segunda-feira, 10 de outubro de 2016

POLÍTICAS UNIVERSAIS: Bolsa família e os povos indígenas...

Criança Shanenawa- Foto: Andreia Farias
Faz uma semana que se encerraram as eleições no Acre e não posso negar o alívio de que essa obrigatoriedade desnecessária ficou para trás. Não aceito muito bem este “cabresto” que nos é imposto. 

Aqui na terra de Galvez sessenta e um candidatos indígenas concorreram a vagas do legislativo e executivo. Destes, dez tiveram êxito: um prefeito, um vice-prefeito e oito vereadores.

A vitória do prof Isaac Toto Piyanko Ashaninka para a prefeitura de Mal. Thaumaturgo foi, sem dúvida, além de um marco histórico para o movimento indígena acreano, a consagração de uma trajetória de vida repleta de desafios e coroada de vitórias. Trajetória esta cultivada com muito zelo por este professor indígena que tive a oportunidade de conhecer no ano de 1999.

Mesmo dias depois do resultado das urnas, ainda era possível ver manifestações e matérias jornalísticas falando a respeito de sua vitória.

Das primeiras associações indígenas até a estrondosa vitória do prof Isaac, muitas barreiras foram transpostas e muitos preconceitos foram vencidos. Quem acha que o Acre, por ser um Estado tão rico e conhecido pela cultura de seus povos, não exista preconceitos e intolerância está muito enganado.

Uma fala do Isaac, em entrevista após a vitória, mostra bem isso: “Tentaram usar o fato de eu ser índio contra mim. Falaram que eu iria dividir terras do município para os indígenas e outras coisas, mas eu tentava informar a sociedade e desconstruir essas mentiras”.
Pelo Brasil, a partir do monitoramento das redes sociais, foi possível constatar vitórias de indígenas para as câmaras municipais. Vitórias modestas, claro, mas com um significado importante para o movimento indígena e indigenista.

Não me iludo achando que os resultados das eleições trarão mudanças significativas para as políticas indígenas, mas também, não sou tão jovem e cético para achar que essas conquistas não são importantes.


Num país continental como o nosso onde mudanças políticas, culturais e sociais ocorrem lentamente e são sujeitas a todo tipo de interferência e constantemente fragilizadas por interesses criminosos e obscuros, o trato da questão indígena deve estar pautada, também, em conquistas políticas.

Já citei em textos anteriores que vejo as chamadas “políticas universais” cegas para a diversidade cultural e social dos povos indígenas no Brasil. Cheguei, inclusive a citá-las, em alguns casos, como exclusivas e preconceituosas. Isso gerou alguns incômodos, percebidos e devidamente respondidos por mim nas mensagens que recebi.

É evidente o benefício destas políticas, mas ainda pecam em não possuírem espaço para suas adequações à cultura indígena. Pelo contrário, da maneira que se apresenta, é exigida que esta cultura é que se adeque às exigências da lei.

Se olharmos com atenção, podemos detectar vários exemplos das dissonâncias destas políticas para com a sociedade indígena. Nesta semana, reflito sobre uma destas políticas, mas aviso que o assunto não se encerra aqui, pois, voltaremos a este tema, no futuro.

Outro dia percebi uma celeuma entre participantes de um fórum sobre a questão dos
Casal Huni Kuin - Foto: Assis Kaxinawá
benefícios ou malefícios do Programa Bolsa Família para os povos indígenas, tendo como ponto de discordância uma reportagem que mostrava os problemas vivenciados pelas comunidades do Xingu e que, a bem da verdade, não se diferenciam muito do que ocorre em relação aos demais povos indígenas no país.

Os debates no fórum sobre os benefícios ou malefícios deste programa, como o fluxo de famílias indígenas que se deslocam para os centros urbanos, chegou a um nível onde os argumentos deram espaço para ataques pessoais entre os participantes. Ao final, o assunto se esgotou sem que se chegasse a uma reflexão construtiva positiva sobre o tema.

Eu “assisti” este debate com certo interesse, até porque, coincidentemente, entre os estudos e pareceres que escrevo, tenho me dedicado a um especificamente sobre este assunto para a procuradoria federal de Cruzeiro do Sul, atendendo a contestação do povo Ashaninka do Rio Amônia quanto às obrigatoriedades previstas para o acesso a este benefício.

