quinta-feira, 1 de junho de 2017

SOBRE ‘ELES’: os ‘outros’ sem rostos nem pátria...

'Raízes" - Frida Kahlo
Por: Raial Orotu Puri

Esse texto é, de certa forma, uma continuação ou desdobramento de meu texto da semana passada, no qual eu discuti questões sobre a [falta de] empatia, envolvimento e reação por parte da população não-indígena dos constantes atentados aos direitos (e à vida) que os povos indígenas vêm sofrendo. Sinto que é necessário aprofundar um pouco mais em alguns pontos que talvez tenham ficado um pouco obscuros, ou que precisam de mais ênfase. É claro que não estou fazendo isso de graça; esta motivação de voltar à discussão se deve a alguns acontecimentos dos quais tomei ciência, bem como de alguns comentários sobre meu texto anterior, e que me fizeram entender a necessidade explicar melhor o meu argumento.


Bom, os acontecimentos que aqui mencionarei são mais ou menos de conhecimento geral daqueles que acessam o Facebook, visto que todos eles circularam pelas timelines em maior ou menor proporção, de acordo com a quantidade de pessoas que as compartilharam e comentaram. Assim, parto do pressuposto de que nenhuma dessas notícias representa ‘novidade’, pelo contrário, algumas delas talvez já estejam arquivadas na categoria ‘notícia velha’, a despeito de representarem um passado com apenas uma semana de idade. (Como já dito, o fenômeno da internet proporciona maior velocidade de circulação da informação; as notícias e polêmicas repercutem muito e rápido, mas são esquecidas com a mesma rapidez.) Dado que são de conhecimento geral, não irei discorrer longamente sobre esses casos, pois para além dos fatos aqui abordados, gostaria de falar da conexão que vejo entre eles, e a respeito da qual gostaria de chamar a atenção. Em todo caso, para quem eventualmente esteja sobre algum desses assuntos pela primeira vez e queria saber maiores informações, basta clicar nos links colados ao final desse texto.

O primeiro ocorrido é a mais recente ação de desocupação da “Cracolândia” paulista, que começou no domingo passado, 21 de maio, e foi executada por um pelotão de cerca de 400 policiais. É importante destacar que se tratou de mais uma ação, pois não é nem de longe a primeira vez que isso se dá, seja em São Paulo, seja em qualquer outra cidade do país. A novidade talvez seja o estilo Lorde Farquaad do prefeito atual, e sua noção de ‘cidade linda’, na qual não cabe nada que não atenda ao padrão dele próprio. Como já era esperado, considerando que a medida não ataca o problema real, ele apenas foi transferido de lugar: a nova Cracolândia fica a cerca de 500 metros da área desocupada, e um mapeamento da polícia civil dá conta da formação de pelo menos 20 novos pontos de concentração na região.  

Muito se discutiu ao longo da semana a respeito dessa ação, tratando tanto da violência com que ela foi praticada, quanto do fato dessa medida não se voltar para oferecer uma resposta para a questão da drogadição. Admito que não existe resposta simples nesse caso. Nem simples, nem rápida, e nem provavelmente 100% eficaz. Só sei que, com toda a certeza, a maquiagem não resolve. Mas é claro, uma discussão desse tipo não tem propósito quando a questão envolve de um lado pessoas em situação de vulnerabilidade extrema e, de outro um prefeito higienista aliado a especuladores imobiliários, porque nesse cenário, a única lei que vale é a do dinheiro.

A segunda notícia que circulou bastante na semana se deu em um cenário bem distante de São Paulo. Na data de 24 de maio, no Pará 10 trabalhadores rurais, nove homens e uma mulher, foram vítimas de uma chacina naquilo que, em tese, seria uma ação de ‘reintegração de posse’ de uma Fazenda. A ação foi realizada por policiais civis e militares do estado, e, como não raro nesses casos, foi noticiada como se tratando de um conflito.
Autor: Grahan Franciose

