Por: Domingos Bueno
Rio Branco, segunda-feira, 18 de Dezembro de 2017. Sentado em frente ao computador após retornar da TI Puyanawa onde participei da I Conferência Indígena da Ayahuasca - Yubaka Hayrá, fecho os olhos e tenho a sensação de que tudo retorna: puya, puya puya puya (sapo sapo), o canto de abertura Puyanawa tanto da Conferência quanto das duas cerimônias de ayahuasca que ocorreram no primeiro e no último dia.
Isso talvez diga um pouco da impressão (mistura de algo que é registrado com pressão) sonora que permanece em minha memória sobre esses dias do que chamei de um festival de alegria e liberdade cultural/religiosa. Numa das falas do Mestre Bira Yawanawá ele disse: - Encontro de parente é igual namoro de jabuti: se bate mas se entende.
Ao longo dos debates que ocorreram sobre o uso, a liberação, o transporte, a bio-cultural-pirataria, o reconhecimento da sabedoria dos povos da floresta e os perigos da sedução oportunista do capital sobre os jovens xamãs, os parentes puderam falar sempre que quiseram, expuseram seus pontos de vista, discutiram, concordaram e discordaram mas em momento algum abandonaram o respeito e a diplomacia cultural que tanto os distingue. As falas finais foram sempre no sentido de procurar fazer o melhor, ser melhor, respeitar a si, aos outros e a natureza sagrada que vive e é a própria floresta.
No primeiro dia do encontro um sinal foi dado sobre as intenções subjacentes do encontro ao se sugerir concretamente que para falar de ayahuasca era necessário beber e buscar conhecer ayahuasca. Dai pra frente os dias se desenrolaram entre as falas das lideranças, o dia a dia da Terra Indígena feito de dormir sobre o colchonete no chão duro, tomar vários banhos no igarapé geladinho e registrar as falas dos encontros numa oportunidade única de ouvir dos próprios atores diferentes relatos de etnogênese, de demarcação de terras, de experiências místicas e da preocupação com a forma de lidar com esse tesouro precioso que infelizmente circula a cada dia em mãos menos hábeis.
Apesar das várias temáticas e abordagens é possível apontar algumas convergências nas diferentes falas, principalmente em relação ao receio de que as apropriações da bio-cultural-pirataria (bem intencionada ou não) possam ganhar contornos irremediáveis ou inelutáveis, seduzindo jovens indígenas desavisados para um mercado de raves e xamanismo de boutique, como bem disse a Daiara Tukano.
Seguindo o fluxo dos pensamentos e das mirações dos navegantes um outro se seguia: o dos pequenos animais da floresta que diariamente manifestavam-se para quem se despertava para ouvi-los, ou no meu caso que assim o fazia por estar privilegiadamente com fones de ouvido monitorando o volume do microfone, o que dava um panorama bastante particular daquilo que Bernie Krause chama de paisagem sonora: grilos,
macacos, pássaros, água e gente...
A essa polifonia juntavam-se cantigas, violões, chocalhos e sotaques de todo tipo, desde o norte da China, passando por xamãs viajantes latinos, até os jovens índios da região que esqueciam de desligar os cabos de energia e 24 horas por dia cantavam e tocavam canções de ayahuasca, cipó, uni, rami ou qualquer outra denominação utilizada para ayahuasca. Nesse ambiente multicultural ouvi canções Kayapó Korotire do Xingu junto com Ícaros da Amazônia Peruana cantados junto com hinários do Daime ao violão.
Durante a noite aconteceram projeções de documentários e curtas de temática indígena ou ayahuasqueira. Numa delas foi projetado o documentário Xinã Bena Beisikit, de Dedê Maia, com narração do txai Terri Aquino que, quase messiânico, disparou: - Eu adoro Haux Music (haux, numa definição bastante simplificada, é uma palavra sagrada dita pelos índios, usada para iniciar e fechar seus rituais, mas nesse caso referência uma localidade, um povo ou uma tradição de povos de língua Pano do Acre).
Passado meu primeiro minuto de estarrecimento, a frase “terrivel” começou a fazer sentido e desde então tenho refletido sobre esse tipo de manifestações que chamei de Hauxstock Indígena (na verdade acho que alguém disse algo assim e eu assimilei), com pequena participação dos não-índios, dedicado a pensar questões ligadas aos diversos usos nas diversas tradições indígenas que utilizam ayahuasca, bebê-la e cantar muita haux music.
Durante o evento aconteceram duas sessões oficiais de ayahuasca que foram organizadas da seguinte forma: durante a primeira parte os antigos xamãs cantavam seus cantos desacompanhados, em formato solo ou coletivo e após a segunda dose os jovens surgiam para cantar suas canções acompanhadas por instrumentos, fossem violões, chocalhos ou tambores sem uma formação rígida. Essa é a Haux Music.
