Quadro de Teresa Lima |
Por: Raial Orotu Puri
Uma das histórias antigas de meu povo, os Puri, conta
sobre o surgimento dos diamantes, que são, assim como os próprios Puri,
concebidos como um produto das estrelas, alkeh
potéh, poeira das estrelas. Esta narrativa conta que, há muito tempo,
quando os raion tentavam tomar os
territórios ancestrais, estas investidas eram bravamente repelidas pelos
guerreiros Puri, que impediam assim o avanço da conquista. Este grupo em particular
vivia à sombra de uma Acaiaca, cedro rosa, a qual era considerada sagrada pelo
fato de ter sido a árvore que deu salvação a um casal que subiu em seus galhos a
fim de escapar de uma grande enchente que matou todos os viventes. Depois que
as águas baixaram, o casal desceu para a terra e a repovoou.
Cientes da importância dada àquela árvore, e de que não
seriam capazes de vencer aquela guerra por meios lícitos, os raion aguardaram o momento certo para
atacar aquilo que sabiam, seria capaz de levar os Puri à derrota: Num momento
em que todos se ausentaram da aldeia para participar de uma festa, cortaram a
Acaiaca. O céu se abriu em choro tempestuoso, lamentando aquela profanação.
Somente ao raiar da manhã seguinte, quando acordaram de um sono entorpecido de
canjirina (bebida fermentada feita à base de milho), os guerreiros se deram
conta do fato terrível, e sentindo-se agora completamente vulneráveis, foram
facilmente vencidos pelo inimigo. Quando ainda celebravam seu triunfo entre os
corpos assassinados, o espírito do pajé Puri apareceu-lhes dizendo que por pura
cobiça eles haviam destruído aquele povo, e que isso seria também a sua própria
ruína. Nesse momento, a Acaiaca explodiu, e seus estilhados espalharam-se sobre
o campo. Porém, logo os raion notaram
que o que tinham a seus pés não eram lascas de madeira, e sim diamantes.
Tomados de loucura ante aquela inesperada fortuna, os raion passaram a lutar entre si para ficar com o tesouro, e assim,
até ao fim daquele dia, não restava sequer um único vivente. E a batalha,
portanto, acabou sem nenhum lado vitorioso.
Quanto às pedras preciosas, a história não informa o seu
destino... Mas ocorre que diamantes são duros. E, assim como os Puri, não é da
natureza destas pedras desaparecer. São, pelo contrário, aquilo que permanece,
quando tudo o mais já chegou a seu fim. Já escrevi a propósito do assunto em
meu primeiro texto neste blog: apesar de todas as tentativas de extermínio que
foram impostas ao meu povo, nós estamos vivos, e, neste novo tempo, vamos nos
reunindo de novo. Porque somos a explosão da Acaiaca, a poeira das estrelas, os
diamantes que se espalharam pelos campos. Somos pedra, e também poeira, e a
poeira se espalha no vento, e alcança as paragens mais distantes...
Nós, os Puri,
somos o que subsistiu à matança de nossos ancestrais. Empurrados desde a costa até as Minas, e de lá
novamente empurrados, cercados, espalhados e dispersos, colhendo aqui e ali os
fragmentos do que ainda nos resta: as palavras que vão sendo reunidas daqui e
dali, e que vão sendo estudadas, afim de que possamos falar de novo; uma
história, um mais velho que ainda se lembra de uma canção que lhe cantaram
ainda em criança, uma ‘reza’, um remédio do mato; os lugares sagrados que ainda
restam, e no qual ainda ecoam vozes e tambores do passado. Somos aqueles que
têm a missão de atender os Ancestrais que já se encontram para além da vida
quando eles vêm ao nosso encontro. Somos também aqueles que têm a missão de continuar
reivindicando essa existência que teima em ainda Ser, a despeito de toda a
negação.
E toda a oportunidade é boa para reunir uma pequena parte
da alkeh poteh...
