Um
dos objetivos deste blog é a divulgação do que chamo de “mundo indígena e
indigenista”. Assim, vez ou outra, também estarei divulgando pesquisas, livros
e outros materiais que vejo serem importantes. Dar publicidade a estes, em
minha opinião, é essencial para fortalecer cada vez mais esta “teia cultural”
que une não só os povos indígenas como, também, indigenistas e demais interessados.
Assim,
o assunto hoje é a pesquisa sobre a musicalidade do povo Ashaninka*, realizado
como Trabalho de Conclusão de Curso pelo professor, músico e cineasta Wewyto
Ashaninka, da aldeia Apiwtxa, Terra Indígena Kampa do Amônia, município de
Marechal Thaumaturgo.
Como
músico, sempre achei muito rica a música e os instrumentos utilizados pelos
Ashaninka e por isso, este tema sempre me chamou muito a atenção quando os
visitava e, em 2003, tive a oportunidade de produzir e participar da gravação
do primeiro CD do Benky Ashaninka.
Também
foram os Ashaninka do Amônia os primeiros, no Acre, a lançarem um CD
de músicas tradicionais, o Homãpani Ashënïka,
em 2000.
Mas antes, para os que não conhecem, faço uma rápida apresentação deste povo e desta comunidade em particular.
Os
Ashaninka são facilmente reconhecidos, pois se destacam pelas
vestes (kusmas) e demais adornos característicos de sua cultura. São discretos
e reservados, evitando interferências e mudanças nos aspectos culturais e
sociais que os caracterizam, o que contribui para destacar a sua singularidade
em relação aos demais povos do Juruá.
Essa
discrição fica evidente quando verificamos que estes evitam divulgar seus
rituais espirituais com o kamarãpy
(ayhuaska), sendo raro, no Brasil, encontrar algum deles participando do
chamado “circuito xamânico”. Em toda minha trajetória indigenista conheci somente três que divulgavam sua cultura em outros locais do Brasil e do mundo,
mas, mesmo assim, de maneira muito discreta e restrita a poucos convidados. A
relação dos Ashënïka com a espiritualidade os impele a um nível de respeito e
restrição que evita charlatões, iniciantes no caminho sagrado ou “falsos pajés”
se apropriarem ou arremedarem seus rituais.
No
Acre existem quatro terras habitadas por este povo: Kampa do Primavera; Kampa e
Isolados do Envira; Kaxinawá/Ashaninka do Rio Breu e; Kampa do Amônia. Esta
última, em especial possui um histórico de reconhecimento e sucesso não só no
Brasil como, também, no resto do mundo.
Foi
para lá que, nos anos 90, o cantor e compositor Milton Nascimento viajou junto
com o
Txai Macêdo, como parte da inspiração para a gravação de seu disco
“Txai”. Disco este em que se destaca a música “Benky”, em homenagem a uma
criança, com o mesmo nome, que anos depois se tornaria uma figura mundialmente
conhecida pelo seu trabalho ambiental e pela divulgação da cultura do seu povo.
Trata-se do Benky Ashaninka.
Benky e Milton Nascimento - Foto: Divulgação |
Também,
nos últimos anos esta comunidade vem se destacando por projetos de sucesso,
como o Centro Yorenka Atame e, mais recentemente, a fábrica de polpa de frutas
e a execução de um projeto pioneiro financiado pelo BNDES.
A
cultura material desse seu povo – que também habita outras regiões da selva
Peruana - serviu de inspiração para a coleção de roupas do ano de 2015, da
grife Osklen. O vídeo produzido para divulgar como foi o contato com esta
cultura é muito bom (clique aqui).
No
campo das “relações públicas”, em 2016, além de serem objeto de exposição no
Museu do Índio, abriram o espaço da aldeia Apiwtxa para a filmagem de uma novela. E, bem mais recentemente, tivemos a realização do
projeto “Teia Indígena do Acre”, no Centro Yorenka Atame, que reuniu diversos
Povos Indígenas do Acre, de outras partes do Brasil e do Peru.
Desfile da Osklen durante SPFW |
Ainda
neste ano de 2016, como parte de um projeto em parceria com o Instituto Social
Ambiental (ISA), A FUNAI e a ONG Inglesa Survival Internacional para a
publicação de um livro sobre as culturas indígenas brasileiras, a comunidade
Apiwtxa também foi registrada pelas lentes do famoso fotógrafo SebastiãoSalgado.