Considero este um programa interessante, infelizmente o espaço para adequação à sociedade indígena é ínfimo, resumindo-se, de maneira geral ao processo de adequação para o acesso e etapas de cadastramento para recebimento do benefício. Assim, não há um olhar ou adequação à singularidade de cada povo ou, ao menos de cada região onde este programa é implantado.

Uma questão que reforça o que exponho acima é a contradição quanto ao entendimento dos conceitos de “extrema pobreza” ou marginalização a que as comunidades indígenas possam estar sujeitas. Nisso, há de se considerar também a “autoimagem” como parte da estima por si mesmo e para a valorização cultural. Se o conceito de “marginal” e “extrema pobreza” for algo diretamente ligado aos indígenas isso pode causar danos à sua herança cultural tradicional e, também, à sua identidade. Sem contar a visão com que a sociedade envolvente os vê.

Vários grupos indígenas não se consideram “pobres” por não apresentarem uma renda mensal, pois argumentam que sua riqueza está nos bens que a natureza lhes oferece.
Ao mesmo tempo em que desejam serem inseridos no programa do Governo Federal, muito embora de maneira diferenciada, vivenciam intensamente esta contradição, pois, uma vez que se tornam beneficiários do programa, estes não apresentam condições de abandoná-lo conforme a expectativa de que a transferência de renda teria um caráter imediato e permitiria, a longo prazo, a inserção do beneficiário no mercado de trabalho, tal como ocorre com a população não-indígena, embora saibamos que este tema também merece maior investigação.

A tal lógica – a de saída do programa – não se aplica à população indígena. Esta discrepância ocorre porque iguala diversos grupos populacionais com diferentes perfis visando um único caminho, linear, que deveria ser trilhado e construído observando-se as especificidades de cada povo. Em outras palavras, se a igualdade na condição de pobreza é a “porta de entrada” para o Bolsa Família, a transformação destes em possíveis trabalhadores, na lógica de mercado de trabalho da sociedade não-indigena, seria a “porta de saída” do programa, expectativa que é frustrada quando se trata da população indígena (e rural, acredita-se).

Assim, ao fazer parte do público que é beneficiário do programa, as comunidades passam a depender cada vez mais daquela renda que é buscada mensalmente sem que esta relação seja acompanhada de meios que promovam a sua emancipação.

Criança Nukini - Foto: acervo FUNAI
Entende-se que o Brasil Indígena é um mosaico de diferentes situações e contextos. Se por um lado temos indígenas no Mato Grosso (como os Guarani Kaiowá), passando por situações que os impele a esta vulnerabilidade/ marginalização extrema em decorrência de sua luta fundiária e social, por outro, temos comunidades, como algumas no Acre, que vem desenvolvendo projetos de desenvolvimento comunitário próprios ou apoiadas pelo governo federal e estadual. Por isso, é importante refletir quanto aos conceitos que permeiam este Programa, bem como sua aplicabilidade às diferentes situações deste “mosaico indígena”, já que os povos indígenas relacionam-se “entre dois mundos” (indígena e não-indígena).

Creio que temos que ter cuidado com as generalizações, principalmente quando analisamos questões tão complexas quanto este programa, pois temos diferentes situações, regiões, populações, etc. O que, por si só, já restringe muito o campo de visão e de análise da situação. O que pode ser bom para as comunidades em algum município do MT ou do PR pode ser um problema para outras nos rincões amazônicos, como no Acre.

Sem dúvida é possível afirmar que em alguma medida o Programa tem contribuído para a sustentabilidade alimentar da população, seja viabilizando a compra direta de alimentos, seja proporcionando as condições para a compra de ferramentas e instrumentos que são/serão utilizados na geração de alimentos (especialmente nos roçados e na pesca).

No entanto, da maneira como está hoje, o acesso ao benefício cria mais uma frente de desafios enfrentados por muitas populações indígenas.

É premente haver mudanças estruturais neste programa, e esse ponto, de certa maneira, já vem sendo observado, conforme citado em um interessante documento intitulado “Estudos Etnográficos sobre o Programa Bolsa Família entre Povos Indígenas”, produzido pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do (no momento extinto) Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Neste estudo é citada a necessidade da criação de um subsistema específico para este programa, com regras e procedimentos próprios, e que esta criação ocorra com a participação dos povos indígenas e suas representações.
Infelizmente, na atual conjuntura efervescente da política nacional, não sabemos se este indicativo ainda está no radar das intenções governamentais, ou jaz esquecida em alguma gaveta ministerial.