Acrescente-se também a circulação conjunta da informação de que o grupo de trabalhadores estaria sendo investigado pelo homicídio de um vigia da mesma fazenda, e que essa informação foi inumeráveis vezes repetida pelos comentadores da notícia, como se uma acusação acerca de  um crime pudesse justificar a violência. E só para lembrar aquela ‘coisinha básica’ chamada Constituição Federal: no Brasil ninguém é considerado culpado enquanto não passar por todo o processo criminal. E só para lembrar também, em tese, a pena de morte não está regularizada no Brasil, não é mesmo? Mas enfim, nada disso vem ao caso, pois, evidentemente, não é disso que se trata. Não sei dizer se realmente houve um crime anterior. Pode ser que sim, pode ser que não, mas o massacre de que essas dez pessoas foram alvo é de outra ordem. Trata-se de mais dentre os inumeráveis casos de violência no campo nos confins do Brasil, onde a única lei que realmente vale é o dinheiro.

O terceiro caso ocorreu na Bahia, no dia 25 de maio. Tratou-se também de uma reintegração de posse, que resultou na remoção de 170 indígenas do povo Kariri Xocó, e na destruição de suas casas, plantios e sonhos. De acordo com a notícia, o ato foi conduzido por um destacamento policial ‘especialista em reintegrações’, que se deslocou desde o Rio Grande do Sul especialmente para esse fim. Em cerca de doze horas, a ‘equipe especializada’ destruiu toda a aldeia na qual 67 famílias viviam, e que foi construída em um espaço retomado há cerca de dois anos, em uma área que, de acordo com documentos, pertence ao DNIT, mas estava abandonada há pelo menos 30 anos.

Dado o desinteresse declarado pela terra em questão, e o reconhecimento de que, com a presença Kariri Xocó, o espaço finalmente havia conquistado uma louvável e bem sucedida ‘finalidade social’, já haviam sido iniciadas as tratativas junto da Funai para regularização do como território indígena. No entanto, eis que apareceu uma construtora com um papel de posse, e uma ação de reintegração, que foi deferida judicialmente, com a consequente ordem de despejo. Apesar de algumas tentativas por parte do Ministério Público de suspensão da ordem, a decisão foi mantida e a destruição ocorreu, a despeito da irregularidade óbvia da desapropriação de uma terra federal em favor de uma empresa privada, e independente da aberração jurídica de tratar-se de um ato processual ligado a um processo desaparecido. Mas, é claro, segundo a notícia sobre o caso, a tal empresa privada é representada por um grupo de 10 advogados, e, como bem sabido, no Brasil a lei que mais vale é a do dinheiro.

O último caso que quero aqui chamar a atenção, embora tenha sido em princípio menos sangrento, está carregado de violência. Na quarta-feira, 24 de maio, foi promulgada sem grandes alardes a nova Lei de Migração (PLS288/2013), que substitui o Estatuto do Estrangeiro. Apesar desse novo texto legal trazer alguns inegáveis avanços, notadamente naquilo que se refere ao reconhecimento da posição de vulnerabilidade de migrantes e refugiados, o texto remetido ao Planalto sofreu 30 vetos, alguns dos quais têm endereço certo: a criação de situações de ilegalidade e, portanto, criminalização dos povos indígenas transfronteiriços.  Trocando em miúdos, com a supressão do texto original, deixa de existir o reconhecimento ao direito de livre circulação das populações indígenas nas regiões de fronteira.
Autor: Jover

Acredito que não seja forçoso lembrar que as fronteiras chegaram muito depois dos povos originários, e que portanto elas não têm significado para povos que tradicionalmente não se reconhecem de acordo com esses limites. Também acredito que não seja nenhuma novidade para ninguém que, muitas vezes, exatamente a presença indígena nessas regiões é praticamente a única coisa que garante essa tão alardeada ‘soberania nacional’, motivo alegado nas justificativas para esse veto. Assim como também não trago nenhum fato novo quando digo que não são os indígenas que ameaçam as fronteiras, pelo contrário, essa medida, aliada ao também não novo fato do desaparelhamento da Funai para dar atendimento eficiente nessas regiões contribui de forma exponencial com o agravamento da situação de vulnerabilidade dessas populações, cujos territórios são frequentemente invadidos por traficantes. Também não creio ser necessário comentar que acho bem pouco
provável que a bancada da bala, uma das protagonistas da pressão pela supressão do texto não está nem nunca esteve efetivamente preocupada com soberania nacional porcaria nenhuma, e nem creio ser difícil concluir qual é o real interesse em questão. Também não penso ser difícil lembrar que o direito que foi suprimido no ordenamento faz parte de um arcabouço legal derivado de leis e convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, portanto, que deveria cumprir. Mas é claro, não adianta muito falar sobre compromissos internacionais neste país, onde a única lei que realmente vale é a do dinheiro.

