Por: Jairo Lima
A última semana do mês de setembro já ia dobrando a esquina do calendário, e eu ainda não tinha ouvido as cigarras que sempre fazem seu triste concerto nesta época do ano. Por onde andam as cigarras? Pude notar que não fui o único a sentir sua ausência, pois observei manifestações de outras pessoas sobre isso, nas redes sociais.
Um estranho cansaço tomou conta de mim nesta semana e junto com ele a melancolia acenava-me matreira, mas dela fugi, dedicando minha atenção e pensamentos a outras paragens mais positivas, longe de sua vista e influência.
Entre as labutas e pelejas diárias do meu indigenismo de cada dia me deparo com as mais diversas (e em alguns casos bizarras) situações, que me testam os limites constantemente.
Entre estas atividades costumo atender a visitantes que vêm de várias partes do mundo em busca de vivências nas comunidades, sendo estas, quase em sua totalidade, voltadas ao xamanismo. São atendimentos diretos e, em alguns casos, intervenções indiretas em situações que necessitam de uma atenção mais institucional para resolver alguma situação (muitas vezes desagradáveis), durante estas visitas.
Nesses atendimentos escuto histórias das mais diversas, vindas de pessoas dos mais diferentes arquétipos e com percepções das mais variadas em relação a si mesmas, e o que as movem em direção às localidades mais insólitas e distantes paragens destas matas amazônicas. Tem de tudo: aqueles que buscam evolução espiritual; os que buscam inspirações; os que buscam a si mesmos (olha eu aí); os que buscam compreender o sentido de tudo (eu de novo); os que buscam novas aventuras; os que buscam a ‘onda do momento’ e; os que buscam a cura de algum mal que enferma seu corpo e seu espírito.
E assim seguiu-se este mês, mas, um caso especial ocorrido nesta semana me fez resgatar lembranças e registros nada agradáveis, sobre algo bem delicado e perigoso que vem cada vez mais ocorrendo: pessoas em busca de curas alternativas para doenças graves, e que acabam por deparar-se com situações que podem piorar seu quadro de saúde.
O caso em questão foi a de uma estrangeira* que me procurou para obter mais informações sobre um ‘curador’, o qual havia sido indicado por um conhecido seu, que tinha tratado com um ‘agenciador’ do mesmo via email. Após todos os contatos e acertos feito por este amigo, o agenciador e o curador deveriam encontrá-la na cidade de Cruzeiro do Sul.
Segundo ela, chegando à cidade, esperou o contato, conforme combinado, que deveria buscá-la, mas este não apareceu. Como havia se informado antes de vir ao Brasil com alguns conhecidos que aqui vivem, sabia que deveria procurar informações em algum órgão indigenista local em caso de desencontros com seus anfitriões. E assim foi que nos encontramos, contando-me toda essa história.
Fiquei preocupadíssimo ao saber que a mesma descobriu recente estar sofrendo de um caso de câncer mamário, ainda no início, e este seria o motivo de se entregar aos cuidados e tratamentos do tal curador, com o qual havia acertado o pagamento com um valor bem alto. Valor que já havia adiantado uma certa quantia. Certo… o problema é que, ao saber o nome do ‘agenciador’ e do ‘curador’ me senti bem mal, pois conheço os dois, e sei bem que o tal ‘curador’ ainda é um jovem em processo de preparação nos mistérios do sagrado de seu povo e, apesar de ser um bom condutor de rituais de ayahuasca e possuir bons conhecimentos sobre tratamentos de panemas e desequilíbrios, eu tenho sérias dúvidas de que poderia se comprometer seriamente com o caso da moça.
Com muito tato conversei com ela sobre os cuidados que deveria ter ao buscar estes tratamentos alternativos, haja vista a delicada situação de saúde em que se encontrava e que se algo mais grave acontecesse com ela na aldeia, certamente isso seria prejudicial não só para si, como, também, para quem a recebesse. Disse-lhe, ainda, que era preciso buscar um bom curador, mais conhecido e com muitas referências, para que ajudasse em seu tratamento, mas, que ela tivesse a consciência de que este tratamento alternativo tinha seus riscos. Indiquei que, talvez, este poderia ser complementar a um tratamento com a medicina tradicional, fortalecendo seu corpo e seu espírito, limpando-o dos efeitos colaterais e fortalecendo-a para seguir adiante. Citei alguns exemplos que conhecia, como o caso da Dedê Maia** .