Os participantes e lideranças indígenas tem clara essa divisão entre os cantos com e sem acompanhamento, significando um limite que precisa ser melhor compreendido entre o novo e o tradicional, o misturado e o puro ou o jovem e o velho. Embora respeitosas as tradições são muito distintas, mas isso não vem ao caso se aqui discutido.
A primeira performance foi dos anfitriões Puyanawa, que sofreram o processo mais ou menos recente de etnogênese, e cantaram no formato solista coro em uníssono, primeiramente parados (em torno de 15 pessoas) e depois movimentaram-se circularmente pelo salão causando um grande efeito de fade out/in provocado pelo distanciamento do ponto de registro sonoro.
O uníssono sofreu dois processos distintos na execução, de pitch rising e pulse rising, aumentando simultaneamente, e de forma coletiva o centro tonal e o pulso. Ao final do canto, quanto retornaram ao ponto de partida subiram quase 1 tom e meio, aceleraram mais de 20% o pulso e passaram de mf para ff, produzindo uma sensação de força e euforia que somente quem esteve presente pode falar. Quando o cacique dirigiu-se ao seu povo e aos presentes falou da felicidade de um povo que tem na mesma pessoa cacique e pajé dirigindo seu povo nos planos espiritual e material. Emocionante
Já a canção de Kene executada por Bira Yawanawa teve outro tipo de encanto, por ser solista e pela qualidade sonoro do cantor. Sentado no chão com suas roupas cerimoniais iniciou um canto preciso e suave, desenhando um fio labiríntico através do som. Com habilidade construiu uma performance delicada e firme. Natural e formal, como é o Kene.
Os cantos de cipó Ashaninka cantados por Benke são bastante diversos dos dois primeiros. Da mesma forma que Bira, Benke é um cantor formidável, dono de uma poderosa e controlada voz de barítono que utiliza para cantar e encantar de forma firme e sempre em volume alto. É necessário controlar o nível de gravação todo o tempo quando ele canta, pois sua poderosa voz preenche até os espaços distantes, quase como um grito de guerra que, dialeticamente, soa suave e equilibrado.
Para não me demorar demais nas descrições vou citar apenas mais um momento, cantado pelos jovens artistas músicos aprendizes de xamã. Na última noite, após os cantos tradicionais, os jovens foram chamados para participar, compartilhando seu repertório e habilidades.
Como se trata de uma música de formato mais ocidentalizado, com estrutura de compassos, tonalidade e fraseamento de MPB, torna-se um repertório facilmente adaptável a eventos que exigem repetição, pulso controlado ou movimento.
Posicionaram-se em meia lua dentro do círculo de cadeiras ocupadas pelos participantes do evento. Eu me posicionei com os equipamentos de gravação em frente a eles, há mais ou menos 3 metros de distância e os cantos começaram.
Sob um imenso céu estrelado o cantor puxador agradece a oportunidade e oferece a canção àquele espaço sagrado. Iniciando com algumas palavras em língua materna logo inicia a cantar as belezas da floresta e dos seres lindos que sempre rindo e brincando lá habitam. Agradece as estrelas que brilham e dançam ensinando e a Rainha Samaúma que vive no meio da natureza.
Com os vários violões tocando base e solando, o cantor acompanhado de um forte coro vocal feminino, junto com o cajon a meu lado fazendo a marcação rítmica, os participantes indígenas e não indígenas da cerimônia iniciam uma dança circular que passa no espaço entre mim e os cantores, girando, cantando, rindo e tocando seus chocalhos.
A massa sonora que se deslocava junto com o movimento coreográfico, somada ao som dos cantores e instrumentos sob o céu estrelado produziu um efeito de amplitude e bem estar difícil de ser explicado ou reproduzido.
Para aqueles que possam dizer que a Conferência não produziu uma grande reflexão teórica de cunho acadêmico sobre os usos, significados ou perigos da ayahuasca eu digo que, ao assim proceder, ela abriu espaço para que emergisse o que é mais fundamental nessa medicina indígena sagrada, que é sua capacidade de transcender as barreiras da estreiteza humana.
Domingos Bueno é Etnomusicólogo, Professor Mestre da Universidade Federal do Acre (UFAC) e Doutorando pela Universidade Federal do Paraná(UFPR).
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Créditos das imagens: Imagem 1 - Bruno Valentim; Imagem 2 - Maíra Dias; Imagem 3 - Ramon Aquim; Imagem 4 - Saci Filmes.
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