Caipora - Autor desconhecido |
Por: Raial Orotu Puri
Eu que gosto muito de
histórias. Mais ainda se são histórias ligadas à ‘mitologia’ indígena. Mas eu
quero começar essa história com uma reflexão que parte de uma ‘mitologia’
construída a partir de referências bíblicas, e que tem lá o seu quilate de
qualidade e fama, sobretudo na cultura ocidental. Na segunda Crônica de Nárnia,
“O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa”, existe uma passagem que considero
muito tocante, e que tem me sido evocada de forma recorrente nos últimos tempos.
Trata-se da parte da história em que uma das crianças, Edmundo, realiza uma
enorme traição em troca um punhado de doces. Por conta dos quadradinhos de
manjar turco que tem nas mãos, ele troca informações valiosas sobre alguns
amigos de sua irmã mais jovem, e, pela promessa de mais docinhos, promete levar
seus irmãos para junto da Feiticeira Branca. Convém notar que, a oferta
completa é mais complexa, visto que envolve também a opção entre ser herdeiro
sozinho de um reino, ou dividir esse reinado com as demais crianças.
Seja como for, ainda que o
que esteja em questão seja um possível reino, o que sela a negociata é o manjar
turco. Experimentei este doce há alguns anos atrás, presente de um cunhado
depois de uma viagem ‘azoropa’. Lembro de ter, inclusive, feito uma pequena
nota a respeito no Facebook, dizendo que os tais docinhos eram até bem gostosos,
mas não tanto para valer uma traição. Mas verdade seja dita, eu disse isso com
um lugar de fala específico: de alguém que não é lá muito fã de doces em geral,
e que se encontrava no conforto e calor de sua casa. Nunca se pode julgar
alguém sem ter vivido as mesmas situações, mas de qualquer forma, o que a
história do livro pretende também situar, é que existem certas coisas que não
se pode vender, por preço nenhum, e muito menos por uma bagatela.
Dentre essas certas coisas,
estariam, por exemplo, a vida de outras pessoas, sobretudo se essas pessoas
forem seus irmãos, por pior que sejam as relações que com eles se tem, e o quão
ressentido você seja por ser o terceiro filho de um total de quatro, o que te
impede tanto de ser o caçula mimado, quando o de ser primogênito mandão. E,
conforme a narrativa se desenvolve, ficamos sabendo que esta traição torna as
coisas bens difíceis para Edmundo e o Reino de Nárnia, até que tudo finalmente
seja apaziguado e volte à sua ordem, o que exige uma quantidade bastante
significativa de sofrimento e dor.
Esta é na minha opinião uma
boa história, dessas nas quais o bem sempre acaba por vencer o mau, não
importando a diferença gritante de tamanho e poder entre o lado dos bonzinhos e
o do grande mal – pois sim, além da inspiração bíblica, C.S. Lewis também era
um fã declarado e confesso de Tolkien.
Xinguano fumando - Autor: Elvis da Silva |
E por qual motivo trazer
esta passagem específica dessa história específica neste momento, em um texto
que no fim das contas vai descambar, obviamente, para a questão indígena? Por
qual razão não usar, talvez uma história indígena? Bom, talvez pelo fato de
que, para tratar da questão que me motiva a escrever nesse momento, nada melhor
do que utilizar uma história oriunda da tradição não indígena. Afinal, quero
falar sobre traição, vendas de coisas importantes demais por ninharias, e a
sedução de certas feiticeiras brancas por aí... Mas quero desde já deixar
avisados os leitores de que, ao contrário do enredo dessa história de fantasia,
na vida real, as diferenças de tamanho e poder determinam e diferenciam os lados
entre os vencedores e os vencidos. Na vida prática, o que determina o lado
vencedor não é medido pela bondade ou maldade a ele inerente, mas ao poder que
ele possui. E, mais especificamente devo dizer que poder, na sociedade branca
cristã ocidental é medido em cifrões.
Eis o porquê da minha
preocupação tão grande, e sempre crescente, acerca da proteção ao patrimônio
cultural indígena, e das inumeráveis situações em que esse patrimônio se vê
ameaçado, devido a relações inescrupulosas nas quais os povos originários são
ludibriados e enredados em teias sedutoras. Uma vez preso nelas, existe uma
grande probabilidade de ser despojado de uma série de coisas. Talvez até mesmo
da vida, já que quando se fala em ‘vida’ para os indígenas, está se falando de
coisas que vão muito além do corpo que respira.