Por fim, falei que o valor acertado era muito alto, principalmente para ser pago diretamente ao ‘curador’ ou seu ‘agenciador’, sendo que que a aldeia que ela estaria indo possuía uma organização responsável por receber visitantes, e que, pelo meu conhecimento com estes, não cobravam ou acertavam valores para visitas deste tipo - de pessoas em busca de cura -, pois, geralmente, a pessoa somente pagava pela sua manutenção (alimentos) e, se quisesse apoiaria algum dos projetos da comunidade, em forma de doação ou de prestação de algum serviço mais especializado.
Claro que durante o papo, apesar de constantemente citar os cuidados com a sua delicada situação de saúde, não caí na falsa pretensão de dissuadi-la da ideia de buscar outras alternativas de tratamento, pois compreendo perfeitamente o sentimento que a move e já ví muitos casos do tipo, e sabia que ela iria de qualquer jeito, de maneira que tentei evitar que ela se metesse em situações complicadas. Por isso, dei as instruções de como ela poderia proceder com seu caso (de estadia em aldeias) e os cuidados que deveria tomar para que não viesse a prejudicar a si mesma ou à comunidade. Também a pus em contato com outros curadores que eu já sabia do trato que davam a situações delicadas como a dela, e que possuem bastante experiência neste tipo de atendimento, aliando o trato espiritual e o tratamento da enfermidade a um processo de conscientização da pessoa sobre sua situação, sem a iludir com falsas esperanças.
Terminado o atendimento resolvi ir pra casa. Estava puto da vida com toda essa situação. Não só pelo fato da mesma ter sido enganada, mas, sim, por toda essa ‘lógica de mercado’ que tem tomado de conta do sagrado indígena, e que faz com que situações do tipo aconteçam.
Não julguei, apesar dos pesares, a atitude dos txais que fizeram contato com ela, pois sei que os caras mal falam português, e duvido muito que tenham noção do que seria a doença da moça, além do que a mesma não fala português, o que contribui muito para toda uma confusão de entendimento entre as partes. Claro que esse descompasso cultural que estou citando não justifica, mas, ao menos ajuda a explicar um pouco desse imbróglio todo.
Minha indignação chegou ao ápice, ao refletir sobre a crescente monetarização do sagrado chegando a esse ponto mercantilista e indiferente de negociação, onde em primeiro lugar vem os acertos financeiros, e topa-se tudo, desde que pague-se por isso. E sim, acho isso errado e totalmente dissonante com a essência geral e a prática tradicional indígena de receber seus visitantes, principalmente quando se trata de questões de saúde, seja material, seja espiritual. Atenção, não confundir isso com o tal do ‘etnoturismo’, com suas vivências, festivais e etc. Hoje em dia, com pajés minando como água em nascente, ou com falsos xamãs aparecendo por todos os cantos como umas baratas, é bem difícil evitar cair em situações deste tipo. Porém, fico feliz em saber que atitudes e logros desse nível não são regra, e, sim tristes exceções nas comunidades indígenas, pelo menos aqui pelas bandas do Juruá.
Lembro que certa vez, em conversas com uns Txais queridos, entre estes um grupo de jovens que estavam começando a divulgar a cultura de seu povo para os nawa mundo afora, ouvi de um dos velhos: txai, olha só. Uma coisa é dirigir uns rituais, aplicar umas medicinas, dar uns assopros… mas tratamentos e dietas é preciso ter cuidado, pois para isso é preciso ter muito conhecimento, coisa dos velhos mestres e mestras.
Pois é. É um assunto complicado esse, delicado, mas que precisa ser discutido. E creio que o melhor momento é agora.