Esta narrativa “mítica” foi aqui apresentada de maneira
rápida e resumida, precisamente
para contar sobre um breve, porém maravilho nhapem (encontro) Puri que tive com
alguns de meus parentes em uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro. Estive lá
em um compromisso de trabalho, mas ir ao Rio e não aproveitar para dar um jeito
de me reunir com pelo menos alguns Puri é coisa que não se pode conceber. Foi
assim que, dias antes da partida, escrevi me anunciando, e me convidando para
dentro do possível de me reunir com eles. Consegui. Na verdade, não um grande encontro,
mas vários pequenos encontros, reencontros, reconhecimentos e apresentações,
tanto com os Puri sediados no Rio de Janeiro, quanto com dois maravilhosos tsate (irmãos), que vieram especialmente
de Minas Gerais com o objetivo de me encontrar: Tuschahi, a quem conheço para além dessa vida, organizou tudo para
que eu ficasse na casa do Dauá, nossa
grande referência. Ela própria, juntamente com Kaapua dos “olhos verdes do verde invejar” desceram lá de Bêagá, e passaram comigo, realizando o
prazer de um encontro esperado há muito.
Quadro de Neli Guimarães |
Com os mineiros, tive um encontro bastante mineiro,
entrando no mar de roupa na Praia de Copacabana. Claro, Copacabana... afinal eu
era turista, e a princesinha do mar com sua areia fina, o vaivém das ondas do
mar replicadas nas pedras da calçada de Burle Marx, e o vento que traz além da
brisa o eco das vozes dos vendedores de biscoito Globo, foi o cenário perfeito
para uma tarde de muita cambôna, conversa boa. Conversa de Puri nos novos
tempos, que fala sobre o resgate da língua, resistência, construção de um ideal
de território coletivo que seja capaz de acolher nosso ideal de identidade, de
valores, convicções e visões de mundo. Ao passo que desfrutávamos da praia, com
suas ondas incessantes de azul e espuma, víamos, entrecortado em perfil na
paisagem, o grande rosto de pedra do gigante que jaz adormecido na Guanabara,
que na tradição do meu povo ainda há de se levantar e voltar a caminhar sobre a
terra, num tempo que antecipe seu fim, e seja também recomeço.
O fim da noite foi junto do Dauá, com sua música, seus cantos e poesia. É difícil sintetizar a figura
desse mestre de meu povo: Músico, contador de histórias, ex-radialista,
construtor de móveis, poeta, escritor, liderança, articulador, pesquisador,
Puri. Bem sei que nem uma vida inteira seria tempo suficiente para estar junto
dele, o primeiro ancião de meu povo que pude conhecer, e de aprender com ele,
na simplicidade profunda de suas canções, ou na delicadeza de sua acolhida tão
generosa. Quatro dias estive com ele, e confesso que me sinto culpada por ter
roubado dele várias horas de sono, na minha sede de ouvir, aprender, entender. Volto
para casa dessa visita cheia de presentes, na forma de livros, canções,
referências de pesquisa e material de estudo, e com o coração cheio da vontade
que venham novos encontros e oportunidades de comunhão.
Ao longo da semana, houve ainda a oportunidade de
conhecer pessoalmente o Marcelo, tsate
pesquisador que muito tem contribuído para o levantamento documental que vem
ajudado os Puri a se reapropriar de elementos culturais que foram quase
apagados devido aos mais de cinco séculos de ataques violentos a que o meu povo
e tantos outros foram submetidos. Através dessa pesquisa tem sido possível
estabelecer um caminho que, sabemos, se faz necessário percorrer a fim de
reconstruir ao menos alguma parcela daquilo tudo que se perdeu.
Por fim, mas não necessariamente por último, pude
conhecer também Aline, essa audaciosa moça que sonha grande e bonito, com seu
projeto de uma editora capitaneada por mulheres indígenas. Com ela, conheci um
pouco mais do Rio de Janeiro, com suas belas paisagens, suas construções
centenárias e seus muitos museus. E é curioso passear pelas ruas de uma cidade
tão antiga, em cujas ruas nos deparamos com tantas histórias, mas nas quais nem
sempre conseguimos nos identificar como participes. Onde estão os indígenas do
Rio de Janeiro? Por toda parte! Mas acabam por ser reconhecidos exclusivamente
na ‘influência’, no nome de certos lugares, nas primeiras linhas do primeiro
capítulo de um livro que é feito para narrar uma longa história pretensamente
hegemônica, que afasta do centro da cena tudo aquilo que não se assenta sobre
essa base branca.
Quadro de Elvis Silva |
No entanto, a presença indígena nesta cidade vai muito
além desse lugar ao qual se pretende limitá-la. Porque os povos originários
reivindicam também este espaço, a cidade, como um espaço de existência
possível. Replicando aqui as palavras que ouvi em outro contexto, mas que cabe
perfeitamente aqui: “Não foram os índios que foram para a cidade, foi a cidade
que chegou até nós”, razão pela qual é, no mínimo, desonesto que agora se
questione a presença ou a identidade daqueles que, por força de tantas
circunstâncias – nunca favoráveis aos povos originários – agora se encontram
numa realidade urbana.