No
campo político destaco a candidatura do professor e escritor Isaac TotoAshaninka para a prefeitura do município de Mal Thaumaturgo.
Por
fim, outro destaque que não poderia deixar de fazer quanto a esta terra
indígena e seu povo, diz respeito à luta destes pela proteção territorial e
ambiental da fronteira Brasil/Peru e das comunidades que lá habitam. Esta luta
é reconhecida internacionalmente e já foi premiada pela ONU. As ações
transfronteiriças desta comunidade vêm gerando estudos e resultados
surpreendentes. Para quem quer ler sobre uma aldeia desta situação de fronteira,
bem como a gravidade de sua situação, vale a leitura de uma matéria
recentemente publicada no conhecido blog do Jornalista Altino (clique aqui).
Voltemos ao professor Wewyto...
Nasceu em 1978, fez parte de um grupo de professores formados em magistério específico indígena, no pioneiro Projeto de Autoria, da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) e que, assim como os demais, através deste projeto teve acesso a outro, o de formação de cineastas através da organização Vídeo nas Aldeias.
Tive
o prazer de ser um dos formadores do Wewyto nos cursos de magistério durante
alguns anos e, pela proximidade de idade que temos, nos divertimos bastante em
diversas oportunidades nestes anos de formação e durante minhas visitas à sua
comunidade.
Wewyto Ashsninka- Foto: Vídeo nas aldeias |
Como
professor participou da produção e publicação de diversos materiais didáticos,
tanto na pesquisa e escrita como também na sua ilustração. Conheço os desenhos
deste professor e sempre me impressionei com eles, é um desenhista de mão
cheia, com certeza.
Como
cineasta foi autor e produtor de uma série de vídeos sobre o cotidiano de sua
comunidade. Entre estes vídeos, muito deles premiados internacionalmente** (alguns disponíveis no youtube), destaco: No tempo das chuvas (2000); Shomôtsi
(2001); Dançando com Cachorro (2001); A gente luta mas come fruta (2006) e No
tempo do Verão (2013).
Outra
faceta deste professor é o conhecimento do mundo musical de seu povo, não só no
que diz respeito aos aspectos sociais e míticos como, também, no domínio das
canções e dos instrumentos musicais tradicionais. O maior divulgador das
canções Ashaninka é o ambientalista Benky Piyanko, irmão de Wewyto, que, além
de gravações, já participou de apresentações em várias partes do Brasil e na
Europa.
O
interesse de Wewyto pela tradição musical Ashaninka consolidou-se como material
de estudo, tornando-se o tema de seu Trabalho de Conclusão de Curso, em 2013,
na área de Linguagem e Artes, do Curso Superior Indígena da Universidade
Federal do Acre, tendo como titulo “Registro
artístico de musicalidades do ritual do Piyarëtsi do Povo Ashënïka do rio
Amônia”.
Esta
pesquisa é muito interessante e será apresentada pelo próprio autor aqui no
blog.
Assim,
abro espaço para o excerto desta pesquisa onde o autor se apresenta e descreve
seu objeto de estudo:
Eu, Valdete da Silva
Pinhanta, conhecido pelo meu povo como Wewyto Piyãko tenho 36 anos. Sou casado
e tenho oito filhos. Estou atuando na sala de aula desde 1996. Também sou
cineasta formado pela ONG Vídeo nas Aldeias. A participação deste projeto me
deu a oportunidade de viajar a várias partes do mundo.
Wewyto tocando sõkary com seu pai Foto: Frederico Lobo |
Este trabalho versa
sobre a musicalidade, vem sendo desenvolvido por mim desde quando comecei a
trabalhar como educador.
Vinha pesquisando
somente com os anciões a partir da oralidade e, na prática, aprendendo com eles
sobre s mitos e sobre as músicas cantadas e tocadas faz festas Ashënïka
dopiyarëtsi. Aprendi muito a cantar e tocar os instrumentos usados nos rituais
musicais com eles.
Este trabalho trata dos
conhecimentos sobre a musicalidade de meu povo, mais especificamente dos
conhecimentos relacionados ao ritual do Piyarëtsi (caiçuma).
