Por: Claudia Aguirre
Os loucos
Em maio deste findo 2017, participei do Seminário Internacional “Defensoria Pública no Cárcere e a Luta Antimanicomial”, ocorrido no Rio de Janeiro/RJ, representando a Defensoria Pública do Estado do Acre. O objetivo do encontro era tratar do papel da Defensoria Pública em relação às pessoas em sofrimento mental em conflito com a lei submetidas à medida de segurança, procurando estratégias para a efetiva aplicação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10216/2001). A medida de segurança é destinada para a pessoa inimputável ou semi-imputável que comete fato descrito como crime. Ocorre que a medida de segurança, ao contrário da pena, não tem prazo determinado: o seu término somente ocorre quando há a cessação sua periculosidade, a ser atestada por laudo psiquiátrico.
Mariana Weigert, professora de Criminologia da UFRJ, numa das mesas do seminário, apontou o exemplo genérico de uma pessoa que pratica um homicídio em razão de um surto de esquizofrenia: o Direito Penal como que se esquece que essa pessoa é esquizofrênica, e ela, ao fim, é penalizada – teoricamente, se diz que essa pessoa é inimputável e que a medida de segurança é para “tratamento”, porém... Vejamos o que ocorre no mundo real em seguida: Mariana cita o caso de “João”, pessoa submetida à medida de segurança de internação que vivia num manicômio judiciário e que, embora já tivesse recebido indulto, ali continuava, pois os pareceres psiquiátricos indicavam que ele era incapaz de estabelecer qualquer vínculo social e, portanto, não poderia ser liberado. Até que, no último laudo psiquiátrico, encontra-se a informação de que “João” se engajara nas funções da lavanderia do manicômio e ali tinha encontrado algum sentido para sua vida, e que agora mesmo é que não poderia ser desinternado.
Nos dizeres da professora, “João” serve a dois senhores – o direito penal e a psiquiatria – e deveria como que fazer um duplo esforço para obter a liberdade em comparação ao apenado “comum”, “são” – e não, ele não poderá usufruir de uma lei de saúde mental. João está num lugar híbrido submetido a estes dois saberes perversos, um lugar no qual tais “ciências” não têm as limitações epistemológicas que lhes são próprias, um lugar em que ele não é sujeito de direito, mas objeto de uma intervenção estatal. Guardemos essa metáfora dos senhores a quem se serve. Ela me provocou reflexões que exporei adiante.
Não por acaso, na mesma mesa do seminário, o professor Juarez Tavares, da Faculdade de Direito da UERJ, citou a sua experiência em uma visita que fez à Colômbia como observador internacional do plebiscito para referendar o acordo de paz naquele país. Lá, ele teve conhecimento de indígenas que vivem entre as fronteiras brasileira e colombiana que não se identificam como nacionais de quaisquer destes dois países, e assim vivem há séculos, numa realidade totalmente diferente daquela da sociedade envolvente. Como o Direito Penal deve tratar estas pessoas? Tem elas condições de compreender a norma penal? E ali não há que se falar em transtorno mental ou nada do gênero... “Eu acho que tem que tratar isso fora do Direito Penal”, completou Juarez.
De fato, continuou o professor, nós, brasileiros e latino-americanos de um modo geral, fomos colonizados pelo eurocentrismo no âmbito do Direito Penal. Temos uma população pobre, comunidades indígenas submetidas a séculos de violência, doentes mentais, que não encontram no saber jurídico um referencial teórico adequado a essas diversas realidades culturais, psicossociais, econômicas. O positivismo antropológico, jurídico e psiquiátrico do século XIX não dá conta disto.
Loucos e indígenas: renegados, excluídos, espremidos entre normas e saberes que não lhes pertencem, não os enxergam. Pode o Direito lidar com estas diversas realidades sem resultar em violência? Vejamos.
Sobre o soterramento, resistência e a arte
No meu último dia no Rio de Janeiro após o seminário, decidi ao Museu de Arte do Rio
Não por acaso, uma das exposições era “Lugares do Delírio – Arte e Sociedade no Brasil III”, cuja concepção tinha por objetivo demonstrar, pela arte, a força criadora do delírio que expõe a capacidade de todos de reposicionar a razão, e enxergar o que tem de potência libertadora nesta expressão. Um detalhe: não havia distinção entre as obras de artistas usuários ou não do sistema de saúde mental, elas estavam expostas sem esta menção. Assim, os loucos, renegados às masmorras físicas, sociais, epistemológicas, ali tinham um lugar à altura, eles tinham o seu lugar de ser na igualdade na arte. A arte pode igualar todos, incluir todos, conter todas as expressões de vida, expor todos os saberes. Eu acho que o Direito, se quiser compreender e abraçar as realidades possíveis, tem uma lição de casa pra fazer com a arte.