Marke Matis, eleito vereador Em Atalaia do Norte/AM - Foto: Carta Capital
A meu ver, ao analisarmos situações que vem ocorrendo em muitos municípios, principalmente nos localizados na Amazônia, há de se considerar também que o fluxo de indígenas para os centros urbanos não é só por “culpa” do Bolsa Família, que faz com que as famílias se desloquem para as cidades. Há de se levar em conta outros fatores que, cada vez mais, contribuem para este deslocamento e, em alguns casos, permanência das famílias no meio urbano: atendimentos de saúde, resolução de problemas diversos (registro civil, busca por benefícios junto ao INSS, etc).

Os diversos movimentos indígenas no Brasil nunca deixaram de exigir do Estado e dos órgãos da Administração Pública Federal a adequação, o aperfeiçoamento e a implantação de projetos e políticas específicas, destinadas a assegurar os direitos conquistados pelos povos indígenas nos últimos trinta anos.

Finalizando, creio profundamente que a garantia de direitos conquistados e a transformação das políticas universais só serão possíveis com uma intervenção política em prol destes povos, temas estes que não vemos pautadas pelos representantes nas diferentes casas legislativas no país.

Ao contrário, uma lida rápida nas pautas semanais do congresso nacional faz com que sintamos um arrepio na nuca ou um frio na barriga, pois se constatam os movimentos diretos ou indiretos da politicalha nacional, que buscam solapar o pouco que se conquistou desde a promulgação da Carta Magna de 1988.

Assim, quando vejo estas vitórias dos indígenas nas eleições (veja matéria a respeito aqui), como as ocorridas neste ano, fico muito feliz e esperançoso de que este movimento se torne cada vez mais consistente e aumente , a ponto de chegar até as esferas federais de tomada de decisão, pondo definitivamente as questões indígenas na ordem do dia, com direito à defesa contra as investidas destes poderes ocultos e colonialistas que insistem na integração forçada dos povos indígenas a um padrão nacional que, se olharmos com atenção, não existem. 

Mesmo estando divididos em diferentes partidos e orientações ideológicas (PT, PMDB, PP, etc), devemos considerar que a presença de indígenas nas câmaras municipais garantirá, além de um colorido e energia especial ao ambiente, a representatividade indígena, que tanto faz falta nas câmaras estaduais e federal.

Prof Isaac (primeiro à esquerda) - Foto: Acervo Isaac
A vitória do prof Isaac Toto Ashaninka e dos demais indígenas pelo Brasil assume uma simbologia especial, mais um sopro de esperança, e registro aqui suas palavras: um índio governar um município e os povos não-indígenas é uma alegria e um privilégio. Existe muito racismo e preconceito contra nós indígenas. Acredito que se eu fizer um bom governo, parte desse preconceito será eliminado, mas, se fizer um mau governo, pode continuar existindo esse olhar diferenciado para os índios.”

Pois é, prof Toto, desde que o conheci há dezesseis anos sabia que a estrela que brilhava sobre você um dia serviria de farol para o movimento indígena no Aquiry e, quem sabe, represente o início de sua caminhada para além dos limites políticos deste Estado, chegando, se Pawa* assim permitir, ao Planalto Central.

Boa semana a tod@s,
Jairo Lima

* Pawa – Divindade máxima dos Ashaninka (Criador do Povo Ashaninka).

2 comentários:

