Noite no Jordão - Foto: Ion David |
A semana que passou trouxe perspectivas de mudanças.
Nas rodas de conversas e nas mensagens “levadas pelos
ventos“ no Juruá sinalizam haver chegado o momento de discutir e implantar
mudanças.
No alto Juruá a campanha do prof Isaac Toto Ashaninka
ganha força. No médio Tarauacá os Huni Kuin da TI Praia do Carapanã vão se
reunir para discutir a cultura e, no Envira, os Shanenawa já sinalizam que os
meses finais deste tumultuado ano de 2016 trarão mudanças sensíveis na
organização de suas comunidades.
Na sociedade nawa
(não-índio), ainda estamos numa encruzilhada de possibilidades que, à primeira
vista, não são muito claras. Também, este período eleitoral em que estamos em
nada contribui para certezas futuras.
Mas, temos mudanças muito mais profundas que vem transformando
nossa sociedade e cultura, consolidando novas dinâmicas “de vida” em nossa contemporaneidade
urbana.
Não gostar de mudanças é uma característica humana. Claro
que neste mundo diluído que vivemos hoje em dia, as mudanças ocorrem na
velocidade com que somos bombardeados com novidades tecnológicas, novos
paradigmas sociais e novas tendências culturais.
Não lembro onde li ou assisti, mas me veio à mente uma interessante colocação de que tudo na nossa vida é um retângulo: dormimos numa cama retangular, dentro de um quarto retangular, nossa casa é retangular; nosso carro é retangular; entramos em um prédio retangular onde sentamos em nossas cadeiras dentro de salas retangulares e olhamos para a tela retangular de nosso computador.
Essa perspectiva de padrões e transformações sempre
incomodaram em menor ou maior grau, e atualmente, nesta cultura touch screen em voga e que busca nos
redimensionar ergonomicamente, este desconforto me faz desejar e amar os
momentos em que entro num barco ou carro e sigo para alguma aldeia.
A sensação de subir um rio com a floresta nos cercando e
sentindo a brisa em nosso rosto
é algo maravilhoso.
Curvas e encruzilhadas - Foto: Pedro Devani |
E o que me anima a uma aventura destas, ao contrário do
que algum leitor possa pensar, não são as festas com danças, pinturas e demais atividades, comuns nos famosos festivais tradicionais nas
terras indígenas acreanas.
O que gosto mesmo é do cotidiano, da velocidade natural e
totalmente atemporal, que nos liberta dos ponteiros estabelecidos do relógio.
Gosto de conversar ouvindo a voz do meu interlocutor - ou
interlocutores. De assuntos longos e que, nos “papos de índio” com suas
hipérboles e histórias correlatas, dão sentido ao assunto que está sendo
tratado. São nestas conversas que ouvimos pérolas de ensinamentos de vida, que
são dados espontaneamente pelos mais velhos.
- O mundo tá
mudando txai, o nawa tá correndo demais e deixando de prestar atenção nas
coisas. As coisas boas da vida passam
por ele que nem nota que está perdendo algo – Me disse certa vez o velho e
saudoso Inkamuru (Agostinho Huni Kuin), ensinamento lindo, devidamente
registrado em meu diário de viagem de 2005.
Gosto de tomar o huni*
em rituais sem formalidades, adornos e gestos desnecessários, pois estes não
serão vistos, já que, com os olhos carnais cerrados, somente os olhos do
espírito enxergam no escuro da floresta, onde as canções tradicionais me embalam nos mistérios ancestrais da tradição.
As mutações e transmutações dos seres espirituais, que se
apresentam nas ondas sagradas do chá mágico, nos ensinam e nos conduzem nas
trilhas misteriosas da floresta ao redor.
O chamado “tempo indígena” de como ocorre o dia-a-dia e
seus afazeres sempre me foi agradável e imbuído de uma lógica já perdida no
caos urbano em que vivemos: fazer o que tem que fazer, no momento em que der
pra fazer, para que seja feito com vontade e tempo disponível para tal.
Crianças Yawanawá - Foto: Tashka Yawanawá |
Para quem vive nos grandes centros urbanos, onde o
contato humano e a interação com a natureza estão cada vez mais restritas,
minhas vontades podem parecer até “bicho grilo demais”, mas não é.
A passividade do rio, sempre ali, provendo a aldeia com o
alimento saudável do pescado, propiciando o refrigério e a limpeza do banho que
tem uma energia própria, que nos limpa o corpo e energiza o nosso yuxin**, pois estão temperadas com as
ervas e energias da floresta.
O crepúsculo e a aurora são sempre um espetáculo à parte,
de cores e sons, onde o céu nos brinda com sua pintura de harmonia e o som dos
pássaros e demais animais mesclam-se em uma sinfonia única, que muda a cada
dia.
Gosto muito da simplicidade, tempero e filosofia da
prática alimentar na aldeia, tão em contraposição ao tal do fastfood que cada vez mais toma conta de
nossa dieta alimentar, bagunçando com nosso organismo. Comida caseira! Desconfie destas palavras quando as ler em
letreiros dos restaurantes.