Só que eu ainda não contei o que eu havia visto antes disto naquele mesmo museu. Não por acaso, no primeiro andar do M.A.R. que visitei, dei de cara com a exposição “Dja Guata Porã – Rio de Janeiro Indígena”. Ao ver as obras ali expostas, meu corpo respondeu num choro... Antes que eu pudesse pensar numa explicação racional pra isso, meu corpo foi bastante soberano e falou por si, de uma forma muito antiga – e assim foi.
O que hoje conhecemos por Cidade Maravilhosa, no fundo, é a história do soterramento de civilizações inteiras. Eles e elas, os primeiros a estarem ali naquelas terras, tornados estrangeiros em seu próprio território de ser. Línguas, histórias, sistemas de conhecimento sobre a vida, a terra, dizimados - ou quase totalmente dizimados, pois que, de todo modo, continuam resistindo. De fato, há naquilo tudo que estava exposto uma fonte muito poderosa de um saber. E é um saber de resistência, de insistir em ser, que nos obriga a dialogar com o que foi esquecido, excluído, soterrado. Acho que a outra lição de casa do Direito é a de enxergar essa opressão enquanto tal, e a partir disto dialogar com esta resistência, ouvir a sua voz, pra pensar em como fazer daqui pra frente.
Não posso deixar de fazer este paralelo entre índios e loucos no sentido do não lugar, ou deste lugar de não ser em que foram historicamente confinados. Aliás, é sintomático que, tal como os loucos, os indígenas já estiveram sob o famigerado regime de tutela – objetos de intervenção, não sujeitos de direito, portanto.
E são tantos os senhores...
Eu começara a escrever este texto há quase sete meses. Muitas coisas me fizeram não terminá-lo... Todavia, as reflexões me perseguiram durante todo este tempo, e, não por acaso, vieram comigo para a aldeia, nesta 1ª Conferência Indígena Ayauasca – Yubaka Hayrá, na qual, como defensora pública, expus minhas reflexões sobre a livre circulação de medicinas por indígenas.
Nas longas pesquisas que fiz para preparar a minha palestra, não consegui adentrar no histórico de como o DMT (dimetiltriptamina) – o princípio ativo do nixi pae/uni/kamarãpi/heu - foi parar na lista de substâncias proscritas da Convenção Internacional de Psicotrópicos e da Portaria 344 da Anvisa. Mas, lá está ela, ao lado da cocaína, maconha, heroína.
As perguntas que não querem calar: quem formulou estas convenções e normas? Quem decide o que vai ou não pra tal da lista de substâncias proibidas? Quais os critérios utilizados para tanto? Com base em qual conhecimento? Em que contexto político esta escolha é feita? Estas perguntas são fundamentais para mim porque eu sei que toda lei traz um problema de saber e, consequentemente, um problema de poder – ou seja, o poder de dizer o que é, de nomear, de estabelecer uma verdade, e, a partir disso, decidir o que pode e o que não pode.
Eu ouço vozes nessas convenções e normas. Penso nos senhores, naquela metáfora, lembra? Eu ouço vozes - e são vozes de senhores. A primeira voz que ouço é do senhor da medicina, da ciência ocidental, que com a sua suposta objetividade é incapaz de captar outras nuances da existência humana, além de, muitas vezes, estar ele mesmo servindo a um outro senhor, que provavelmente é o senhor de todos, que é o Grande Capital. Porque uma substância é proibida... Até que se encontre um uso farmacêutico/psiquiátrico que seja interessante, não é mesmo? A segunda voz que ouço é de um outro senhor, um tanto moralista, que não pode suportar a existência de algo que altere/amplie a consciência, de outras interpretações, visões e vivências para além do que é palpável. Suspeito que este mesmo senhor é aquele que renega também o louco e o viciado, pois não compreende que a loucura e a drogadição deve ser lida numa rede de implicações psicossociais muito complexa e que, no caso dos viciados, vai muito além da substância em si.
