Por: Raial Orotu Puri
“Esse, esse é o nosso último tesouro, o único que ainda não levaram. Esse não podemos deixar de jeito nenhum levar embora!!”Essa frase preocupada e incisiva foi dita numa reunião que tive dia desses, aonde conversei com um parente que apresentava o resultado ainda parcial de uma pesquisa que ele vem fazendo há alguns anos, sobre uma parte específica da tradição de seu povo. Foi uma conversa delicada e muito interessante, a qual, obviamente, não irei aqui detalhar. Ajudei naquilo que podia: do ponto de vista de meu ‘ethos’ com formação em direito, dei indicações específicas sobre caminhos jurídicos para proteção daquela pesquisa e daquele conhecimento, e do ponto de vista pessoal, dividi com ele a minha preocupação acerca da necessidade de proteger os segredos dos olhos ‘alheios’.
Devo dizer que já tratei deste tema algumas vezes, en passant, em meio a outras reflexões, mas escrever especificamente sobre isso é algo difícil, e esse é o motivo pelo qual a crônica vem sendo quase que semanalmente adiada. Mas, como é sabido, um problema não desaparece apenas porque você não fala dele, e eis que tentarei agora... Ou tentarei, ao menos, explicar sobre o quão complicado para mim é falar disso. Aviso de antemão que será um texto nervosinho, e provavelmente estarei sempre à beira de trespassar da defesa [daquilo que me é Sagrado] à agressão [àquelas situações de desrespeito que tão frequentemente eu vejo.
Bem, como é de conhecimento geral, a questão do Sagrado é um tema em efervescência no Acre, onde atualmente vivo e trabalho, visto que o mesmo perpassa uma discussão perene acerca dos limites da ‘difusão’ de valores culturais dos povos originários para além das fronteiras do universo tradicional. Ocorre que o universo sagrado indígena dos povos que habitam a Amazônia acreana é, de fato, rico, interessante e, para o bem e para o mal, tremendamente atraente. Obviamente, estes conteúdos despertam o interesse geral, notadamente naquilo que se refere às substâncias utilizadas em rituais, devido em parte às propriedades inerentes a essas substâncias, e em parte à riqueza com que são apresentadas.
E só para citar como exemplo a grande ‘vedete’ do sagrado indígena local, é bastante óbvio para ser ignorado que a junção entre o cipó e a folha é só uma parte daquilo que faz dessa mistura a ayahuasca, [ou nixi pae, ou huni pae, ou uni pae, ou kamarãpi, ou kamalanpi, ou shuri, ou yajé, ou kaapia; ou qualquer outro nome que se dê...] outra parte tem a ver com quem e como colheu, quem e como bateu, quem, como, e o que cantou; quem, como e onde serviu; quem e como estava quem bebeu, quem eram e como estavam os que partilharam, o que e como cantaram... E, acima de tudo, a parte maior: Quem veio, para onde levou e o que foi aprendido... coisas essas... indizíveis.
E eis aqui uma questão que penso ser um grande complicador nesses processos de difusão cultural, que muitas vezes beiram à invasão: até que ponto essa difusão pode chegar? Até que ponto ela não é um reducionismo de um universo muito mais vasto? Tudo isso são
conjecturas que se fazem necessárias. E, creio eu, cabe refletir se talvez esse reducionismo não acaba por ser a única forma possível de abertura desse sagrado, visto que existe um cerne mais essencial e profundo que não pode ser do conhecimento de todos.
E esse é o primeiro motivo pelo qual me é tão difícil falar de Sagrado: porque dentro da minha cultura, bem como da minha percepção e forma de pensar, o Segredo é um dos principais componentes daquilo que é Sagrado. Ele é restrito a um grupo limitado de pessoas, não é para ser publicado no jornal, não é uma coisa que se faz textão a respeito. Não é nem de longe aquilo que pode ser sintetizado em um texto acadêmico, ou em um Manual de práticas. Porque o Sagrado é em si mesmo, e dele não se fala muito.
E sim, em alguma medida, isso também tem a ver com uma máxima que é bastante corriqueira para todos os estudiosos que se propuseram a estudar temas correlatos ao uso da ayahuasca: o famoso “se você quer realmente conhecer, precisa beber o chá”. Realmente. De fato. Sem dúvida. Mas não é ‘só’ a isso que me refiro.