(Pois
sim, eis o tema). Recentemente, estive na Assembleia da Associação das Artesãs
e Artesões Indígenas do Vale do Juruá, realizada na Terra Indígena Puyanawa
entre os dias 04 e 08 de fevereiro deste ano para, dentre outras coisas, fazer
uma apresentação acerca dos possíveis caminhos e instrumentos jurídicos para a
proteção do patrimônio cultural indígena. Não dá para deixar de pensar num
certo contrassenso, a propósito dessa questão: buscar meios no direito dos
brancos, para proteger a cultura indígena de uma ameaça criada exatamente pelos
próprios brancos, mas que seja!
A discussão acerca da
proteção ao patrimônio cultural indígena tem se levantado no Acre cada vez
mais, seja pelo fato de que alguns grupos têm se tornado mais conscientes das
ameaças que vêm sofrendo, seja pela razão de que essas ameaças parecem estar
eclodindo com mais frequência do que as larvas de mosquitos vetores de doenças.
Aliás, algo que sempre me chama a atenção aqui no Acre é que aqui a cultura
indígena é tão pulsante quanto é a quantidade de casos em que essa cultura é
espoliada e vilipendiada.
Jaci - Blog do Renato |
Pois, em se tratando do Acre
indígena, ninguém pode negar o seu incrível poder atraente, força atrativa essa
que tanto atrai um inumerável número de pessoas, com diferentes interesses. A
questão é que em meio a essa torrente de visitantes, aparecem muitas
Feiticeiras Brancas, com suas falas doces, sedutoras, ofertando trocar coisas
imensas, de valor inestimável por bagatelas. Acho desnecessário me alongar em
exemplos, mas creio que todo mundo conhece bem os tipos, e os seus discursos...
Palavras ocas, arrazoado pseudo-louvatório da cultura indígena, mas que,
analisado friamente, não passa de uma armadilha para roubar e lucrar em cima
dos conhecimentos tradicionais e milenares. E, infelizmente, tenho visto muitos
parentes se enredando por estes caminhos, caindo, caindo, se deixando seduzir e
enganar por esses discursos, vendendo a si mesmo e à sua cultura em troca de
nada. Ou por acaso existe algum preço que se possa dar à cultura e à
identidade? Creio que não...
Pois bem, a conversa que
tivemos na Assembleia visava justamente colaborar com os esclarecimentos dos
participantes sobre maneiras possíveis de resguardar-se desses ataques. Como já
disse outras vezes, os caminhos legais de proteção disponíveis não são
necessariamente capazes de proteger os direitos de agressão, mas podem ser
eficazes para, ao menos, servir para defesa desses direitos em casos de
judicialização. E assim, uma das minhas missões no evento foi, justamente,
apresentar algumas possibilidades de proteção.
Por outro lado, é também
importante frisar algo que eu tenho dito em quase todas as vezes em que sou
convidada a falar sobre o tema: quem de fato protege o patrimônio cultural são
os seus detentores, e a melhor forma de proteção é a manutenção dos
conhecimentos, e a transmissão dos mesmos para as novas gerações dentro do
grupo. Se isso não ocorrer,registro, marca, selo e todo este arsenal de
possíveis ‘proteções’ à propriedade são de todo ineficientes e pedem sua razão
de ser.
Gostaria de repetir e
repetir e repetir isso à exaustão: Não é a chancela de um órgão branco, nem o
reconhecimento da sociedade não indígena a respeito dos elementos da cultura
indígena que fazem o valor de desse bem. E se for somente por essa via que esperamos
conquistar respeito e legitimidade, então eu diria que estamos com problemas. E
bem sérios!
Do mesmo modo que essa
situação de determinados elementos da cultura indígena virarem ícone, ou ‘moda’
são, a meu ver, preocupantes, na medida em que são utilizados de uma maneira
totalmente esvaziada de significado, e, não raro, de forma desrespeitosa e
desconectada de seus valores mais fundamentais.
A propósito disso, gostaria
de citar que recentemente ouvi todo um arrazoado acerca do quanto era
importante a tradução para o português e diferentes idiomas e a inserção de
nomes científicos das plantas em um certo
livro de medicinas tradicionais indígenas. De acordo com o argumentado,
isso seria justamente o que constituiria a legitimação do conhecimento daquele povo
perante a comunidade científica. Sinceramente? Grande porcaria! Desculpe a
irritação, mas eu acho que existe algo de realmente errado, e perigosamente
errado nisto: desde quando um ‘pajé’ precisa ter seu conhecimento reconhecido
pela ciência ou pela academia branca? Desde quando é a ciência quem deve nos
dizer que tal coisa tem ou não valor? E, a propósito, nem seria preciso
comentar – mas irei – que em tempos como os que vivemos na atualidade, na
vigência da famigerada Lei da 13.123/15 (Lei que “estabelece regras para acesso
ao patrimônio genético, acesso ao conhecimento tradicional associado e
repartição de benefícios”), esse pretenso exercício de validação científica faz
de publicações dessa natureza um prato cheio, suculento e muito barato para
acessar conhecimentos tradicionais milenares.