Por aqui, além dos ‘meninos’ que mal aprendem umas canções já são alçados à categoria de pajé por diferentes grupos e ‘parceiros’ que negociam/agenciam e os levam para realizar rituais mundo afora, ainda temos os falsos indígenas, padrinhos, terapeutas xamânicos (acreditem, existe mesmo), xamâs e o escambau a quatro que utilizam o tripé ayahuasca, rapé e kambô como se estes fossem uma espécie de cibalena que tudo cura. Muito amadorismo rola na parada toda. Isso me incomoda bastante. Sim, tem gente muito séria nesse ‘circuito do sagrado’, mas tem um bocado de placebo e misticismo de botequim rolando por aí.
Se acredito que é possível curar-se de qualquer doença através das mãos de um curador? - Respondo: acredito na mesma proporção que não creio ser possível curar-se de qualquer doença nas mãos de qualquer curador. Sacaram?
Já passei por situações de enfermidade em que minha redenção se deu pelas mãos de velhos e velhas, que me aliviaram e equilibraram meu espírito e curaram meu corpo. Mas não quer dizer que eu me entregaria a qualquer curador, e trataria toda e qualquer doença pondo a responsabilidade da minha cura somente nas mãos deste: Às vezes as doenças de branco só se curam com ajuda dos remédios dos brancos txai… nós ajuda e complementa. - Foi o que me disseram há muitos anos atrás numa roda de conversa no Jordão.
Cito um exemplo bizarramente triste: certa vez tive que ajudar uma comunidade a ‘resgatar’ uma pessoa que estava muito mal, em uma de suas aldeias, pois havia ido em busca de uma cura, mas não havia detalhado sua verdadeira situação de saúde ao ‘curador’ (a mesma era HIV positivo e estava muito debilitada), e tendo pego uma infecção grave, por pouco não veio a óbito dentro da aldeia. Foi uma situação pra lá de delicada e que mexeu bastante com a comunidade.
Eu entendo perfeitamente o que move pessoas, como a moça que atendi nesta semana e outras tantas que buscam meios alternativos e naturais de tratamento e cura. Acho isso válido, mas, creio que para receber e tratar essas pessoas, é preciso estrutura e um curador que possa ajudar nessa ‘passagem’ da pessoa. Vale citar que muitas dessas vem de outros países, falam outras línguas e possuem outras referências sociais e culturais. Assim, creio que para realmente atendê-las é preciso um pouco mais de estrutura e assistência. Não é só interná-la numa comunidade e lá ficar tomando cipó e algumas medicinas tradicionais que resolve a coisa, sem necessitar de um acompanhamento mais cuidadoso de quem as recebe.
Conheço alguns locais com estrutura e curadores que, antes de tudo, deixam claro que podem ajudar, mas que não se apresentam como o ‘cara que vai curar a pessoa’. E, na medida do possível busco informar para outras comunidades irem se espelhando na organização destes, e que orientem seus jovens estudantes da tradição e aprendizes dos curadores que tenham cuidado nessas situações.
Agora, nesse 'siribolo' todo, em que se encontra o mercantilismo do sagrado, creio que pior são os casos de pessoas e centros diversos que andam propagandeando ‘sistemas’ e tratamentos à base de sapo, ayahuasca e outras gororobas estranhas. Esses aí eu não confio mesmo. Basta olhar pra cara dos figuras que já dá pra notar que são uns tratantes. É pior porque são totalmente esclarecidos sobre as enfermidades que assolam o ser humano, possuem acesso e são esclarecidos quanto às percepções e diferenças sociais e culturais das regiões e países habitados pela ‘civilização’ que formam nossa cultura nawa. Por isso mesmo, não se justifica, e creio serem criminosas suas atitudes de se apropriarem do sagrado dos povos originários para se darem bem financeiramente.
É preciso cuidado galera… é preciso muito cuidado e bom senso.
Vou finalizando por aqui sem saber o que indicar ou o que dizer sobre esse assunto todo… literalmente ‘jogo o assunto pro ar’, torcendo para que outros possam pegar um cadinho e refletir sobre isso.
Boa semana a tod@s,
Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.
* Por questões éticas omito o nome e a procedência da mesma.
** Dedê registrou isso em um lindo texto (clique aqui).
- Créditos das Imagens: Todas as imagens são de autoria da artista Annelie Solis.
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