Por: Maíra Dias
Passados alguns meses da Yubaka Hayrá*, um convite para a escrita de um texto sobre essa conferência tão especial me fez voltar no tempo. Olhar imagens, reler textos e refletir. Me alegrar pelos desdobramentos que estão ocorrendo, que confirmam para breve um novo encontro, o avanço dos encaminhamentos. Vibrar por ter tido a oportunidade de assistir esse momento histórico de troca e alinhamento, de ver garantidos replantios dessas sementes ancestrais. Lembrar dos momentos mágicos, encantados: línguas, cantos, adornos, pinturas. Relatos emocionantes de histórias de vida. Voltar àqueles dias é como rememorar um sonho lúcido. Mas também consigo examinar tudo que mudou em mim e nas minhas elucubrações, nos textos que na lida acadêmica vou escrevendo, nas teses a serem construídas neste meu doutorado em curso. A Yubaka Hayrá me ajudou a encontrar sentidos no que venho estudando, a entender um pouco da dimensão da ayahuasca dentro dessas comunidades, dentro dos seus modos de vida, e sobretudo do quanto é importante o reconhecimento e salvaguarda dessas referências culturais, da garantia do exercício de seus direitos humanos à cultura, à memória e às suas identidades culturais.
Mas esse texto não é sobre o que eu estudo, o que eu quero poder dizer a todos é como experiências como a Yubaka Hayrá são imprescindíveis na vida de uma pessoa nos mais variados sentidos. A vivência daqueles dias... comendo no refeitório, tomando banho no igarapé, comungando da mesma sacralidade da bebida e da natureza, viajando nos cantos tradicionais e dançando ao som da haux music... observando lideranças, escutando problematizações altamente complexas ditas de forma simples... entendendo a potência de uma conferência sobre ayahuasca com os dois frascos em cima da mesa. Percebendo o modo com que àquelas pessoas compreendem o mundo... trocando experiências com outras pessoas que há muitos anos estão entre os indígenas, pesquisando e vivenciando o que tive a honra de experimentar por primeira vez com esta profundidade. Não são memórias inocentes, esquecidas das tensões e controvérsias, mas cativadas em laços de afeto.
Os puyanawas, anfitriões hospitaleiros, trouxeram lições inestimáveis que muitas vezes são relembradas. A reconstrução das suas práticas culturais, sua história, sua espiritualidade. Um prato cheio para se fartar de refletir sobre os trânsitos da espiritualidade tradicional e as religiões cristãs, a importância da espiritualidade tradicional como base para o modo de vida indígena, os bens culturais imateriais como elementos fundamentais para resistência e qualidade de vida das comunidades tradicionais, a necessidade de pensarmos modos de salvaguarda para estes patrimônios que se adaptem à lógica indígena. E a ayahuasca, ou o heu no caso deles, imbricado nisso tudo, dentro do seu modo de vida tradicional.
Na verdade só essa reflexão acerca das nomenclaturas já me rendeu considerações. Claro que há o entendimento de “ayahuasca” enquanto termo genérico para designar a bebida, mas esse termo em quíchua reforça um mito da ayahuasca como uma sabedoria disseminada pelos incas, de uma primazia peruana. De fato, para essas comunidades indígenas presentes ali na Yubaka Hayrá, o nome ayahuasca não diz muita coisa é tão genérico que é pouco representativo (e talvez também o seja entre as religiões, que também não chamam a bebida sagrada desta forma). Uni, uni, hëu, kamarãpy e outros tantos nomes que nos introduzem a um universo cultural particular de cada um deles. Cosmovisões próprias, modos de vida próprios. Todos eles importantes, legítimos, complexos.
E eu, que estava lá só observando e procurando colaborar com as atividades operacionais, consciente que era uma conferência “de índios para índios” como foi falado tantas vezes, agradecia todo tempo e, até agora agradeço, a oportunidade concedida. Assim, escrevo em honra a essa memória nem tão distante, mas extremamente marcante. Vida longa à Yubaka Hayrá, conversando sempre certo no coração de quem pode ouvir.
* Yubaká Hayrá é a denominação indígena para a 1a Conferência Indígena da Ayahuasca, realizada em dezembro de 2017 na Terra Indígena Puyanawa, município de Mâncio Lima - Acre.
Maíra Dias é museóloga, pedagoga, especialista em Artes, Mestre e doutoranda em Ciências das Religiões. Estuda, entre outros, patrimônio cultural e plantas sagradas.
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Imagem: Frascos de cristal com ayahuasca sobre a mesa de discussões, durante a Conferência Indígena da Ayahuasca 2017 - Foto: Ramon Aquim
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