O que quero dizer com ‘não falar’ a respeito do Sagrado assume uma dimensão muito mais literal em muitas tradições indígenas, e não tem só a ver com a necessidade de uma experiência per si das coisas, visto que se relaciona também com o pressuposto de que determinadas coisas, e notadamente as coisas sagradas, não são feitas para serem comentadas, nem para ser de conhecimento geral, sob pena de, inclusive, perderem sua eficácia. Isso é tão marcante em alguns povos, que ele passa a ser refletido na literatura produzida a respeito desses povos, aonde o silêncio em torno de assuntos como as medicinas e os rituais são tão concretos que muitos chegam a se perguntar se aqueles povos simplesmente não possuem essa dimensão ‘ritual’ em suas práticas. Mas possuem. Possuem muito, possuem pra caramba. Só que se sairmos falando, as coisas deixam de funcionar.
Vou usar aqui um exemplo efetivo: na tradição de alguns povos do tronco Macro-Gê (da qual fazem, dentre outros, os Kayngang, Xokleng e os Puri), existe um “remédio do mato” que muitas parteiras indígenas usam para aliviar as dores do parto. É extremamente eficaz e corrente, mas só o é se não for falado seu nome – nem mesmo para a parturiente. Se por alguma razão a parteira inadvertidamente conta o que está usando, imediatamente as dores recomeçam, pois que o remédio perdeu sua eficácia. Esse segredo é restrito, e somente partilhado entre aquelas que são incumbidas de aparar as crianças, que o passarão reservadamente, quando e para quem for devido. Isso é sério. E é levado a sério. É uma forma de proteção do conhecimento, de mantê-lo vivo, permanente e durável. Acessível só a quem interessa, e eficaz porque sua difusão se faz de maneira controlada. Arranjo perfeito e bem mais efetivo que o registro de bens do IPHAN, a propósito.
Eu sei que o exemplo aqui é radical, mas frequentemente sou levada a pensar a respeito disso quando converso com os parentes aqui do Acre sobre a forma como seus conhecimentos milenares vem sendo difundidos para fora dos limites dos povos a que pertencem, seja essa difusão realizada pelos próprios indígenas ou não. A despeito de não encontrar similitude total entre os povos amazônicos com os quais tenho convivido mais de perto e as práticas do meu povo e de outros que conheci, eu sou levada a intuir que também existam para eles algumas fronteiras que não são transponíveis para ‘qualquer um’, e que somente a partir de muito estudo e prática podem ser acessadas.
E aí entra a segunda grande dificuldade que tenho com essa coisa do “Sagrado difundido”: o fato de que ele não respeita o tempo necessário para o aprendizado. A verdade é que o mundo branco é feito de pressa e impaciência, é feito de fast food, de horas contadas, de prazos e de relógios, de validação científica, de amostragem, de questionários e provas. E é realmente muito difícil para aqueles que vivem nesse mundo, que não se abandonam de fato à completa atemporalidade do Sagrado, se conformar ao fato de que simplesmente não tem como absorver, aprender, compreender e transformar toda uma natureza em um final de semana, quinze dias, um mês, três meses, ou um ano que seja, muito menos para que alguém possa ter a ousadia de acreditar que aprendeu, e se dizer portador de luz, conhecimento, sabedoria ou seja lá o nome que se dê.
E não quero dizer aqui que não aconteçam casos de gente que têm uma transformação radical instantânea. Tem. Assim como existem aquelas histórias das pessoas que ‘já nascem prontas’. Tem também. Mas tratam-se de histórias extraordinárias, a respeito de indivíduos extraordinários, e por isso elas não falam do modo como a coisa se passa com todo mundo. Para a maioria dos indivíduos, é exigido uma dedicação muito grande para conquistar o equilíbrio mínimo para lidar consigo mesmo, e só depois, bem depois, é que se alcança alguma outra esfera na qual se tem condições de ser ‘guia’ de outros. E, vou dizer uma coisa: se as coisas se passam de forma assim tão fácil e simples, eu desconfio que tem alguma coisa bastante errada aí.
E devo observar que isso que eu estou dizendo reporta-se a indígenas. Estou falando de indivíduos nascidos dentro de uma cultura, e que decidem, ou sentem-se chamados a aprender sobre o sagrado de sua própria cultura, e que terão de se submeter ao tempo necessário de aprendizado, dedicação, dietas e o que mais for exigido deles, caso pretendam persistir nesse caminho. E se é assim para aqueles que são nascidos dentro dessas tradições, muito mais complexo e custoso será para aqueles que precisam subverter suas próprias naturezas afim de acomodar o tipo de Sabedoria em questão. Por isso, não adianta teimar, vai demorar, vai dar trabalho, provavelmente vai doer um bocado, e só mesmo com muita persistência é que se fará possível alguma transformação e caminhada. E, mesmo assim, bonitos, que fique muito claro: liderança não é para o seu bico. Portanto, nem tentem.
