Obra de Tiago Tosh*** |
O Aquiry Indígena teve uma semana bem movimentada e
terminou com o movimento de caravanas de indígenas em direção ao Seringal
Empresa (Rio Branco), capital do Estado, a fim de participarem direta e
indiretamente da Conferência Mundial da Ayahuasca, que começa nesta
segunda-feira.
É um evento que muitos consideram importante, outros nem
tanto (meu caso), e que vem suscitando diferentes emoções e manifestações de
apoio ou protesto, tanto por parte de seguidores das diferentes doutrinas do
Santo Daime, quanto de lideranças indígenas.
Também tem aqueles que oscilam entre o apoio e o
protesto, manifestando-se a favor numa semana e contra na outra.
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Mas, o objetivo do evento é científico, academicamente científico –
foi a explicação mais ouvida sobre o evento.
O Acre é o berço da conhecida “doutrina do santo daime”,
que engloba três grandes correntes doutrinárias de uso ritualístico do chá
sagrado, de origem indígena. Doutrinas estas que se espalharam pelo mundo,
dirigidas em grande parte por grandes mestres e, logicamente, gerando interesse
acadêmico/científico pelo assunto.
Claro que junto com o crescimento das doutrinas,
diferentes interesses e possibilidades também floresceram, umas bem positivas,
outras nem tanto.
O chá, muito conhecido no mundo cariu* como ayahuasca, possui diferentes denominações, tanto no
mundo destes quanto no mundo indígena.
O objetivo da ingestão desta bebida sagrada,
apesar de aparentar grandes similaridades entre estes dois mundos, em sua essência
e método, possui detalhes que os diferem completamente.
Deixo claro que não vejo com maus olhos as doutrinas
daimistas, pelo contrário, não só me identifico como sou parte.
O foco de minha reflexão é bem mais profundo.
Como já deixei clara minha opinião, em outras postagens,
me sinto bastante incomodado com muitas das práticas do chamado “mercado
xamânico” que, assim como reconhece e beneficia direta e indiretamente as
comunidades indígenas, também é responsável pela banalização e mercantilismo do
sagrado indígena.
O antropólogo José Pimenta, ao se manifestar quanto a uma
recente publicação da National Geographic, foi feliz em um comentário quanto aos
“especialistas em cosmologia e
xamanismo indígena” que, após umas poucas
oportunidades de participarem de um ritual indígena se consideram conhecedores
ou herdeiros deste conhecimento e passam a realizar rituais mundo afora,
ganhando muito dinheiro, enganando pessoas e, em muitos casos, prejudicando os yuxin destas.
Obra de Tiago Tosh |
Esta reflexão eu estendo também para o campo científico, que
insiste em dissecar, rotular, criar teorias e construir conceitos que de nada
servem, a não ser para as carreiras de uns poucos, com a publicação de seus
estudos.
Claro que, assim como há pessoas ótimas e bem
intencionadas neste mercado xamãnico, também os há no mundo acadêmico.
Temos exemplos ótimos e diversos de benefícios para as
comunidades e o conhecimento indígena que são possibilitados através da
academia.
De publicações a participação de indígenas tanto como
palestrantes, quanto expositores e até como acadêmicos, é um movimento que vem
tomando corpo ano a ano, o que beneficia e muito os povos indígenas.
O que está “na mesa” não são os benefícios ou malefícios
do cientificismo sobre práticas espirituais que não possuem dogmas, como as
indígenas, por exemplo.
A questão que me toca, pelo menos em relação a esta
conferência e sua pretensão é exatamente o ponto sobre a qual a mesma, em
princípio, não trataria: o sagrado indígena e sua relação com a bebida dos
yuxin, ou seja, a ayahuasca.
Seus idealizadores não entenderam as manifestações das
lideranças indígenas, muitas destas, indignadas pelo evento não prever a
participação indígena, com acesso amplo e irrestrito.
Não entenderam que os povos indígenas do Acre não se
revoltaram com o evento em si e, sim, com fato de ser realizado na “aldeia do
Aquiry” terra de quatorze povos indígenas que ingerem a bebida e que foram
relegados como meros participantes, com cota e uma ajuda pequena para
participação no evento.
Também não entenderam a simbologia do local que escolheram.
Darei um exemplo bem claro: seria como realizar uma
conferência mundial do islamismo, pensado e idealizado por europeus, na cidade
de Meca. E neste evento, houvesse cota para a participação dos muçulmanos
nativos da região. Deu pra sacar?
Pois bem.
Ainda assim, como todas as dificuldades possíveis, os
nossos txais vão a Rio Branco, realizar suas danças e alguns rituais e, ao
contrário do que possam pensar, não é para embelezar ou servirem de atração
exótica do evento. A participação deles é para mostrar que esta “casa tem dono”.
Desenho de Tiago Tosh |
Também vi que teremos algumas figuras importantes como
palestrantes, como o Benky Ashaninka. Segundo ele, decidiu participar para
acompanhar o desenvolvimento da conferência e falar do “significado de tudo”,
procurando o diálogo para combater os “ismos” de nossa sociedade. Para ele é
importante que a real mensagem seja transmitida.
Vale citar que este txai sempre criticou a arrogância da
ciência de achar que de tudo sabe e gera, mesmo sem querer, a destruição de
muitas coisas. Nesse mundo vasto e infinito da Ayahuasca a ciência não pertence
aos homens.
