Por: Raial Orotu Puri
Este texto começa com o fenômeno meio poltergeist de um livro que surgiu em minha estante. Bom, o aparecimento em si não foi exatamente classificável como um poltergeist propriamente dito, já que o livro não fez nenhum barulho* que eu tenha notado. Em todo o caso, pelo fato de eu realmente não saber de onde ele veio, houve um certo barulho de meu cérebro em tentar entender de onde raios ele veio. E mais ainda quando atinei sobre seu conteúdo.
O mistério quanto à origem permanece, sobretudo por ter me dado ao trabalho de lê-lo, após o que concluí que jamais, em sã consciência, eu compraria um livro assim. Pensei também que talvez houvesse sido um presente, mas as pessoas de quem costumo receber presentes também negaram serem os presenteadores... A dúvida permanece, portanto.
Escrevo esta crônica, como eu disse, devido a este livro. Não exatamente por sua origem misteriosa, mas pelo que li nele, e que não me agradou. (E, a propósito, espero sinceramente que os próximos surgimentos miraculosos sejam de algum dos muitos títulos ardentemente desejados por mim. Inclusive, aos eventuais interessados, informo que possuo uma lista pronta que pode ser solicitada a qualquer momento...).
Bom, ok... a bem da verdade, preciso dizer que o livro em si não é ruim. O conteúdo é interessante, e a forma de dizer o que diz é bastante boa. Mas o problema não está no que ele diz, ou na forma como o diz, mas naquilo que ele deixa de dizer...
Pois bem, o conteúdo é um povo indígena. E, então, porque eu não gostei? Bom, o porquê está no tempo verbal usado no livro: o pretérito. Neste caso, o qual gramaticalmente se define como “perfeito” (mesmo que, aos meus olhos ele seja tudo, menos isso!), tempo verbal que indica ações determinadas no tempo, prontas e acabadas, finalizadas anteriormente ao presente... Lá está a história da chegada dos portugueses, as narrativas dos primeiros cronistas sobre os primeiros anos de ‘contato’, as lutas, os acordos, a resistência, a morte; narrativa entremeada de certo saudosismo, e das referências àquilo que este povo deixou de reminiscências, memórias, lembranças, registros, resquícios e influências para a formação do “povo brasileiro”... passado.
Eram, foram, estiveram, deixaram, morreram... passado, passado, e mais passado, ad nauseum... Uma obra de 286 páginas que fala centenas de coisas sobre um povo, mas estranhamente deixa de fazer menção que este povo segue vivo... Que deixa de dizer que eles não são só influências para um outro povo que se desenvolveu a partir da invasão rayon, tampouco a informação de que eles são uma, dentre as mais de 300 nações originárias que sobreviveram. Nem um capítulo, página ou parágrafo que seja sobre a cultura particular desse povo hoje, sobre o que ainda são, sobre o que ainda fazem, sobre o que passaram a fazer. Nem uma menção, tampouco uma entrevista, um registro do ponto de vista particular, qualquer coisa que seja... nem sequer uma notinha de rodapé! Nada!
E, sério... será que custaria muito ao historiador ter a respeitosa preocupação de ao menos fazer menção de que os Tupinambá, povo retratado no livro em questão, uma das primeiras nações a ter a infelicidade de topar com os invasores, resiste ainda hoje, passados 518 anos de massacre?!
Ah, sim, ‘veja bem’, trata-se de um livro da área da História e, afinal de contas, o método, os fatos, as fontes... Sim, entendo. Acreditem. Eu entendo! Entendo até demais, mas nem por isso me conformo, e deixo de me irritar com... Eu talvez devesse aprender a parar de ser tão radicalmente irritadiça com coisas que consistem “no método” de determinadas áreas acadêmicas. Talvez seja por viver em estado de irritação latente para com a própria Academia...
Talvez... Mas, porém, contudo, todavia... sabe o que é? Às vezes aquilo que você chama de ‘seu método’, eu conheço por outro nome, e ele me cansa: Colonialismo, o amigo mais chegado do racismo, e funcionário exemplar da empresa de maior sucesso do mundo capEtalista: A Genocídio & Etnocídio S.A., dona do oligopólio mundial da gafanhotagem, em suas mais diversas frentes de atuação – inclusive a altamente bem sucedida e em franca expansão área da apropriação cultural...
E, veja, por mais majestoso e imponente que tenha sido a figura de Cunhabembe – certamente bem mais do que Hans Staden conseguiu reproduzir em seus desenhos, diga-se de passagem – o Senhor das Onças atualmente se chama Babau, e ele não deve nada em majestosidade e imponência ao seu predecessor, sendo respeito o mínimo que você sentirá em sua presença.
Há ainda outra coisa que creio importante considerar sobre os que diziam, e os que hoje dizem Jauára ichê: Por mais assombrosas que pareçam aos olhos de hoje as narrativas sobre Cunhabembe devorando membros humanos e dizendo ao seu assustado prisioneiro ‘Eu sou o jaguar; sou o inimigo. Está gostoso!’, há algo de ainda mais espantoso e digno de assombro nesta história, e ela é justamente a resistência de um povo que, contra todas as perspectivas, e apesar de todos os ataques sofridos, resistiu, e ainda hoje permanece lutando, fazendo, e dizendo muitas outras coisas para além daquilo que os cronistas dos primeiros séculos registraram.
Cabe também ressaltar que, muitas vezes, os registros acabam forçando bastante as tintas na exotização das culturas que buscam retratar, prática essa, que, aliás, ainda que seja antiquíssima, permanece ainda em voga na atualidade com bastante força. Exemplo disso foi uma matéria jornalística que vi ontem a respeito de um game baseado em um mito ancestral Huni Kui, a qual começava com: “Antas, cobras e sexo com a mulher-jibóia”. Enfim, preciso comentar? Acho que não...