A arte Ashënïka não é
uma atividade separada, individualizada. Normalmente ela se mostra totalmente
ligada à vida cotidiana, em cada objeto tradicional produzido, em cada ritual
manifestado, em cada gesto.
A nossa arte é a
expressão de força e conexão com o mundo mítico e espiritual. A beleza está
presente como parte do cotidiano, não importa a hora.
As pinturas corporais,
por exemplo, no decorrer do dia ou numa festa podem ir se dissolvendo, nas elas
não precisam permanecer o dia todo para justificar sua beleza. Ao longo do dia
podem-se ter várias pinturas e retoques, de acordo com o que cada um queira.
Ela é, no presente, uma expressão necessária, assim como a linguagem falada, a
musicalidade e a corporalidade. Neste sentido, todos Ashënïka, no Brasil,
atualmente, são falantes da língua materna, assim como também valorizam muito
nossa tradição musical, seus instrumentos musicais utilizados nas festas, tais
como as flautas,os tambores e o arco-de-boca, além dos cantos.
Pitsitsiroyte foi um ser
muito poderoso que, nos tempos antigos, ensinou os Ashënïka a tocarem o sõkari
(flauta tipo pã), a cantarem as músicas acompanhadas com o
tãpo (tambor) e a realizar os rituais
de danças.
Quando Pawa (Deus) ainda estava na terra, ele deixou cada um de seus filhos com uma
missão a ser realizada. Um destes filhos foi o Pitsitsiroyte que ficou
ensinando todos os Ashënïka que tinham interesse em aprender a tocar e cantar
as músicas.
Curaca (cacique) Antonio Piyanko e seu tãpo Foto: Eliane Fernandes |
De modo geral, a
transmissão das músicas tradicionais Ashënïka dava-se, sobretudo, pelo exercício
das práticas de oralidade. Não havia registros escritos dessas atividades.
No mundo Ashënïka
existem sempre pessoas que desenvolvem conhecimentos específicos a respeito de
certas categorias ou modalidades artísticas. Tem sempre alguém que sabe
fabricar melhor um instrumento musical com mais habilidade e competência. Saber
sobre o uso e a função dos instrumentos, conhecer os detalhes e técnicas para
que os instrumentos sejam apreciados e aprovados pelos membros de sua sociedade
são indispensáveis para se construir um instrumento.
As mulheres só podem usar dois deles, os quais também são tocados pelos homens: piyôpirëtsi (arco-de-boca) e o porero (flauta transversal).
Alguns dos rituais das
mulheres e homens Ashënïka:
O pirãtaãtsi é um ritual das mulheres. Nesrte ritual várias situações podem acontecer e as mulheres podem fazê-lo para acompanhar os homens que concomitantemente, fazem o ritual masculino do tãpotãtsi ou do sõkataãtsi. Elas posicionam-se deslocadas em relação ao ritual masculino, embora ambos os rituais sejam relacionados entre si, por exemplo, de forma dialógica com os homens no tãpotãtsi. É muito divertido e acontece no meio de uma festa.
O pirãtaãtsi é um ritual das mulheres. Nesrte ritual várias situações podem acontecer e as mulheres podem fazê-lo para acompanhar os homens que concomitantemente, fazem o ritual masculino do tãpotãtsi ou do sõkataãtsi. Elas posicionam-se deslocadas em relação ao ritual masculino, embora ambos os rituais sejam relacionados entre si, por exemplo, de forma dialógica com os homens no tãpotãtsi. É muito divertido e acontece no meio de uma festa.
Neste ritual, quanto
mais as mulheres participam é melhor para dar ritmo e animação à festa. Elas
não usam instrumentos, mas cantam em meio circulo. Elas cantam indo pra frente,
voltando para trás e dando volta no grande terreiro, segurando nas mãos uma das
outras, deixando os homens no meio do círculo. Juntas cantam em vozes mais
altas que a dos homens, dando ritmo à festa.
Sõkary tocado pelos adultos Foto: Vídeo nas Aldeias |
Os músicos reunidos dão
os toques iniciais da música e em seguida saem em volta do terreiro. Cada
músico, um por vez, propõe uma música e os demais acompanham. O proponente será
o hewatakayerone sõkataãtsi, ou seja, o puxador da música proposta. No decorrer
da música e da volta do terreiro, este puxador fará pequenas paradas no centro
no centro do grande terreiro, formando um círculo para atualizar o toque das
flautas e posteriormente continuarem.