Quando um indígena é barrado no aeroporto por estar com o seu nixi pae/uni/heu/kamarãpi, é esta teia de vozes que os captura. E disto extraio outra questão, que é: podem os indígenas participar desse poder de dizer o que é, de nomear, de estabelecer uma outra verdade, e a partir disto decidir o que pode ou o que não pode, e inclusive questionar o que se estabeleceu como aceitável ou não? Quando Evo Morales, presidente indígena da Bolívia, vai pra Assembleia Geral da ONU mascar calmamente a sua coca, demonstrando um hábito milenar de povos que são o que são, ele está desafiando a fala do senhor que diz que a mastigação desta planta deveria ser extinta em 25 anos – pasmem, é isso o que está lá na Convenção Internacional contra o Tráfico de Drogas.
Por outro lado - e curiosamente - a própria Convenção internacional de Psicotrópicos, a nossa lei de Drogas (lei nº 11343/06), e a Convenção Internacional contra o Tráfico de Drogas, trazem algumas exceções. A primeira convenção diz sobre a possibilidade do país signatário fazer reservas em relação às plantas silvestres que contenham substâncias proibidas e que são utilizadas por pequenos grupos, nitidamente caracterizados, em rituais mágicos ou religiosos. A nossa lei, por sua vez, segue esta exceção quanto ao uso estritamente religioso-ritualístico. Já a última convenção mencionada diz que os estados signatários deverão respeitar os direitos humanos fundamentais e levarão em devida consideração os usos tradicionais onde exista evidência histórica sobre o assunto.
Estas disposições parecem interessantes. Só que a interpretação de uma lei, como não poderia deixar de ser, também traz um problema de saber e de poder – e são muitas as vozes que irão querer interpretá-la. Então, quando eu leio “pequenos grupos nitidamente caracterizados, em rituais mágicos ou religiosos”, “usos tradicionais onde exista evidência histórica sobre o assunto”, posso ouvir os ecos de um senhor da antropologia/sociologia/história ortodoxa, com aquela noção de que se deve ter alguém que, desde o lado de fora, venha apontar o dedo e dizer quem é “índio” e quem não é, o que é “religioso” e o que não é. E finalmente, posso ouvir o senhor de um saber jurídico ortodoxo, que, de mãos dadas com outros senhores, apontam o que pode e o que não pode, e quem pode ou não exercer direitos... Isto é dramático quando falo do ponto de vista de um país pluriétnico, de uma pluralidade de realidades.
No Brasil, a Resolução 1 do CONAD excepciona a proibição para permitir o uso da ayahuasca para fins religiosos. Nela, percebe-se que seus considerandos assumem o uso não só por entidades religiosas como também por comunidades indígenas. Todavia, acaba por “recomendar” que os grupos que a utilizem estejam organizadas em pessoas jurídicas com cnpj, controlem quem e quantos são os “associados”, documentem o transporte da ayauasca, e toda a sorte de outras “recomendações” que simplesmente não condizem com a realidade, como modo de ser e com a organização interna das diversas comunidades indígenas. Diante disto, uma das discussões interessantes foi em torno da necessidade ou não de as comunidades indígenas se organizarem em pessoas jurídicas para que possam circular livremente com suas medicinas nos termos desta resolução.
Olha, não posso dizer que isso não seja uma estratégia possível e até mesmo interessante. Todavia, igualmente posso ouvir nela um sussurro das tais vozes, e o risco de, novamente, os indígenas estarem servindo a senhores. Porque, do ponto de vista da Constituição Federal, da Convenção 169 da OIT, da Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas, uma comunidade indígena não precisa de cnpj pra existir e exercer direitos, pra ser o que se é, com tudo o que isso inclui – com nixi pae/uni/reu/kamarãpi, com rapé, com cocar... Com tudo.
As várias vozes
É que quando eu piso meus pés de uma defensora pública na aldeia... Eu sei que estou
E eis que estava lá, na cerimônia de encerramento do 1º Yubaka Hayrá, tomando o heu. Se eu disser que estes momentos para os indígenas são “religiosos”, acho que estou mentindo... É além, a chave é outra. Porque estávamos no encerramento de um encontro essencialmente político – só que foi um encontro em que também se tratou igualmente de espiritualidade, de cultura, de ser, de ser um povo - e tantos povos. O político, o espiritual, o sagrado, a alegria, a cura, o pensar no futuro da Terra, enfim, isso tudo anda junto, tudo ao mesmo tempo agora. Como definir uma cerimônia dessas? Ouso dizer que tem muito mais de político do que “religioso”, por ser a afirmação de um modo de ser, um lugar de ser no mundo. Está isso incluído na tal resolução nº1 do CONAD? Ha!