Quis trazer esses quatro casos e comentá-los aqui, porque penso que todos eles são derivados da mesma matriz de relações desiguais, em que temos de um lado o poder econômico, aliado aos poderes constituídos e, do outro, um conjunto humano hipossuficiente em recursos e condições. A desigualdade é visível, assim como também é claro o movimento de utilização das instâncias constituídas no sentido de suprimir e ignorar garantias e disposições legais.  

E como deixar de evidenciar que todas as ações de desocupação e reintegração aqui citadas foram realizadas por forças policiais, inclusive um grupo de especialistas em destruição no caso dos Kariri Xocó? Forças policiais... É notável a presença de ‘forças policiais’ em boa parte das ações violentas contra os parentes Kaiowá no Mato Grosso do Sul, bem como nas realizadas contra os Tupinambá na Bahia, e os Gamela no Maranhão. Elas sempre estão por lá, seja fazendo parte da ação, seja sendo inertes durante os ataques, seja na omissão em investigar os crimes. Pois é, a instituição responsável por garantir a paz e a integridade física dos cidadãos está sempre presente nos momentos em que os indígenas são privados de sua paz, têm ameaçada a sua integridade física, e, não raro, perdem suas vidas.

E agora gostaria de tratar dos comentários que mencionei no início do texto, e que também me motivaram a escrever. Vale dizer que não estou fazendo isso no sentido de tentar enfiar goela abaixo o meu ponto de vista, mas de melhor explica-lo. Pois então, alguns dos comentários diziam que havia certa generalização no meu texto, ao apontar a inércia, e que a prova de que as pessoas estão lutando e reagindo é justamente a onda de protestos que tomou o país depois que circulou a gravação do dono do açougue. Estão é verdade. Mas não era bem disso que eu falava.
Autor: Fernando Costa

Naquele momento eu me reportava à falta de empatia e envolvimento especificamente com a luta indígena. E, sobre isso, mantenho-me categórica: existe muito pouca gente disposta a se envolver de fato para algo mais do que reagir com um emoticon e compartilhar uma notícia por meio virtual. Por isso mesmo, intencionalmente, eu comecei citando os dois primeiros casos que não envolvem indígenas, para que se entenda que o problema não é o fato de se tratar de ‘outro povo’. (seja como for, isso sequer seria um argumento válido, visto que ainda fazemos parte dessa coisa chamada ‘mesma humanidade’, não é mesmo?). Acontece que não é mesmo uma questão étnica. É questão de seletividade da solidariedade mesmo. É essa noção de que esse outro tão distante, lá na Bahia, no Pará, no Maranhão, no Mato Grosso do Sul está distante geograficamente demais. Mas é questão que a Cracolândia também está distante demais, assim como está distante demais qualquer coisa que não seja espelho suficiente. E isso, senhoras e senhores, é um problema muitíssimo sério!

O que liga drogaditos da Cracolândia, trabalhadores rurais e indígenas é o fato de serem hipossuficientes e vulneráveis, bem como o fato de que sua existência é sempre considerada um entrave aos interesses dos seguimentos que detém o poder econômico, e, por conseguinte, detém o poder de se beneficiarem do Direito (como já disse uma vez, o Direito é uma ferramenta e uma arma, e quando você sabe manejar bem, você pode fazer qualquer coisa com ela, inclusive matar). E o que tentei chamar a atenção em meu texto anterior, e volto a discutir nesse é que embora seja inegável que o Brasil está assistindo um levante da população contra os desmandos e escândalos do governo, é também inegável que esse movimento de reação não ocorre na mesma medida e intensidade quando se olha para casos de evidente desrespeito e violência contra grupos tidos como minoritários, para os quais algumas pessoas olham – quando olham – e pensam “não é comigo”.