Esse é um dos rituais
mais respeitados e valorizados por todos. Segundo os antigos Ashënïka, foi um
dos primeiros rituais ensinados por Pitsitsiroyte. São os mais velhos, adultos
conhecedores que puxam e dão dinâmica ao ritual.
Este ritual é realizado
para agradecer a Pawa pelo belo dia, pela alegria, a união, a abundância nas
colheitas, o bem estar com a vida e com toda a comunidade e, por fim, pela
bebida. Esse ritual pode durar horas e para finaliza-lo, o puxador da musica
anuncia o seu encerramento com o toque do sõkari bem mais lento, de modo que
todos os demais tocadores o acompanhem. Assim finaliza-se o ritual com risos e
cumprimentos.
No povo Ashënïka a
cultura das festas e o conhecimento das músicas são fortes, mas o
contato om o
mundo do não-indígena cria uma preocupação com alguns jovens que não estão
dando o devido valor às músicas do povo, preferindo as músicas dos wiracocha (não-índios). Esta preocupação é
importante para evitar a perda dos hábitos musicais, de acordo com as tradições
herdadas dos antepassados deste povo.
Wewyto ensinando um jovem aluno - Foto: Isaac Piyanko |
Pois
é...
Como
citei este é um excerto da pesquisa escrita e ricamente ilustrada pelo Wewyto.
Não encontrei este material disponível na internet. Para os que tiverem a
oportunidade de acessar este material garanto que não se arrependerá.
Pelo
que me disse, Wewyto pretende dar continuidade em sua pesquisa quando estiver
fazendo o mestrado, em breve.
Finalizo
por aqui sentindo um friozinho na barriga ao lembrar as noites de festas de
piyarëtsi ou de kamarãpy que tive a oportunidade de participar junto a este
lindo povo.
Aprendi
muito com eles, somando à minha busca por conhecimento – e por mim mesmo – mais
uma pecinha neste intrincado quebra-cabeça que é nossa existência.
Eu e Benky Ashaninka, em 2003 subindo o rio Amônia Foto: acervo pessoal |
Ler
a pesquisa do Wewyto me fez ouvir novamente minhas gravações com o Benky, o
que, em seguida me deu vontade de tocar violão, o que fiz prazerosamente
antes de terminar as últimas linhas deste texto. A sensação boa que ficou após
mais este contato com a música me fez lembrar e concordar com as palavras do
Wewyto: A música nos leva a voar no ar.
Entramos no som de nossos instrumentos e nos relacionamos com os pássaros, os
peixes, as ervas, os legumes, as bebidas e outros seres.
Hatana*** e boa semana a tod@s!
Jairo Lima
* Escreve-se Ashaninka ou Ashënïka. Este ultimo é utilizado principalmente pelos indígenas.
**Prêmios que os vídeos
de Wewyto recebeu: Prêmio UNESCO 2001; Melhor filne no Festival Présence
Autochtobe em Montreal, Canadá, em 2002; Grande prêmio “Rigoberta Menchú Tum”
2002; Menção honrosa do Juri oficial no Cinesul 2002; Prêmio “Rigoberta Menchú”
no II ANACONDA 2002, Bolívia; Prêmio Especial do Público Indígena, II ANACONDA
2002, Bolívia; Forumdoc, BH, 2002, melhor vídeo da mostra competitiva nacional;
entre outros mais recentes.
*** Hatana é uma saudação de despedida na
língua Ashaninka.
E novamente iniciamos a semana com um novíssimo aprendizado, fiquei encantada , povo lindo, um verdadeiro exemplo de organização ,vestimentas impecáveis , adornos perfeitos. Parabéns pelo seu trabalho e por nos proporcionar entrar um pouco nesse mundo indígena , que me encanta a cada dia,através das suas belas palavras.
ResponderExcluirMuito rico este texto, Jairo! Bom seria que nas escolas se ensinassem também a história destes povos que são os verdadeiros Brasileiros de origem. Ensinam com tanta ênfase o descobrimento e colonização feita pelos Portugueses e demais povos europeus e asiáticos que formam nossa etnia e esquecem dos indígenas.
ResponderExcluir