Quando se está num terreiro comungando heu debaixo de um teto de estrelas; quando se faz parte de uma espécie de ciranda, dançando de mãos dadas em meio aos cantos de homens e mulheres que acordam cada uma das células de seu corpo, que curam na alegria; ou quando simplesmente se fica quieto, sentada/o, mirando as imagens da bebida da floresta que reorganizam as ideias, dão os insights precisos a respeito de tudo o que foi discutido e trocado durante o encontro, geram conversas que planejam um futuro em meio a um clima de comunhão e de carinho, enfim... A gente sente um gosto de alguma outra coisa.
O que “gosto” tem a ver com “saber”? Tudo. Saber vem do latim “sapere”, que significa ter gosto, exalar um cheiro, conhecer pelo gosto. Nessa raiz, eu não preciso vestir a carapuça da objetividade, das verdades abstratas, pelo contrário: é pressuposto que eu me envolva, utilize a língua, que eu caia na água, que eu sucumba a uma totalidade - e então é possível conhecer, produzir um outro saber. Pelo pouco que já experienciei, creio que o uso das medicinas para os indígenas tem a ver com essa visão/vivência da totalidade. Pasmem, senhores, é uma chave totalmente diversa do uso descontextualizado e patológico de psicotrópicos que funda o controle internacional de substâncias, é uma chave totalmente diversa da lógica do controle, é, enfim, outra realidade – na verdade, outras realidades, tantas quantas forem os povos e suas terras.
Quando eu leio na Constituição Federal que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos”, que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira... II – os modos de criar, fazer e viver”, que vozes eu ouço? Quando leio na Convenção 169 da OIT que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental”, que som chega aos meus ouvidos?
Ouço vozes plurais! Ouço vozes falando assim: olhem para nós, nós existimos assim e temos o direito de existirmos desse jeito, e quem diz isso somos nós mesmos – com nixi pae/uni/reu/kamarãpi, com rapé, com cocar, com cantorias, com tudo, com tantos quantos forem os saberes e realidades. Porque “cultura” não é só um “folclore”, uma data no calendário para uma “fantasia”, mas um modo de criar, fazer, viver – e, se pensarmos no sentido da autodeterminação, não precisaria de ninguém “de fora” pra enunciar isso. E, sim, isso deve valer dentro e fora da aldeia, porque aldeia não é “gueto”.
Nosso saber jurídico não está acostumado a dispensar os senhores e conviver essas múltiplas vozes, com esse carnaval epistemológico. Mas foi nada mais, nada menos, esta a proposta conquistada com tanta luta na Convenção 169, na Constituição Federal, na Declaração da ONU do Direito dos Povos Indígenas, em contraposição ao que Convenção 107 de 1957 da OIT estatuía. Em diversas oportunidades, pude defender que estes marcos normativos são uma releitura plural dos Direitos Humanos outrora pensados sob a ótica universalista/homogeneizante, branca, ocidental.
Evidentemente, o caminho do exercício de direitos não termina no que uma norma estatui, sendo importante reconhecer que os significados da lei estão sempre em disputa. Sempre. E quanto mais haja empoderamento e reflexões por parte dos diversos povos indígenas, quanto mais seja possível encontrar parceiros que auxiliem na amplificação dessas vozes, tanto mais poderá haver avanços no sentido da pluralidade. E se defendemos a liberdade de ser o que se é em relação às medicinas, é imprescindível reconhecer a correspondente responsabilidade. Não por acaso, as comunidades indígenas demonstraram estar dispostas e aptas a assumí-la ao recomendarem no Yubaka Hayrá que esta discussão seja feita com mais profundidade no interior de cada comunidade – porque é cada uma delas que deve zelar por seus saberes, por encontrar um modo generoso, sim, e ao mesmo tempo sábio, de compartilhá-los – e sem esperar que alguém ou algo os tutele ou controle desde fora.
Termino salientando que nada do que foi exposto aqui está fechado. São apenas reflexões compartilhadas sobre um tema longo, denso, complexo, sujeitas a outras tantas reflexões quantos forem as(os) leitoras(es). E com certeza a defensora que iniciou este texto já não é a mesma que o termina.
Cláudia de Freitas Aguirre, natural do Rio de Janeiro, paulistana por décadas porque a vida assim quis, acreana agora por vontade própria. Formada em direito pela USP em 2006. Defensora Pública Estadual em Cruzeiro do Sul/Acre desde 2014.
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Imagens: Imagem 1 - Altino Machado; Imagem 2 - Acervo Xinã Bena; Imagem 3 - IFAC; Imagem 4 - Raial Orotu Puri; Imagem 4 - Ramon Aquim.
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