E aí é que está o nó da questão, quando de repente vejo pulular movimentos encabeçados por brancos que dizem ter aprendido as práticas xamãnicas junto de um determinado povo indígena, e oferecem seus serviços mundo afora, geralmente a preços exorbitantes. E deve-se ter atenção a esse fato, a monetarização do sagrado, o fato de colocar nele um preço, de criar um ‘nicho de mercado’ para atender uma clientela que paga para participar de rituais e práticas terapêuticas.
E isso porque, vejam, estamos falando de mundos diferentes, de naturezas radicalmente diferentes; para passar de uma a outra, há necessariamente que transcender. Em outras palavras, para de fato pensar como um indígena, para ser capaz de absorver a essência do que Ser indígena enverga, você vai ter de matar o branco que existe em você. Nada menos que isso. E se não for assim, tudo não passará de uma maquiagem, e bem malfeita. E, neste caso, lamento, mas colocar preço no Sagrado é o primeiro sinal de que tem alguma coisa que não está muito nos conformes nesse processo. É um bom alerta de que o raion (não-indio) e sua natureza estão bem vivas, operantes e trabalhando a pleno vapor dentro de sua lógica.
(E abrindo aqui um parêntesis agressivo: Não me venham falar que não é isso que se busca, que ninguém está querendo virar índio, porque eu estou mais do que cansada de ver raion embusteiro enfeitado com penachos, pinturas e dizendo que é indígena-pajé-milagreiro-haux-ahow-namastê nascido da raiz da própria Samaúma. Engraçado é que não vejo essa vontade de virar índio se não tiver glamour e cachê. Estou bem sentada e confortável esperando para ver esse amor desinteressado de branco virando índio para correr de bala, beber água contaminada, tomar chuva de veneno e ser humilhado, ameaçado e assassinado todo dia, simplesmente por ser quem é, lá nos acampamentos de lona dos parentes Kaoiwá, à beira da estrada no Mato Grosso do Sul. Quando eu ver isso, aí sim, eu acredito. Por enquanto, o que eu vejo com frequência é uma quantidade bem grande de gafanhotos, ávidos por devorar, destruir e lucrar com a cultura alheia.)
Além disso, há ainda o problema da pasteurização e da mistureba. Pois é preciso ponderar que, muitas vezes, essa ‘apropriação’ (na falta de palavra melhor) da cultura indígena se dá mediante muita descaracterização e desrespeito, inclusive porque em alguns casos a incorporação de práticas é feita na modalidade ‘bricolagem’, em que se pega um pouco de cada coisa, de cada povo, de cada grupo, e no fim das contas a coisa fica tão confusa que efetivamente fica difícil convencer que aquela verdadeira salada Frankenstein possa ser benéfica para quem quer que seja. Porque o que se vê é um uma junção de poderes, de caminhos, de forças e potências que são diversas, que ‘puxam’ para sentidos diferentes, que mexem com energias diferentes, frequências diferentes, questões diferentes... e talvez por isso não seja raro que muita gente saia estropiada do processo, e sem acessado um centímetro que seja de aprendizado.
Do mesmo modo, essa pasteurização, esse tentar tornar a experiência mais palatável para quem não tem tempo e não quer ter compromisso não só resulta em superficialidade como em risco de tornar tudo um grande oba-oba divertido tipo excursão de fim de semana. E, gente... não é! Eu já falei disso em outros textos, mas cabe repetir: enquanto vocês estão se divertindo, e achando que ser indígena é a maior viagem e curtição, tem gente morrendo, e ninguém liga...
E por falar nisso... acho que tenho de comentar sobre um outro grande e específico incômodo, o tal do Sagrado Feminino. Como se sabe, esse é outro movimento que tem se tornado bastante popular entre algumas mulheres, ele a princípio possui algumas pautas interessantes, desde uma perspectiva em que ele propõe o resgate dos poderes inerentes ao feminino, muitos dos quais foram justamente perdidos pelas mulheres brancas devido ao fato de pertencerem a uma sociedade que as obliterou de seus conhecimentos ancestrais ao demonizá-los. No entanto, já que estamos falando em demonização é preciso colocar o pé no freio e fazer algumas considerações a respeito do que está em questão.