Autor desconhecido |
Trata-se de um tema
espinhoso e grave, a respeito do qual se faz urgente um debate e
esclarecimentos junto aos povos indígenas, acerca dos riscos de certas
generosidades e ‘validações científicas’ desse tipo, que acabam por facilitar o
trabalho de pessoas com interesses espúrios para chegar ao cerne do
conhecimento tradicional, e lucrar – muito – com ele, enquanto muitas vezes os
povos indígenas e legítimos detentores desses saberes ficam “chupando o dedo”
(isso quando conseguem ficar pelo menos com dedos!). E estou assinalando
especificamente aqui os conhecimentos ligados à medicina, pois eles estão entre
os mais cobiçados segredos dos povos originários, justamente por conta dos
potenciais que possuem para dar lucro à indústria farmacêutica. E me desculpem
aqueles que se sentem atraídos e possuem certa fé nos discursos sedutores, mas
a verdade é que passados cinco séculos, já deu para aprender por demais a que
vieram, e continuam a vir, esse tipo de pessoa. Que ninguém se esqueça:
Inocência é um luxo que nunca foi permitido a indígenas!Já passamos por isso,
não é mesmo? Como comentou outro dia a parenta Joana Munduruku, “depois de
conquistarem o ouro amarelo, agora querem levar também o ouro verde”. Querem...
Afinal, como eu já comentei em outro texto, o raion é o gafanhoto que tem fome
perene. Tudo quer para si, tudo devora, tudo destrói. A questão é: vamos mesmo
deixar que leve?
Vale dizer que a discussão
referente ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético não
passa apenas pela apropriação indevida de alguns desses saberes, mas também
pela decisão dos povos indígenas de virem a comercializar ou não determinadas
parcelas de seus saberes. E creio ser desnecessário dizer o quão importante que
essa decisão parta exclusivamente dos detentores. (Desnecessário sim, mas digo
assim mesmo, porque a atualidade está cheia de situações onde o óbvio precisa
ser dito!). A comercialização é um tema controverso, eu sei... pois por vezes é
difícil pensar no estabelecimento de um preço para coisas que têm ligações tão
profundas com a identidade de um povo, mas, por outro lado, penso que muitas
vezes esse processo pode ser feito de forma a ser um instrumento de valorização
e fortalecimento cultural. Existem algumas experiências exitosas de alguns
povos, que têm comercializado uma parte de sua produção através de sistemas nos
quais o fato de serem produtos indígenas tornam-se um fator de agregação de
valor aos mesmos, como é o caso da Pimenta Baniwa, do mel do Xingu, dos
Cogumelos Yanomami, da Erva Mate Kayngang, da linha de roupas da Antônia
(Instituto Yawa), dentre outras iniciativas de sucesso que vêm se desenhando em
diferentes regiões do país, e que apontam que nem todas as relações com o
comércio necessitam ser sempre uma balança desigual em que os indígenas necessariamente
sempre sejam explorados e saiam perdendo. (De preferência, nada de manjar turco
ou feiticeira branca!)
Gostaria de citar por fim um
exemplo que, ao que tudo indica, pode se constituir num caminho eficaz de
proteção a um conhecimento tradicional coletivo. Trata-se, em realidade, de uma
das razões específicas pelas quais se deu a minha participação na citada
Assembleia no Juruá: o processo em andamento que visa o registro dos kenê Kuin (padrões gráficos produzidos
ancestralmente pelas mulheres do povo Huni Kuin em tecido de algodão, pinturas
corporais e, mais recentemente, em miçangas) como patrimônio imaterial
brasileiro. Este pedido, feito ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional - IPHAN foi motivado, justamente, pelas ameaças que vinham sendo
detectadas pelos Huni Kuin sobre o uso indevido e indevido de seus conhecimentos,
inclusive a sua utilização por parte do governo do Estado em um projeto
urbanístico que colocou alguns desses grafismos em lugares os mais inusitados,
de paradas de ônibus e calçadas a bueiros. Esse fato, causador de bastante
desconforto, seja pelo fato do uso algo impróprio de seus símbolos, seja pela
ausência de atribuição de quaisquer créditos aos seus detentores, acarretou num
movimento reativo que se deu mediante a criação da Federação do Povo Huni Kuin do
Acre, e no encaminhamento do referido pedido de registro ao IPHAN. Neste caso,
vale notar, não se está tratando especificamente de comercialização: há muito
tempo que objetos com kenê são produzidos e vendidos, e continuarão a ser, mas
houveum momento em que esse povo julgou ser importante realizar uma ação
visando a proteção deste conjunto de conhecimentos que detém, e consideraram
que para a efetivação dessa proteção se fazia importante o requerimento de seu
registro junto ao IPHAN.