  1. Bom amigo Jairo Lima. É plenamente certo a informação passada pelos povos indígenas quanto o preconceito ainda existente contra suas etnias, mesmo sento diferentes povos indígenas de elevados valores tradicionais. No entanto Txai quando nos reportamos sobre tal preconceito sem fugir de realmente isto é um fato, temos que perceber que já alcançou-se grandes avanços no que refere aos direitos de cidadania destes queridos povos tradicionais que conhecemos muito bem. Graças a Pawa nossa luta tem possibilitado bons avanços e estes povos tem conquistado alguns bons benefícios. Por exemplo apesar do preconceito que sempre vai existir o querido Professor Isaac Piyãko como já esperávamos foi esmo eleito e com uma boa margem de votos em Marechal Thaumaturgo. o Vereador Nasso Kaxinawa da Terra Indígena Kaxinawá do Igarapé do Caucho foi reeleito em Tarauacá. O Vereador Raimundo Décio Kaxinawa também foi reeleito em Feijó. Já o companheiro e Cacique e Vereado Joel Puyanawa que já teve quatro mandatos consecutivos embora tenha feito muito por sua comunidade infelizmente foi traído por sua própria comunidade que desviou os votos que elegeria o Cacique para o Pastor Aureliano o (Preto) como é conhecido popularmente que não se elegeu mais conseguiu dividir a comunidade e de tal divisão saqueou quase 50 votos que elegeria o Cacique. Vejo nisso o mal causado pela Igreja Pentecostal instalada dentro da Terra Indígena contra o interesse da maior parte dos índios Puyanawa. Creio que ainda temos que trabalhar muito a organização social e comunitária das comunidades pois os interesses externos são muitos e muitas vezes perversos e não apenas preconceituosos. Ainda não Olhei como ficou as eleições no Jordão com relação aos candidatos Hunikuin. Também ainda não procurei saber sobre Santa Rosa do Purus mas, como se observa o Vale do Juruá contudo e apesar de Joel Puyanawa e Bertinho Nukini não terem alcançado a quantidade de votos para se eleger essa região foi trabalhada para alcançar seus maiores objetivos nas políticas publicas e inclusive nas eleições mais mesmo assim amigo velho vejo a necessidade de maior investimento na formação da consciência política dos povos indígenas. Sabemos que os não índios avançam na falta de organização interna das próprias comunidades indígenas. Refletindo, eu diria ao povo Puyanawa e ao povo Nukini que procurem fazer uma alto critica de seus próprios comportamentos diante da falta de coerência com seus pares medindo o prejuízo que alguns causam aos demais procurando apoiar gente de fora e estranhos as suas culturas tradicionais.

    ResponderExcluir
  2. Bom amigo Jairo Lima. É plenamente certo a informação passada pelos povos indígenas quanto o preconceito ainda existente contra suas etnias, mesmo sento diferentes povos indígenas de elevados valores tradicionais. No entanto Txai quando nos reportamos sobre tal preconceito sem fugir de realmente isto é um fato, temos que perceber que já alcançou-se grandes avanços no que refere aos direitos de cidadania destes queridos povos tradicionais que conhecemos muito bem. Graças a Pawa nossa luta tem possibilitado bons avanços e estes povos tem conquistado alguns bons benefícios. Por exemplo apesar do preconceito que sempre vai existir o querido Professor Isaac Piyãko como já esperávamos foi esmo eleito e com uma boa margem de votos em Marechal Thaumaturgo. o Vereador Nasso Kaxinawa da Terra Indígena Kaxinawá do Igarapé do Caucho foi reeleito em Tarauacá. O Vereador Raimundo Décio Kaxinawa também foi reeleito em Feijó. Já o companheiro e Cacique e Vereado Joel Puyanawa que já teve quatro mandatos consecutivos embora tenha feito muito por sua comunidade infelizmente foi traído por sua própria comunidade que desviou os votos que elegeria o Cacique para o Pastor Aureliano o (Preto) como é conhecido popularmente que não se elegeu mais conseguiu dividir a comunidade e de tal divisão saqueou quase 50 votos que elegeria o Cacique. Vejo nisso o mal causado pela Igreja Pentecostal instalada dentro da Terra Indígena contra o interesse da maior parte dos índios Puyanawa. Creio que ainda temos que trabalhar muito a organização social e comunitária das comunidades pois os interesses externos são muitos e muitas vezes perversos e não apenas preconceituosos. Ainda não Olhei como ficou as eleições no Jordão com relação aos candidatos Hunikuin. Também ainda não procurei saber sobre Santa Rosa do Purus mas, como se observa o Vale do Juruá contudo e apesar de Joel Puyanawa e Bertinho Nukini não terem alcançado a quantidade de votos para se eleger essa região foi trabalhada para alcançar seus maiores objetivos nas políticas publicas e inclusive nas eleições mais mesmo assim amigo velho vejo a necessidade de maior investimento na formação da consciência política dos povos indígenas. Sabemos que os não índios avançam na falta de organização interna das próprias comunidades indígenas. Refletindo, eu diria ao povo Puyanawa e ao povo Nukini que procurem fazer uma alto critica de seus próprios comportamentos diante da falta de coerência com seus pares medindo o prejuízo que alguns causam aos demais procurando apoiar gente de fora e estranhos as suas culturas tradicionais.

    ResponderExcluir