Se não fosse assim, verificaríamos a mesma onda de protestos estourar no Mato Grosso do Sul, no Maranhão, no Paraná, em São Paulo, na Bahia, país afora. E, se 5 mil pessoas marchassem em protesto pelo menos uma vez contra um desses ataques, eu tenho a impressão que a frequência com que eles ocorrem iria baixar exponencialmente. E tenho de confessar que nesse momento eu não posso deixar de pensar na beleza de se ver que isso seria, e de me entristecer em pensar que nunca será...

Sobre a Lei de Migração, não é sem valor destacar que a notícia sobre a aprovação da mesma passou despercebida nesta semana de protestos. Aliás, não só ela, visto que também houveram diversas votações relâmpago sobre diferentes assunto, cada qual mais ameaçador do que o anterior, tendo por pauta a supressão e a ameaça a diferentes categorias e direitos.  

E é por isso mesmo que me vejo na necessidade de reafirmar o que eu disse anteriormente: todos esses protestos são sim muito necessários e muito louváveis, mas dá certo desespero que notar a ausência, a solidão, a vulnerabilidade que indígenas, comunidades tradicionais, drogaditos, moradores de rua, trans e tantos outros grupos têm de enfrentar quando são ‘só’ os direitos deles que estão sendo atacados. E eu gostaria também de frisar novamente que essa inércia acaba por servir de força propulsora para que os ataques se tornem cada vez mais amplos e generalizados, mais ou menos no esquema daquela frase do Bretch, sabem?
Autora: Annelie Solis

Portanto, o que estou tentando chamar a atenção é que o Brasil é – e cada vez fica mais – um país permissivo com relação à supressão de direitos e à violência contra populações vulneráveis e minorias. Ninguém reclama enquanto não é diretamente atingido. E, por conta disso também, por conta dessa prática de ‘pouca farinha, meu pirão primeiro’ é que as coisas acabam ocorrendo num crescendo como agora se tem visto. Esse agora assustador no qual vivemos, é fruto também desta inércia e falta de mobilização. Então sim, é ótimo que as pessoas estejam reagindo, se mobilizando, lutando. Ótimo, ótimo de verdade. E tudo o que eu espero que não seja tão tarde demais quanto eu temo.

Finalizo esse texto com a frase de Antônio Santos Kariri Xocó, reproduzida na matéria sobre a expulsão, pois ela me parece sintetizar aquilo que tenho tentado comentar, a primeira, que ‘todo mundo vê o que está acontecendo’ (e não faz nada!), e a segunda que não vai ter mais Brasil se continuarem com isso.
"Nesse momento me sinto muito triste. O despejo é triste. Você ver a casa, o seu teto, uma vida feliz sendo acabada. A gente passar mais uma vez um sufoco desse. Não é a primeira vez. No dia anterior, contamos por volta de uns 80 policiais, retroescavadeira. Tudo pra demolir uma aldeia numa terra da União. Esse governo, essa Justiça. Todo mundo vê o que tá acontecendo, quem são eles. Se pensa que vai ter Brasil fazendo isso com o povo indígena, se engana" (Antônio Santos Kariri Xocó)
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Links para saber mais:
Desocupação da Crackolância:
http://www.redetv.uol.com.br/jornalismo/cidades/policia-realiza-operacao-contra-trafico-de-drogas-na-cracolandia
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-05/expulsos-da-cracolandia-usuarios-de-drogas-permanecem-na-regiao-central-de-sp
Chacina no Pará:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-05/chacina-no-para-deixa-10-trabalhadores-rurais-mortos
Reintegração de posse na Bahia:
http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=9294&action=read
Matéria sobre a nova Lei de Migração:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/veto-na-lei-de-imigracao-aumenta-a-criminalizacao-de-indigenas


Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).

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