O exemplo do povo Huni Kuin vem inspirando a outros povos indígenas a se interessarem pela possibilidade de
ingresso com pedidos de registro de elementos de seu patrimônio cultural junto
ao IPHAN, e, antevejo que a instituição tenderá a ser cada vez mais demandada
nesse sentido. Nada mais justo, a meu ver, considerando que a cultura acreana
é, antes e acima de tudo, eminentemente indígena. Portanto, é mais do que óbvia
a necessidade de um estreitamento de relações entre este órgão e as populações
indígenas.
Autor - Clovis Irigaray |
Mas quero relembrar o que eu
disse linhas acima, o processo de registro em si mesmo pouco valor teria, caso
ele não se desdobrasse em uma série de ações de valorização desse bem por parte
do grupo de detentores, os Huni Kuin. Ouso dizer que, felizmente, a percepção do
valor e da importância desse saber ancestral se revela presente, tanto na
continuidade da prática entre as ainbu kenaya,
quanto na consciência do povo em geral do valor – muito para além do
econômico – que seu conhecimento possui, inclusive enquanto diacrítico
identitário.
Nesse sentido, creio ser
válido ressaltar que o registro junto ao IPHAN nada tem a ver com venda,
entrega ou cessão desses direitos: O conhecimento é reconhecido como
pertencente àquele determinado grupo, mediante a elaboração de um dossiê de
pesquisa que visa caracterizá-lo detalhadamente, ressaltando assim a sua
singularidade e especificidade. Além disso, esse reconhecimento se constitui em
um processo que tem por objetivo também a execução de um plano de salvaguarda
deste bem, que é pensando em conjunto com os detentores, e que visa colaborar
com a continuidade da prática e transmissão desse conhecimento às gerações
futuras.
O exemplo do processo de registro
dos kenê também possui uma notável singularidade no que se refere ao arranjo
que vem se desenhando para a realização da pesquisa que subsidiará a preparação
do dossiê para fins de registro: Em uma iniciativa que considero bastante
pioneira, a Federação Huni Kuin, capitaneará a pesquisa mediante o
estabelecimento de um convênio direto com o IPHAN.
Desconheço a existência de
outras ações parecidas já realizadas no Brasil para registro de conhecimentos
tradicionais indígenas, onde, mediante este processo de ‘auto-pesquisa’ seja
possível à comunidade de detentores o protagonismo da realização de um
inventário dessa natureza, e confesso que vejo com bons olhos essa iniciativa
tão ambiciosa, por saber que dele há de resultar muito mais do que um dossiê
para registro. E esse ‘muito mais’ é, justamente, a produção de materiais em
hãtxa kuin que contribuirão para a salvaguarda desse bem, mediante a transmissão
para novas gerações do arcabouço de conhecimentos que compõe os kenê kuin, posto
que, e não é demais destacar, os padrões gráficos são apenas a parte visível de
um saber complexo que se conecta com diferentes áreas do conhecimento, e que
estão no cerne da conformação identitária do povo Huni Kuin.
Autor desconhecido |
O ato de tecer da sainbu kenaya está conectado às suas
histórias ancestrais de como a arte da tessitura e dos desenhos foram
aprendidos, do mesmo modo, o tecido se faz possível através de conhecimentos
sobre cultivares, fiação, pigmentação, cantos e medicinas que se aplicam aos
olhos a fim de tornar as mulheres capazes de ver o desenho para poder tecê-lo. E, envolvendo tudo isso, está
também o conhecimento do idioma deste povo, o Hãtxa Kuin, através do qual é possível comunicar corretamente os
conceitos e as informações para que tenham significado.
Permitindo-me ao trocadilho,
digo que se trata de uma trama complexa e bela, e que anuncia a potencialidade
de um belo desenho ao seu final. O fim dessa urdidura ainda vai longe... a
probabilidade é que vejamos o fechamento da tessitura lá pelos idos de 2018.
Mas, por hora, parece-me que tem tudo para ser um desenho muito bonito!
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