Até nisso temos ensinamentos. Lembro-me de uma conversa
com o prof Chere Katukina, em 2004, durante uma de minhas pesquisas, em que
conversávamos sobre os alimentos na aldeia e a prática de comprar alimento nos
mercados:
- Para
nós, peixe, frango, essas coisas congeladas não sustentam nosso corpo
enquanto povo Katukina. E a gente comendo coisa da floresta, coisas naturais,
que são tiradas no mesmo dia, na mesma hora, a gente vai estar depositando o
espírito da floresta dentro do nosso corpo. E aí, uma criança, um adulto, que
tem o espírito da floresta, naquele espírito do animal, do peixe, essa pessoa
vai estar ligada... (...) Se alimentando com os animais da floresta, o peixe
está dentro d’água e aquilo para nós é uma coisa viva. Mesmo que ele esteja
morto, mas o espírito não está morto, continua vivo, e incorpora na gente, e
esse espírito chama a gente para continuar com a gente. Mas quando a gente come
um animal que estava no congelador há vários dias, não tem mais espírito ali
dentro, que possa ajudar. Quer dizer, que tem espírito da cidade, do mundo da
cidade, tem hormônio que pode ficar mais tempo no corpo; e aí quando a gente
come os produtos da cidade, a gente fica ligado nos produtos dos brancos, dos
nawa.
Pois é... em nossa vida urbana, cada vez mais se perde
espaço para criarmos animais, pescarmos e mantermos esta sinergia com a
natureza. Uma coisa comum em minha infância era ver minha avó matando uma
galinha no domingo para o almoço em família. Isso é tão raro hoje em dia.
Quando conhecemos e temos contato com este “mundo indígena”
passamos a ter referências diversas que nos possibilitam uma leitura bem mais
saudável da realidade que nos cerca.
A dinâmica como os povos indígenas vem se relacionando
com este mundo não-indígena, desde o contato, nos mostra como é possível equilibrar
as transformações ao redor, neste planeta cada vez mais globalizado, com o
nosso pequeno mundo familiar e, também, com nossa ligação com a natureza através
de coisas básicas que, sem percebermos, estamos deixando para trás.
Claro que temos diferentes situações em que se encontram
os povos indígenas em nosso
país. Também não quero reproduzir a visão
maniqueísta de Montaigne e o seu mito do “bom selvagem”, tão em voga nos
extremismos vividos por alguns defensores e os muito detratores da cultura indígena.
Visões de um barranco no Jordão - Foto: Ion David |
Mas, para aqueles que têm a possibilidade desta vivência como
venho tendo nos últimos dezesseis anos, com certeza irá entender e compreender
o que aqui expus.
O que posso dizer é que estas experiências me fazem
transpor esta existência retangular, que cada vez mais é regra no mundo moderno
e, também, contribuem para o equilíbrio e controle da força do “tempo”
cronometrado sobre meu cotidiano citadino.
Como bem observado pelo professor Leandro Karnal, em
nossa vida urbana estamos cada vez mais dependentes da Tabela Periódica para
termos felicidade e vivermos em um estado de existência adequada aos padrões
geométricos e líquidos desse mundo.
Já citei em textos anteriores que algumas comunidades
indígenas acreanas estão desenvolvendo as chamadas “vivências”, onde os
visitantes podem vivenciar momentos de desenvolvimento espiritual e do
cotidiano das comunidades. É uma experiência ainda em estágio inicial, que
precisa ser melhor analisada e devidamente normatizada, claro, mas que não
deixa de ser uma oportunidade interessante.
Txai Terri Aquino, o aniversariante do mês |
É isso. Posso dizer que não conheço uma só pessoa que
tenha experimentado este cotidiano indígena e que não tenha sofrido alguma
transformação em seu ser e em sua vida.
Enquanto termino este texto, atento para a data de
aniversário do grande antropólogo e indigenista Txai Terri Aquino, sobre quem
já escrevi antes e que na última sexta-feira completou 70 anos. Este
indigenista foi quem me inspirou a trilhar o caminho do indigenismo e o Acre
indígena tem muito a agradecer a este txai.
Infelizmente, enquanto se comemorava seu dia de
aniversário, larápios invadiram e roubaram o Centro de Formação dos Povos da
Floresta, que sedia a ONG Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) – fundada pelo
Terri Aquino no final dos anos setenta – e a Organização dos Professores
Indígenas do Acre (OPIAC).
Boa semana a tod@s!
Jairo Lima
*Huni - bebida sagrada dos indígenas, mais conhecida como ayahuaska na sociedade não-índia;
** Yuxin - espírito/alma. Para muitos povos indígenas do Acre o ser humano tem dois espíritos, o yuxin e o yuxibu.
Excelente texto Jairo, suas palavras me fez imaginar o quanto deve ser agradável passar uns dias em uma aldeia, fugindo dessa selva de pedra e retornando, renovada e cheia de energia. As imagens são lindas e perfeitas, principalmente a primeira.Boa semana para nós .
ResponderExcluirOi Hursilene,
ResponderExcluirAgradeço as palavras e o desejo é mutuo, em dar uma escapadinha desta selva de pedras e feras políticas.
Seguimos com força, e no meu caso, recuperação nesta semana que inicia.
Lendo suas crônicas viajo para outro mundo, onde me sinto habitante ancestral,tão forte e verdadeira é a identificação.
ResponderExcluirJairo, obrigada pelo texto. Tenho muita vontade de passar um tempo afastada aqui dessa urbanização louca e caótica do RJ, você como está aí por perto, saberia me indicar melhor algo sobre essas vivências promovidas por aí? Se tiver mais informações sobre isso a compartilhar, eu ficaria muito grata. Muito obrigada novamente, tô comendo o seu blog hoje! hehe Abraços!
ResponderExcluirPrezada, posso sim indicar, este espaço de comentários fica mais limitado para tratar a respeito, mas pode achar-me na rede social, lá conversamos:
ResponderExcluirhttps://www.facebook.com/jairo.lima.3133?qsefr=1