Essa discussão se coloca de maneira especialmente
relevante no Rio de Janeiro, onde se ergue sobre o chão a possibilidade de uma
Aldeia Vertical, lugar onde eu estive hospedada ao longo desses dias. No bairro
Estácio de Sá, às margens do Morro de São Carlos de Gonzaguinha, reunidos em um
dos muitos blocos de apartamentos do ‘Minha Casa, Minha Vida’, encontram-se
indígenas de diferentes povos e regiões do país, e que anteriormente se
reuniram em torno de uma experiência coletiva que recebeu o nome de Aldeia
Maracanã, a qual foi alvo de uma das muitas ações de gentrificação implementada
pelo Governo sob o signo das ‘obra da Copa’.
Não posso deixar de citar que ocorreu no momento da
chegada: quando estávamos chegando ao bloco de apartamentos, que fica no fundo
do conjunto, quase encostado no grande muro daquilo que outrora foi um
presídio, e para além do qual se ergue o morro, passamos por duas crianças
sentados à calçada, e que conversavam sobre qualquer coisa, mas que, ao nos ver
passar, tiveram sua atenção momentaneamente capturada pelas duas presenças
desconhecidas caminhando ali. Uma delas, ao ver o rumo para o qual nos
dirigíamos, me olhou e fez uma rápida advertência: “Aí é de índio”, e disse
isso com olhos de quem acredita que esse aviso dizia tudo o que eu precisaria
saber, principalmente, o fato de que eu talvez não quisesse entrar lá. Diante
de suas palavras, me limitei a sorrir e entrei, visto que era ali mesmo que a vontade
de meus passos me levava.
Lá dentro, ao longo dos dias em que estive ali, pude
conhecer alguns dos moradores desse espaço, dentre eles o Cacique Carlos
Tukano, Afonso Apurinã, e Niara, com quem pude conversar rapidamente, e trocar
impressões, as minhas enquanto moradora do Acre, e as dele, como indígenas
habitantes de um espaço não necessariamente tradicional. Não há ‘maloca’, pátio
central, ou algo possa fazer as vezes de uma “natureza circundante”. O ambiente
doméstico de cada um precisa ser constituído no interior de uma arquitetura
quadrada e uniforme. No entanto, apesar desse conjunto de apartamentos ser mais
um dentre muitos idênticos, uma observação um pouco mais detida faz ressaltar
alguns detalhes que o singularizam, a começar pela preservação de um ideal
comunitário que permite faz das casas um espaço menos individual do que costuma
ser o tom das moradias urbanas: ali, as portas e o acesso às casas é franqueado
a qualquer hora do dia, assim como também são comuns o compartilhar de comidas,
utensílios domésticos e o que mais se fizer necessário e puder ser emprestado.
É também de dentro da Aldeia Vertical, e das mentes de Dauá e Niara, que nasceu o projeto de uma horta comunitária que vem sendo
desenvolvida no Morro do São Carlos, e que pretende alimentar tanto a mesa dos
indígenas quanto do pessoal da comunidade. Pude saborear um pouco dos frutos
desse trabalho, na rica salada, no assado de berinjela, na geleia e no licor de
beterraba preparados por Niara, que também me presenteou com um sabonete de
ervas feito artesanalmente por ela. Visitando sua casa, conheci também a
confecção de bonecas de pano que vem fazendo junto com as crianças do Conjunto
de Apartamentos. Em pouco mais de uma hora de conversa, ouvi e aprendi muitas
coisas dessa filha de Funiô e Cariri-Xocó que usa seus conhecimentos
tradicionais de maneira terapêutica, e que são aplicados aliados à formação em
He-iki.
