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Se na primeira conferência muito do que eu achava que sabia sobre os povos indígenas não só caiu por terra como foi além das estrelas, na segunda foi crescente a intensidade complexa de um conjunto de conhecimentos totalmente alheios a racionalidade ocidental, onde sentir em si, perceber da natureza e ouvir de seus ancestrais são metodologias validadas desde tempos imemoriais.
Eu, aluna de um programa de doutoramento, acostumada a assistir aulas, discutir conceitos, fazer anotações, frequentar conferências e seminários, me vi pasma com o que eu assisti acontecer. A minha sorte, talvez, fosse estar sentada a um computador relatando quase como máquina os argumentos que eram defendidos, em concentração para não perder uma palavra, porque cada uma delas denotava complexidade. E, sorte mesmo, era no final dos dias poder contar com o heu puyanawa para organizar/ressignificar tudo o que havia ocorrido, em mim principalmente.
Demorei para conseguir juntar ideias esparsas, observações que a mente divagava enquanto as mãos se atinham ao teclado do computador, mas uma mensagem do Jairo dizendo que esperava um texto lembrava a necessidade de relatar mais este ponto de vista do que foram aqueles dias, sintetizar as dimensões que eu pude presenciar.
O que assisti ruir, despencar de seu pedestal de certeza, foi a “ciência moderna”. Perdida em argumentos, se contradizendo. Eu cheguei a rir, de nervoso diga-se de passagem. É realmente um desafio desenvolver pesquisas, seja de ciências naturais ou humanas, de forma verdadeira, íntegra e, principalmente trazendo benefícios para os povos indígenas. E eles são claros: não querem pesquisa por pesquisa, não querem pesquisa que os use somente como fontes e não sejam beneficiários de seus resultados. Mais ainda, guardo para mim as palavras que exaltavam que as parcerias precisam ser seladas pelo espiritual.
Na primeira conferência assisti em alguns momentos aquele formato sendo testado, pessoas experimentando e notava-se uma ansiedade de como seria uma conferência indígena da ayahuasca. Na segunda, as lideranças indígenas presentes deram aulas, estavam a vontade sendo o que são, trazendo a certezas de seus conhecimentos. Posso destacar falas como as de Txana Ibã Sales ou de Seu Amaral Shanenawa, ou mesmo todas as narrativas das cosmogonias de vários povos que ouvi naqueles dias. E pra quem transita nos meios acadêmicos - fique sabendo - tudo com referências: ouvimos de Biraci Brasil que a floresta são seus livros, seus museus, e a ayahuasca, uni para seu povo Yawanawá, sua professora.
A segunda conferência indígena da ayahuasca foi uma grande aula, mas também uma grande imersão espiritual. “É o encanto...” ouvi durante uma conversa que se iniciou no refeitório. Sentei em roda no terreirão nos grandes rituais de união dos povos, mas também sentei em roda com alguns dos poucos nawás, iluminados pela pouca luz das lanternas e ouvi histórias da professora Dedê Maia, talvez repetindo o que vínhamos vendo durante o dia: a escutar solenemente quem tem mais experiência, quem caminhou antes por aqueles caminhos.
Nas duas conferências estive como voluntária para contribuir com o que fosse possível. E é preciso agradecer, porque colaborar foi uma maneira ínfima de retribuir aulas que graduação, mestrado ou doutorado nenhum pode oferecer. Uma verdadeira cátedra reunindo professores da mais alta formação. Os Puyanawa demonstrando no falar de sua língua, que quase se perdeu, como a bebida encantada ensina. Os Ashaninka trazendo a sua filosofia profunda para mostrar novas visões de mundo. Os Huni Kuin apresentando alguns dos seus doutores honoris causa como Txana Ixã Sabino falando com toda propriedade sobre o estudo ao qual dedicou sua vida. Os Yawanawá delineando as dinâmicas dos trânsitos espírito-culturais entre indígenas e não indígenas. Os Shanenawa testemunhando uma dinâmica ecológica-cultural: quando a raiz está firme, os frutos são fartos. É injusto não falar de todos os povos, porque cada um trouxe para a conferência seus conhecimentos e os compartilhou: em seus cantos, posicionamentos, presenças. Como não ressaltar o ensino da firmeza nos questionamentos de Lucila Nawá perante um cientista? Ou da persistência ensinada pelos Xypaia que viajaram em seu fusca desde o Pará até o Território Indígena Puyanawa?
Não, não é um cenário homogêneo, não se concordava todo tempo, e as diferenças são muitas seja entre os povos, seja entre indígenas e não-indígenas. Nossa memória tem sempre essa tendência de destacar momentos bonitos e esquecer aqueles mais tensos. Mas não quero fazer isso, talvez, porque, como uma entre muitas grandes lições assistidas naqueles dias, eu possa dizer que a discordância não era um conflito. Eram posições diferentes, cada um delas embasadas nas formas de entendimento de cada povo.Talvez algumas pautas não tenham saído “resolvidas” como alguns gostariam, outras iam se desvendando no decorrer dos debates e das cerimônias. E com a calma de quem sabe que no tempo certo o cipó vai florescer, se espera.
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Esse texto foi escrito e reescrito umas tantas vezes, mas sempre voltava a ele quando me vinha a lembrança do terreirão Puyanawa naquela noite fria de ritual com as estrelas rasgando o céu (em plena chuva de meteoros). Dádivas celestes no interior da floresta. A memória é farta e multidimensional. Guardo pra mim um tanto e me alegro em me irmanar a outros e outras compartilhando estas breves lembranças.
Maíra Dias é museóloga, pedagoga, especialista em Artes, Mestre e doutoranda em Ciências das Religiões. Estuda, entre outros, patrimônio cultural e plantas sagradas.
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