E o pé no freio aqui deve ser colocado porque é visível a tendência desse sagrado feminino de permanecer demonizando algumas das matrizes das quais tira conceitos e práticas para a construção de seus postulados básicos: as bruxas que são exaltadas, as criaturas, os espíritos são todos tão brancos e diáfanos quanto as peles raion que as veneram, e as Mulheres Sagradas reais, Indígenas e Negras, são ignoradas, quando não hostilizadas, vide o movimento vegano-elitista que ataca os cultos de matriz africana, mas ignora fatos básicos como Friboi & Cia e seu bife do qual verte sangue indígena.
Obviamente, isso tem a ver também com o fato desse sagrado ter se tornado bastante elitista, bastante enclausurado e seletivo e, por isso, bastante excludente e afastado da realidade social de uma parcela imensa de mulheres, sobretudo as ‘não-brancas’ e pobres. Porque, vejam: benzer, usar chás e unguentos é coisa que nunca deixou de existir em camadas sociais nas quais o acesso à medicina tradicional é caro, complicado, as vezes impossível. Assim como nunca se deixou de acreditar nesses poderes ancestrais, porque eles salvam vidas, curam e foram acessíveis desde sempre. Só se afastou dessas tradições quem tinha dinheiro para pagar o médico, o hospital e o tratamento da farmácia, mas se for procurar no interior, nas comunidades e nas aldeias, lá está, como lá esteve, há muito tempo, e até antes dele.
Além disso, acontece desse movimento de Sagrado Feminino também de ser um movimento que acaba por centralizar demais a coisa no ‘vamos-fazer-uma-fogueira-e-honrar-a-Deusa’, e deixar de se aperceber aonde está realmente a sacralidade, no que efetivamente honra a Deusa... ou em quem é realmente essa Deusa... Ocorre que é complicado falar de Sagrado, quando me parece que ideia que se tem de sacralidade seja ‘só’ o ritual, quando ele é muito mais do que isso. É o ritual sim, mas não só!
Só para citar um exemplo bonito: há tempos, quando fui visitar meus parentes no Rio, ganhei da minha mana Tuschahi um colar feito de sementes que na minha língua é chamada de phyônhã. Essas sementes, ela colheu quando visitou um lugar que para o meu povo é Sagrado. E ela os reuniu em um colar e me presentou com ele. Bem, acontece que essa jóia que em sua forma é simples, mas é para mim um dos mais belos presentes que eu já recebi, e é sim, Sagrado. Porque quando eu o coloco, eu posso ouvir os cantos antigos, e ver a fogueira alta que espalha fagulhas e se une com as centelhas do céu, aonde brilham outras tantos fogos familiares, aonde ainda se conversa, ainda se canta, e se fala na língua, e as vezes é até possível acreditar que ainda, quem sabe um dia, poderemos ter de novo, debaixo dos pés a terra que nos tomaram, e que nela poderemos renascer outra vez.
E é por isso, que eu tenho problemas com alguns tipos de Sagrado por aí... Me entendam: Quando o Sagrado é a Uchô (terra) pela qual a gente luta tanto, e pela qual morreram tantos de nós... Quando é Sagrado um colar, quando é sagrado um Rio correr livre, quando é Sagrado aparar uma nova vida, e uma criança crescer com futuro e sem medo... Quando é Sagrado ouvir as histórias antigas pela boca de quem viveu e muito aprendeu... Quando se pode reconhecer o Poder em coisas mais elementares, mais simples, mais cotidianas, e em Pessoas que não estão por aí se propagando Magos, Gurus, Guias, Sacerdotes, Pajés ou coisa que o valha, pessoas que estão simplesmente vivendo o Sagrado em suas ações, em seu falar e no seu silêncio, pessoas que são capazes de ver um mundo para além desse tão bruto, e que por isso persistem e seguem lutando, semeando, criando, arrebanhando a vida nas mãos, curando, fiando e traçando os desenhos do tempo, da morte, do renascer e do que nunca morre... Enfim, quando o Sagrado é a própria vida e tudo que Ela o circunda é bastante difícil achar tanta graça e valor nos rituais, só isso.
* Com exceção da Imagem 2, de autoria do artista Mário Flores Taurepang, as demais são de autoria do artista indígena Jaider Esbell
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).
maravilhoso texto.Muitas aprendizagens nessa jornada.
ResponderExcluirBelo texto!!!
ResponderExcluirBelo texto, sobretudo quando fala das práticas que nunca acabaram entre os pobres.... E esse "retorno" aos rituais sagrados com gurus da elite branca é foda. Abraços.
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