Autor desconhecido |
Pois é, talvez tudo isso soe como informação demais para
aqueles que veem a experiência indígena dentro de uma caixinha de tradicionalidade
que tende a encapsular os indígenas dentro de algo quase tão estratificado como
uma vitrine de museu. Não quero com isso dizer que a vida na cidade é para o
indígena um ideal. Pelo contrário, ouço sempre a boca de todos os que vivem
neste espaço, uma sensação de não-pertença, de dificuldade de se lidar com um
ambiente que é hostil e inóspito, e isso independentemente de se ser ou não
indígena. Bocana ma carecun é a expressão
na língua do meu povo para sintetizar essa falta, e que pode ser traduzida como
‘tenho saudade da floresta’. Saudade que se faz presente, mesmo no coração de
uma indígena que nasceu fora da floresta, numa região onde ela há muito já foi
suprimida, como é o meu caso. Porque essa falta tem a ver com algo talvez bem
mais específico e profundo até do que a experiência: talvez seja um elemento da
essência, que nos faz carregar consigo esse fragmento que exige em algum
momento retornar ao todo.
Como já disse em meu primeiro texto publicado neste blog,
eu venho de uma realidade de reconstituição e resistência, de um povo que ousa
existir ainda que há muito tenha sido expulso de seu território ancestral, e
até mesmo da história. De um povo declarado morto, mas que ousa ainda se crer
vivo. Este povo tem boa parte de suas vivências dentro das cidades, e é nas
cidades que ainda se constitui como povo, que defende sua identidade indígena e
se apresenta como uma outra possibilidade de coexistir e ser indígena, mesmo na
cidade, mesmo numa casa de alvenaria que nada tem a ver com as moradias
tradicionais. Dentro dessas casas, os Puri que habitam as cidades, revelam, ao
abrir de suas portas, as ligações com seu território ancestral. Lá estão as
pedras colhidas na Gandarela, a madeira que vem da Serra dos Arrepiados, as
pedras quase irreais de Resende, as folhas da lonque de Barbacena, as esteiras tecidas de embira que fazem as
vezes de colchão. Nessas casas se cantam as músicas antigas, se procura falar
na língua antiga, em meio a baforadas do cachimbo que anela nos ares a fumaça
do pokeh, e se eleva no ar tal qual o
poteh (fogo) de uma fogueira
tradicional, centelha de pertencimento, de proximidade, de convivialidade.
Não podemos, realmente, voltar no tempo, e reconstruir
pedaço a pedaço a Acaiaca que explodiu nos ares. Até porque ela já deixou de
ser madeira... Resta, porém, a consciência de que de que o produto daquela
transmutação é mais duro e resistente do que o material original. Sim, somos
feitos de pedra. O tempo, a agudez da experiência, e a necessidade de resistir
apesar de tudo tem o efeito de tornar resiliente. Mas este processo não
resultou em um tipo de rocha que não é silente: somos de uma espécie com voz,
como a pedra sonora de Rezende; uma pedra que transmite mensagem e a faz ecoar.
Raial Orotu Puri, é indígena do povo Puri. Graduada em Direito pela UNIDESC e doutoranda em antropologia pela UFPR. Atualmente está radicada em Rio branco-Acre, onde atua como Chefe de Divisão no IPHAN/AC. Raial também contribui como assessora jurídica da Federação do Povo Huni Kui do Acre (FEPHAC). Grande divulgadora deste blog
Que boniteza de texto nova amiga “velha” Andreia Bahia Prestes Puri! Sim! Bem dizer nos conhecemos outro dia, e apesar de termos nos encontrado e conversado tão pouco, a sensação que tenho é que já temos uma velha amizade estabelecida! Antiga! De tempos que lá se vão! E essa identificação, esse re-conhecer vai acontecendo aqui... Conversando contigo através dos teus textos primorosos, que trazem histórias mais primorosas ainda, e que nos contam histórias antigas com suas novas significâncias... Com teu olhar ás vezes horizontal... Às vezes vertical... Nos levando em direção ao “espírito da coisa”, como diz meu amigo Toinho Alves.
ResponderExcluirRealmente esse ano de 2016 é um ano para não ser esquecido! Entre tantos “céus” tenebrosos despenando nas nossas cabeças, venho de encontros ou reencontros prazerosos também, e nosso encontro (ou reencontro) é um deles. Grata pelo primor de texto!
Sua mensagem foi uma das primeiras coisas que li neste dia. E veio com vento e luz, como digno no dia de Iansã... Me senti abraçada por este comentário, pela beleza e verdade nele contidos. E me demorei em pensar em algo a título de resposta, e acho até que a resposta está além das palavras. E só posso dizer que essa sensação e esse reconhecimento é totalmente recíproco. E só posso dizer que sou grata à vida por esse encontro, e a você, desde onde está, e sendo tanto, me reconhecer. Enorme e saudoso abraço a você, AMIGA.
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