e a cumprimentá-lo efusivamente enquanto, no microfone, ouvia-se a ordem dada
pelo Puwe: todo mundo bebendo caiçuma e
abraçando o Txai Macedo!
Txai Macêdo todo uniformizado pra festa Foto: Jairo Lima |
Eu, agraciado
com a causalidade desta natureza cósmica imprevisível, tive um feliz reencontro
com este Txai que, vendo-me, logo veio em minha direção, dando-me um abraço
forte e sincero. Confesso que me senti como uma criança também. Pois, assim
como os Puyanawa – e outros povos indígenas deste Aquiry- muito rezei para que os
espíritos sagrados o conduzissem em segurança na difícil jornada que ele
empreendeu em busca de cura da enfermidade que quase o tirou de nosso convívio
terreno.
Ouvimos suas
palavras calorosas, onde agradeceu pelas energias recebidas, os bons
pensamentos e exortou a todos a continuarem neste caminho, em busca de
fortalecer a cultura. Cultura esta que ele muito lutou para que não
desaparecesse.
E a festa
finalmente teve seu “início formal” realizado.
Acabei
decidindo: vou ficar e apreciar até a última
gota desta energia. E assim fiquei nestes dias. E estive presente em seu
encerramento, neste sábado tórrido, lotado de convidados e energias positivas.
Com muita comida, muita caiçuma e muitas atividades.
Não foi um
festival voltado para que os convidados experimentassem a cultura indígena em
todas as suas dimensões, participando de rituais com a aplicação das medicinas.
Foi, sim, uma festa mesmo, onde não ocorreriam rituais sagrados, nem curas, nem
aplicações de medicina. A ordem era festejar, e a bebida da festa era a
caiçuma. Somente para os que estivessem de “dieta” ou doentes (meu caso),
teriam um pouco de acesso ao Uni
sagrado para que ficassem em sintonia com os demais.
No decorrer
dos dias, muitas autoridades se fizeram presentes, entre senadores, secretários
de estado, representantes de órgãos, entre outros. Entre estes representantes
veio, também, o amigo e grande indigenista Marcelo Piedrafita Iglesias.
Conversando com os Txais Macêdo e Marcelo ao pé da castanheira Foto: Cristiane De Bortoli |
Foi um encontro
feliz que me propiciou muita conversa boa, sempre com muito sorriso e informações,
enquanto seguíamos a procissão cantante dos Puyanawa em direção ao novo espaço
de danças ao pé de grandes castanheiras, onde se juntou à nossa pequena assembleia,
o Txai Macêdo.
Juntos, eu e
Marcelo ouvimos uma das histórias do Txai Macêdo sobre a origem da pesca
tradicional das mulheres Puyanawa. Juntos, eu, Marcelo e o Macedo, sentamos aos
pés das castanheiras sagradas da Arena para papear e trocar ideias. Juntos, nós
três fizemos planos de ações futuras. E eu, sozinho, descobri que estava onde
queria estar, com pessoas que eu queria encontrar, num momento que eu não
poderia perder, fazendo parte deste “tudo”
que, com “todo mundo misturado”, dá
sentido à minha existência e ao caminho que escolhi junto aos povos indígenas.
Não foi
simplesmente um festival. Este evento teve um significado muito maior para os
Puyanawa, tornando-se a coroação de um trabalho árduo, de muita pesquisa e
muito esforço para retomar algo que quase se perdeu, para reacender uma chama
que quase se apagou.
Mas, como bem
disse o sábio Baltasar Grácian: a
perfeição não consiste na quantidade, mas, na qualidade. Tudo o que é muito bom
foi sempre pouco e raro, enquanto a abundância é pouco apreciada. E assim, a
festa que tão animadamente começou, também animadamente estava chegando ao seu
ocaso, ao término do terceiro dia. Chegou o momento de retornar para casa.
Felicidade no coração. Pensamento firme e o sorriso no rosto de quem viveu um
momento que nunca se apagará da memória.
Enquanto
venço o caminho de retorno, já não me importo com o calor sufocante. Fico lembrando
nas palavras do Txai Macedo quando me encontrou e resumiu toda a situação para
mim e para os que comigo estavam: sabe
txai, é isso que faz a diferença, é isso que compensa tudo aquilo que a gente
faz no nosso trabalho, em nossa vida, com nosso esforço. Esse reconhecimento
que a gente recebe, esta coisa no coração de um povo desses, sabe txai? É isso!
Concordo meu
querido amigo, afinal, antes que “acordasse” da visão que estava tendo com a
serpente emplumada, vi que mãos benignas protegeram a chama dos Puyanawa,
durante os anos de trevas, das correrias e do cativeiro do patrão. Vi que esta
chama esteve guardada e em segurança quando outras mãos lutaram pela demarcação
da terra. Vi, ainda, que esta chama se tornou labaredas, e tudo reacendeu e
queimou quando outras mãos finalmente a liberaram. E também vi que, entre estas
mãos, além das grandes almas Puyanawa, também estavam as suas, meu grande Txai.
Mais uma vez,
os Puyanawa estão de parabéns. Realizaram um grande evento, sem
estardalhaços e
muito aconchegante, mostrando como estão desenvolvendo cada vez mais sua
comunidade e mostrando a todos que este festival é somente para que os visitantes
e parceiros vejam e festejem as vitórias junto com eles. Ou seja, em vez da
comunidade servir ao festival, foi o festival que veio servir a comunidade.
Inaugurando a nova área de danças Foto: Cristiane De Bortoli |
Já em casa,
ainda embalado pelos sentimentos e sensações vividas, resolvo navegar na
internet para ver as notícias e, logo ao ver a primeira e terrível manchete,
desisto. Decido que o melhor que posso fazer neste finalzinho de sábado é
deixar que o mundo cuide de si, para que eu possa refletir e registrar tudo
isto que agora vos apresento, continuando nesta emanação positiva.
Caso queiram
ver a galeria de imagens produzidas durante o evento, para que possam visualizar o que foi narrado nesta crônica, clique aqui.
Boa semana a
tod@s!
Essa tua narrativa, muito bem escrita como sempre, conseguiu extrair lágrimas de meus olhos quando relata a chegada de Txai Macedo. Realmente, um momento super especial. Parabéns por mais um belo texto e parabéns ao Puyanawa!!!
ResponderExcluirGrato, meu amigo Moacir. Realmente foi um momento emocionante estar na comunidade no dia desta festa e poder, mais uma vez, conversar com o Txai Macedo.
ResponderExcluirParabéns Jairo, que festa linda!
ResponderExcluirE que texto maravilhoso escrito com o coração,mesmo sem conhecer esses costumes e tradições você consegue de uma forma mágica nos remeter ao momento da festa,nos encantando com cada detalhe e com cada momento, você tem simplesmente o dom de escrever e de nos envolver com suas forma de escrever,que é simplesmente maravilhosa.