E, eu sei, não existe nada que me diga que o livro que motivou este texto tenha sido produzido com a intenção de invisibilizar a luta e a resistência do povo cujos registros históricos de séculos passados buscou esmeradamente colher. Do mesmo modo, também não tenho provas da má intenção do autor do título da matéria citada acima de caso pensado decidiu receber o prêmio internacional da tosqueira-sensacionalista... Mas o fato é que, algumas vezes, um bem intencionado trabalho pode incorrer em certos equívocos muito graves.
Bom... a essa altura pode ser que já se faça ouvir aquele famoso eco distante que se ouve sempre que um grupo minoritário cobra lugar de fala... ‘isso é tudo miii-miiiiiiiiii-miiiiiiiiiiii!!!’.
Claro! Afinal de contas, faz tempo aprendi que, lamentavelmente, empatia é um sentimento que muitas vezes tem a ver com ser portador da mesma ferida. E é por ter comigo também a dor daqueles a respeito de quem se diz que já estão mortos apesar de seguirem vivos, que livros tão bons, e tão ausentes de vozes dos viventes, me causam tanto desconforto.
Para mim é tão doloroso, porque a minha história, a história do meu povo, também foi escrita por letras, mãos e palavras de outros. E, de acordo com o esses outros dizem, meu povo está morto, e eu não existo. Somente agora, na atualidade, eu e outros Puri começamos a contar uma outra história, na qual os filhos das estrelas e da Acaiaca seguem vivendo e resistindo. Mas é difícil, sabem? É tão difícil conseguir fazer ouvir a nossa voz contra um muro de livros, e métodos, e Academias, que, com seus argumentos de autoridade não fazem ressoar, nem dão amplitude ao que estamos dizendo... É como tentar passar uma mensagem contando só sua garganta, enquanto alguém do teu lado tem todo um palco, holofotes, microfone e centenas de caixas de som a seu dispor. Como é que seremos ouvidos desse jeito?!
Eis, portanto, o motivo do meu espírito fazer-se barulhento. Mas entendam, não se trata apenas do livro. Como diz um personagem famoso de uma obra tão famosa que virou filme: “Isso acontece todo o tempo, no mundo inteiro.” ...Quem dera fosse só um livro! Eu falo de toda uma ordem de coisas, da manutenção de privilégios, da continuidade de preconceitos, da exotização de nossas culturas, de um processo histórico que lega às culturas indígenas apenas o passado.
Enfim, tudo o que eu queria era saber por qual motivo exatamente faz com que sejamos sempre colocados no passado, e, fazendo isso, negam-nos o presente, e a possibilidade de um futuro. Do porquê de nos tornarem invisíveis na contemporaneidade, e acabam por indiretamente dar força a discursos que nos deslegitimam enquanto indivíduos possíveis. Precisa mesmo ser assim?
E vejam, não é que eu tenha problemas com o passado, até porque o passado não é necessariamente a mesma coisa para nós e para os rayon, nem se apresenta do mesmo jeito. Ele não está tão longe assim, nem é tão impossível de ser acessado, rememorado e até mesmo mudado – pelo menos naquilo que não foi totalmente destruído ou maculado pela maldade do Invasor. O passado ancestral de meu povo está assentado sobre a rigidez de letras e registros, mas advém da memória dos velhos que se lembram, e das cordas, portas e pontes que se abrem, para aqueles que ainda possuem as chaves certas. O nosso tempo é outro. Ele não é feito de linhas retas, mas se dobra sobre si mesmo, e se abre, e se expande, vai e volta sobre si mesmo, ele não foi. Ele é. E continua... Enquanto nós pudermos carrega-lo.
Só que quando falo sobre isso, eu falo do passado Puri, a minha verdade que está adstrito a mim, e a meu povo, ao que lhe é particular e sagrado, e que não se aplica à verdade e à experiência de outros, sobretudo outros tão outros como são os rayon.
Ocorre que, no entanto, afora a minha e a sua verdade, há uma coisa chamada ‘convivência mútua’, uma coexistência que, por força de todo um processo histórico, se fez obrigatória para o meu povo, e para vários outros... E isso, não tem nada a ver com aculturação ou algo do gênero, mas com a necessidade de comunicarmo-nos com este mundo que nos envolve, e, não raro, tenta nos engolir. E porque há séculos nos negamos a ser engolidos, temos dito, e repetido, e seguimos dizendo, e seria muito bom se ao menos fôssemos ouvidos quando falamos...
Isso é uma outra faceta do respeito, que vimos demandando há tanto tempo. Respeito esse que neste caso não requer nada além de que vocês parem de escrever tanto sobre nós, sem nossa participação, perpetuando-nos, assim, na ausência.
Ah, sim... acredito que alguns estejam desde o início deste texto estejam querendo saber o nome do tal livro...
Bom, mas é claro que não vou dizer, já que não o recomendo...
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* Poltergeist é a junção dos termos alemães "polter" - que significa barulho, ruído - e "geist" - espírito, fantasma. Logo, poltergeist quer dizer literalmente "espírito barulhento". É também o nome de um filme de terror lançado em 1982, de autoria de Steven Spielberg.
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua como antropóloga no Distrito Sanitário Indígena do Alto Rio Juruá - DSEI-ARJ.
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Imagens: Imagem 1 - Oswaldo Guayasamin; Imagem 2 - Divulgação; Imagem 3 - Alfredo Vivero.
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