Como bem me disse a colega Eliane Fernandes, grande
parceira dos projetos desenvolvidos pelo povo Ashaninka do Amônia, é um grande
problema as lideranças espirituais indígenas não estarem mais envolvidas nas
discussões, pois a ciência lhes pertence, toda a sabedoria desta bebida sagrada
e tudo que a envolve.
Tenho que registrar, além do Benky, que teremos sim,
figuras importantes e conhecedoras da questão, como a Bia Labate.
Também recebi manifestação de grandes lideranças e pajés,
como o Tashka Yawanawá, Biraci Brasil, Isáias Ibã Huni Kuin, entre outros que
não irão participar ou se fazer presente neste evento.
Sei que muitos colegas indigenistas e interessados no
assunto não concordarão com minha posição, mas fazer o que né? É o que sinto e,
conforme aprendi em anos de aldeia é que não devemos deixar certas coisas
presas dentro nós, pois podem nos desarmonizar ou trazer alguma panema**.
Então, creio ser a única voz dissonante nesta ópera, mas,
sem as dissonâncias, não haveria o debate.
E assim respondo, publicamente, à pergunta que um bom
número de pessoas me fizeram ao longo dos últimos três meses: você vai participar?
Não!
Também não me iludo pela propaganda oficial do evento,
nem com as informações de seu site bonito e bem sacado traz.
E digo, ainda, que fiquei surpreso com certos sites
estrangeiros citados na página principal da conferencia que, entre outras
coisas, vende produtos que, segundo estes, são dos povos indígenas do Acre.
Mas, as lideranças que perguntei nem sabiam sobre a utilização do nome de seu
povo nestes produtos.
A presença indígena, no volume que se dará, apesar da
pouca quantidade, só foi garantida
graças à intervenção e manifestação firme de
um grupo de lideranças indígenas e indigenistas que, apesar das dificuldades e desconhecimento sobre o processo organizativo da coisa, conseguiram mobilizar e movimentar representantes de suas aldeias para o evento.
Obra de Tiago Tosh |
Também vai estar rolando, paralelamente, às palestras no
campus da Universidade do Acre, entre atividades menores, uma concentração de
lideranças e demais representantes indígenas, que estarão realizando rituais e
mostrando um pouco da sua cultura material e sagrada (clique aqui). Que bom,
parece ser bem mais interessante.
Acredito que sob a luz do conhecimento e do poder sagrado
que emana deste vinho dos espíritos, todos tem seu cantinho, seu espaço, e o
caminho que seguem são distintos: indígenas, igrejas, new ages, estudiosos,
etc. Mas é preciso respeitar o espaço de cada um, manter a harmonia e manter-se
dentro de um limite, o que, a meu ver, no que concerne a este evento, não foi o
que ocorreu.
Tudo bem, beleza, muitos tem me dito que vai ser uma
grande festa. Com certeza será, mas, o que me incomoda é bem mais profundo que
isto.
Esse nosso Acre, de grandes pajés como o saudoso Inkamuru Huni Kui, de espíritos fortes como o velho Tuinkuru Yawanawá, e de seres celestiais como o velho Juramidam e o missionário Mestre Daniel é um local por demais sagrado, onde, em minha opinião, da maneira
como está se apresentando, esta festa poderia bem ser feita em outro salão
qualquer, longe daqui.
x-x-x-x-x-x-x
Epílogo:
Não poderia, também, deixar de citar a bola fora da
National Geographic em lançar o livro de “um figura”, sobre a Amazônia, baseado
em toda sua experiência de quatro meses visitando turisticamente a região (clique aqui). Isso
mesmo, quatro meses!
Boa semana a tod@s!
Jairo
Lima
* Cariú – não-índio, segundo os Shawãdawa;
** Panema – azar, desarmonia, problemas, etc.
*** Tiago Tosh é artista plástico radicado no Acre que, além de obras em tela, também faz lindos grafites nos muros da capital do Estado, Rio Branco. (clique aqui para ver o trabalho deste artista)
Me identifico com seu ponto de vista. Tomo ayahuasca a 10 anos (com orientação de curandeiros peruanos) e a 4 retornei ao brasil. Sempre que visito alguma igreja sinto uma espécie de apropriação do sagrado indigena, a roupagem cristã e a forma como transforma a tradição em um saber inferior sempre me incomoda, mas sigo na minha. Como voce mesmo colocou, cada um tem seu espaço e as diferentes formas podem servir diferentes tipos de personalidades e necessidades, mas é necessário respeito para não estarmos caminhando como cegos fundamentalistas defendendo apenas nosso ponto de vista ou um conto que os contaram e sim defender a consciência e o correto uso da bebida
ResponderExcluirPassei por lá, e vi aqueles gringos, doutores, estudiosos e seres extremamente místicos (não me refiro aos indígenas). Em um momento a consciência me perguntou: será que eles estão realmente reconhecendo detentores dessa preciosidade? ou será que isso é uma massagem no próprio ego? uma forma de dizer que estão tomando posse, de quem toma essa posse primeiro.
ResponderExcluirClaro que o debate precisa existir, não há como seguir sem um diálogo sobre Ayahusaca. Mas a próxima conferência precisa reconhecer mais (não só nas imagens e alguns temas)o Povo Indígena.